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5. O bem jurídico nas infrações tributárias

5.1. Modelos funcionalistas

Apesar de existirem várias subcategorias na vertente funcionalista, todas elas com fundamentos e bens jurídicos tendencialmente distintos, estas teorias têm duas caraterísticas coincidentes fundamentais: primeiro, negam que as incriminações tributárias tenham como tutela o património do erário público e, segundo, defendem que o bem jurídico tutelado pelas infrações tributárias é tendencialmente coincidente com as funções do próprio tributo.

i) O crime tributário como ofensa à função tributária

Segundo esta vertente, a criminalização dos delitos tributários visa tutelar as funções dos tributos em si, atribuídas à administração pública, por força constitucional.

Daí que se possa considerar, segundo este entendimento, que as infrações tributárias são crimes contra a administração pública, enquanto titular das funções tributárias, uma vez que não cumprindo as suas obrigações tributárias, o contribuinte ameaça a função prestativa do Estado.

Assim, o bem jurídico protegido pelas infrações tributárias penais «deve ser, pelo menos de forma imaterial e a título principal, a função do tributo traduzida na realização das finalidades públicas»122.

As funções do tributo não são apenas a obtenção de receitas destinadas à «…satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas», como prevê o artigo 103.º, n.º 1 da CRP. Temos que ter em conta igualmente as finalidades extrafiscais dos tributos, nomeadamente a redistribuição da riqueza, de acordo com o artigo 81.º, alínea b) da CRP; a estabilização macroeconómica,

121 SUSANA AIRES DE SOUSA, Os crimes fiscais…, pp. 267 e ss.

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«orientada para o combate ao desemprego ou à estagnação económica, bem como para o controlo da inflação e para o equilíbrio da balança de pagamentos, através da variação dos impostos para estimular ou refrear o consumo ou o investimento»; a influência na afetação de recursos através de, por exemplo, benefícios fiscais e da proteção alfandegária123.

Esta diversidade de funções do tributo é o principal argumento contra a admissibilidade da teoria patrimonialista do bem jurídico, pois, como vimos anteriormente com as funções do tributo, o não cumprimento do dever de pagar tributo tem consequências para toda a economia e sociedade, não apenas para o erário público.

A teoria do crime tributário como ofensa à função tributária rejeita ainda o caráter obrigacional da relação entre administração pública e contribuinte, pois não está em causa um crédito/débito, mas sim um dever do contribuinte, que deriva da função tributária do Estado.

Em bom rigor, «o bem jurídico tutelado coincide com o interesse público na aplicação correta das normas tributárias»124.

Segundo Susana Aires de Sousa, apesar do «mérito de evidenciar a importância e a necessidade de normas fiscais justas e corretamente aplicadas»125,

esta construção não deve proceder.

Assim, o modelo do crime tributário como ofensa à função tributária, em primeiro lugar, evidencia «alguma confusão entre a ratio legis da incriminação e o conceito de bem jurídico-penal, enquanto categoria dogmática que cumpre uma função crítica e transcendente à incriminação»126. Ora, o bem jurídico seria as

funções do tributo e das normas tributárias em si, sem qualquer bem jurídico- penal concretizado.

Por outro lado, o bem jurídico do interesse público (conceito este claramente amplo) é visado pelas restantes normas de ordenamento público, sem que sejam necessariamente consideradas penalmente relevantes.

123 AMÉRICO FERNANDO BRÁS CARLOS, Impostos: teoria geral, 4ª edição, Coimbra, Almedina, 2014,

pp. 21 e ss.

124 SUSANA AIRES DE SOUSA, Os crimes fiscais…, p. 269. 125 SUSANA AIRES DE SOUSA, Os crimes fiscais…, p. 270. 126 SUSANA AIRES DE SOUSA, Os crimes fiscais…, p. 270.

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ii) O crime tributário como ofensa ao poder tributário

Esta doutrina tem por base o poder, dotado de ius imperii, conferido à administração tributária para impor tributos.

Assim, ao ser posto em causa o poder da administração, que é previsto constitucionalmente, haveria legitimidade para as infrações tributárias.

