• Nenhum resultado encontrado

O n.º 1 do artigo 36.º do CP prevê que «não é ilícito o facto de quem, em caso de conflito no cumprimento de deveres jurídicos ou de ordens legítimas da autoridade, satisfizer dever ou ordem de valor igual ou superior ao do dever ou ordem que sacrificar.». Este conflito não necessita obrigatoriamente de ocorrer entre deveres jurídico-penais, podendo verificar-se entre deveres penais, civis, laborais, administrativos, etc.168.

Nas infrações tributárias, este instituto ganha relevância quando o gerente de uma sociedade opta pelo pagamento dos salários, ou até mesmo pagamento aos fornecedores, de forma a manter a atividade económica e os empregos dos trabalhadores, em detrimento das obrigações para com a Autoridade Tributária ou Segurança Social.

Ou seja, estamos perante dois bens jurídicos, previstos constitucionalmente, conflituantes: por um lado, a proteção do património e das receitas do Estado que

168 Cfr. TERESSA SERRA e CLÁUDIA AMORIM, Abuso de confiança fiscal: algumas reflexões a partir

107

têm como função as finalidades públicas, e por outro a subsistência e a dignidade individual e familiar, dos trabalhadores.

Ora, parte da doutrina, como refere Assunção Magalhães Menezes e Tito Arantes Fontes, consideram que «nada justifica que, verificando-se as circunstâncias, de facto e de direito, previstas no artigo 36.º, não seja o mesmo aplicado. Ou seja, nada justifica que o Direito Penal Tributário possa prescindir da lei, e assim, da aplicação das causas de justificação previstas no Código Penal (…)169». No entanto, não é a mera dificuldade financeira que justifica o

incumprimento das obrigações tributárias, segundo Manuel José Miranda Pedro, «só se poderá sustentar o conflito de deveres quando o infortúnio económico colocou o agente na impossibilidade de cumprir, no todo ou em parte mas simultaneamente, a obrigação de entrega das prestações tributárias ou sociais e o dever de pagar os salários ou outras dívidas que possam garantir a continuação da atividade empresarial enquanto substrato indispensável à proteção do emprego como forma de realização da dignidade humana170».

Porém, a jurisprudência é clara e unânime no sentido de considerar que o pagamento das quantias devidas aos trabalhadores e fornecedores não consubstancia uma causa de exclusão de ilicitude ou da culpa do agente.

A título de exemplo, o Ac. do TRP de 20-06-2012 é convincente ao afirmar que «No confronto entre o dever de entregar à Segurança Social as quantias

descontadas nos salários dos trabalhadores da sociedade e o dever de manter esta em atividade, pagando as despesas correntes de funcionamento, mormente os salários, prevalece aquele.». Ainda de acordo com o Ac. do STJ de 31-05-2006, «Trata-se de assegurar tratamento diferenciado e desigual, de todos aceite, justificado e inteiramente compreensível, numa área e a uma entidade vocacionada à realização de fins públicos, de prossecução de incontornáveis interesses de índole financeira, nacionais e comunitários, de subsistência coletiva, de justa repartição dos rendimentos, objetivos ocupantes na pirâmide de interesses posição de topo, superiorizando-se aos privados, que extrapolam, em muito, a

169 ASSUNÇÃO MAGALHÃES MENEZES e TITO ARANTES FONTES, O Conflito de deveres e o Abuso de

Confiança Fiscal, Actualidade Jurídica Uría Menéndez, dezembro, 2005, p. 53.

170 MANUEL JOSÉ MIRANDA PEDRO, Justificação do Facto e Exclusão da Culpa nos Crimes de Abuso

de Confiança Fiscal e contra a Segurança Social: O Estado da Questão na Doutrina e na Jurisprudência, Colectânea de Textos de Parte Especial do Direito Penal, Lisboa, AAFDL, 2008, p.

108

mera responsabilidade contratual, caso em que, se fosse essa tal natureza, então existiria manifesto excesso se se privasse de liberdade o agente da infração, em derrogação do princípio estabelecido no art. 1.º do Protocolo n.º 4, Adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, proibindo a privação de liberdade pela única razão de se não poder cumprir uma obrigação contratual.»

Ora, entendemos e tendemos a concordar com esta posição da jurisprudência. De facto, nas infrações tributárias está em causa um bem jurídico supra-individual, enquanto que o dever de pagar os salários e manter a empresa em atividade tratam-se de interesses particulares, de origem contratual, ao contrário das obrigações para com o fisco, que derivam da lei. Para além disso, o princípio da livre concorrência impede a proteção deste tipo de situações, pois, doutra forma, quem não conseguisse cumprir todas as suas obrigações, via-se privilegiado perante os cumpridores uma vez que se escusava do cumprimento das suas obrigações tributárias, impondo-se sim às sociedades que não consigam cumprir as suas responsabilidades que se apresentem à insolvência.

No entanto, a título de rápida referência, choca-nos as várias notícias que surgiram na comunicação social, apesar de não confirmadas, de que vários organismos públicos do Ministério da Administração Interna não estavam a entregar ao Estado a retenção de IRS dos seus funcionários públicos, após acordo com o Ministério das Finanças, por falta de liquidez para pagar salários e suplementos. Se é certo que os princípios da iniciativa privada atrás referidos não se aplicam ao Estado e que este não é suscetível de responsabilidade penal, parece- nos, no entanto, que esta leviandade do próprio lesado, perante as infrações tributárias, não ajuda à eticização do direito penal tributário e poderá pôr em causa as finalidades das sanções das infrações tributárias: em primeiro lugar, o bem jurídico não é acautelado nestas situações, em segundo lugar, a prevenção, quer geral, quer especial, não são salvaguardadas, pois, perante tal inércia do próprio Estado, os restantes contribuintes considerarão «legítimo» recorrer às infrações tributárias, em terceiro lugar, uma vez que os órgãos do Estado não são culpabilizados nas situações supra referidas, diminui a censura social associada a estas infrações.

109

6. O princípio do direito à não autoincriminação e os deveres de colaboração