Ou seja, o bem jurídico seria a ofensa ao poder tributário incidindo «meramente sobre a atividade tributária da Administração fiscal com todas as suas competências e obrigações»127.

Ainda segundo esta doutrina, qualquer momento do procedimento tributário poderia dar azo a criminalizações, nomeadamente factos meramente preparatórios ou antecipatórios que pudessem pôr em causa o poder tributário.

A teoria do bem jurídico como ofensa ao poder tributário não é aceitável atualmente por dois motivos essenciais: o primeiro é o facto de ser a norma tributária que regula a relação entre o contribuinte e a administração, não o poder tributário, que é algo anterior; o segundo, porque esta vertente apresenta-se demasiadamente formalista. Por fim, Pérez Royo, autor espanhol, afirma que «o ataque ao poder tributário como objeto de proteção penal nos delitos tributários equivale a confundir o objeto destes delitos com o objeto genérico de todo o direito penal que é a proteção do ordenamento jurídico, do direito objetivo»128.

iii) O crime tributário como ofensa ao sistema económico

De acordo com esta vertente, o bem jurídico tutelado nos crimes tributários identifica-se com o dos delitos económicos.

Dentro deste modelo, duas propostas se contrapõem: uma que considera que o objeto de proteção das infrações tributárias seria o próprio sistema económico em sentido amplo; outra que a lesão do sistema económico, nos crimes tributários, ocorre mediatamente, através da imediata ofensa ao «bom funcionamento da intervenção pública na economia, impedindo a consecução de

127 ANDRÉ TEIXEIRA DOS SANTOS, O crime de fraude fiscal. Um contributo para a configuração do

tipo obectivo de ilícito a partir do bem jurídico, Coimbra, Coimbra Editora; 2009, p. 99.

128 FERNANDO PÉREZ ROYO, Los Delitos y las infracciones en Materia Tributaria, Madrid: Instituto

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uma série de fins de caráter económico e social que o Estado persegue com a perceção dos tributos»129.

Já aqui confirmamos que, de facto, o direito penal tributário faz parte do direito penal secundário/especial/económico e, assim, tem características coincidentes.

No entanto, tal não significa que o bem jurídico é o mesmo, apesar das características gerais que verificamos anteriormente. De facto, o bem jurídico- penal tem de ser concretizado e autonomizado no direito penal tributário. Se tal assim não fosse, iríamos «confundir os princípios que inspiram a constituição económica e compõem o modelo económico com a categoria dogmática do bem jurídico-penal»130.

iv) O crime tributário como ofensa ao sistema tributário

Por fim, dentro dos modelos funcionalistas, há quem considere que o bem jurídico tutelado nos crimes tributários é o próprio sistema tributário enquanto «conjunto de tributos e normas que o regulam, existentes num determinado espaço tendo em vista a prossecução de determinados fins»131.

Assim, a criminalização dos delitos tributários tem como finalidade garantir o normal funcionamento do sistema tributário e dos seus objetivos (económicos, políticos e sociais).

Tal doutrina realça dois problemas: em primeiro lugar, o conceito de sistema tributário é demasiadamente vago, sendo difícil, assim, identificá-lo com o bem jurídico-penal tutelado por todas as incriminações tributárias; e em segundo lugar, tal visão pressupõe a existência de um verdadeiro sistema tributário coeso e uno, o que grande parte da doutrina discorda pois «os sistemas fiscais são moldados por uma multiplicidade de decisões isoladas que impedem, na realidade

129 Cfr. MARTINEZ PEREZ, El delito fiscal, Madrid, Editorial Montecorvo, 1982, p. 210 apud SUSANA

AIRES DE SOUSA, Os crimes fiscais…, p. 273.

130 AYALA GOMEZ, IGNACIO, El Delito de Defraudacíon Tributaria, Madrid, Servicio de Publicaciones

de la Facultad de Derecho, Universidad Complutense, 1988, pp. 45 e ss. apud SUSANA AIRES DE SOUSA, Os crimes fiscais…, p. 274.

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prática, o nível de coerência e unidade que no plano teórico se reconhece àquele sistema»132.