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CAPÍTULO III – CONFLITOS POR MÚLTIPLOS USOS DA ÁGUA E GESTÃO DE

3.3 Definições de conflitos

3.3.2 Conflitos por usos múltiplos da água

A água é um recurso ambiental indispensável ao desempenho de funções variadas como abastecimento doméstico e industrial, irrigação agrícola, geração de e nergia, navegação, diluição de efluentes urbanos (domésticos e industriais), atividades de lazer e recreação, além da própria preservação da vida, por exercer funções vitais nos seres vivos e regular a existência da vida na Terra.

Dentre os recursos ambientais a água apresenta situações bastante peculiares, possuindo aplicações e usos que vão desde a mais elementar (consumo humano e animal) até como matéria-prima ou insumo produtivo. Todas estas múltiplas utilizações da água propiciam o enquadramento deste recurso natural dentro de um fundamento legal, estabelecido na Política Nacional de Recursos Hídricos, Lei n°. 9.433/97, art. 1º IX, em que a ―gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas‖.

Pompeu (2006) atribui a palavra água quando se faz referência ao bem natural, descomprometido com qualquer uso ou utilização, e a expressão recursos hídricos quando a água é utilizada para um determinado fim econômico.

Os recursos hídricos podem ser de usos consuntivos, onde há perda entre o que é derivado e o que retorna ao curso natural; e não-consuntivos, que são aqueles que não implicam em retirar a água das coleções hídricas. Os principais usos consuntivos da água são: abastecimento doméstico, abastecimento industrial, irrigação e dessedentação de animais; e os usos não-consuntivos são: recreação, harmonia paisagística, geração de energia elétrica, conservação da flora e da fauna, navegação, pesca, diluição, assimilação e afastamento de despejos (MOTA, 1995).

51 Essencialmente os conflitos por múltiplos usos da água se concentram em três esferas: qualidade da água, aspectos quantitativos e problemas relacionados aos ecossistemas naturais (NANDALAL; SIMONOVIC, 2003). Na visão de Wolf (1998), as fontes mais comuns de conflitos pelo uso da água envolvem a quantidade da água, a qualidade da água, a gestão de usos múltiplos da água, as divisões políticas e questões geopolíticas. Para Lanna (2002), os conflitos por múltiplos usos da água se relacionam aos conflitos que ocorrem em recursos hídricos em que determinadas utilizações da água ocasionam prejuízos a outras formas de uso.

Conflitos de diversas naturezas envolvendo o uso da água, em várias regiões do mundo, vêm ocorrendo ao longo da história (GLEICK, 2008). As crescentes disputas envolvendo os recursos hídricos são evidenciadas pelo registro de inúmeros conflitos. Casos como a discórdia entre judeus e árabes, no Oriente Médio, por fontes de água potável, encontram-se entre os mais graves do planeta (TALMAS, 2003).

Para Libiszewski (1995), a água em conflitos internacionais pode agir como um instrumento, onde os recursos hídricos são utilizados com o intuito de prejudicar a utilização da água em uma bacia subseqüente, por exemplo. Ou ainda a água pode funcionar como um canalizador de conflitos, principalmente em países com históricas disputas internacionais. Outra questão que também pode ser desencadeante de conflitos pela utilização da água, é que esta também representa um papel importante na identidade cultural ou na opinião religiosa de muitas comunidades (MOSTERT, 2003).

No Brasil, entre os maiores casos de conflitos pelos usos dos recursos hídricos está a transposição das águas da bacia do Rio São Francisco, onde a alta demanda por água para a agricultura, a manutenção dos aproveitamentos hidrelétricos, além das demandas de águas por outros setores usuários, têm ocasionado conflitos quanto à disponibilidade de água (SETTI et al, 2001). Registram-se, também, conflitos entre usuários de água nos Estados do Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba. Na região Sudeste os mais graves conflitos de usos da água do Brasil são identificados e agravados principalmente pela grande demanda hídrica nos centros urbanos e industriais. No Rio Grande do Sul, os principais conflitos relacionam-se às retiradas de água para irrigação, caracterizando um conflito entre os próprios produtores rurais, e entre estes e o abastecimento público de água.

52 A existência de conflitos pelo uso da água, de acordo com os estudos da região da região hidrográfica do Tocantins-Araguaia, aponta a ocorrência de conflitos hídricos pontuais na bacia, não relatando especificamente os casos, mas afirmando a carência de informações do tema na área de Tucuruí (MMA, 2005), apresentando conflitos de uso por irrigação, geração de energia, saneamento básico e transportes (MMA, 2006).

A Comissão Pastoral da Terra – CPT (2004) entende por conflitos as ações de resistência e enfrentamento que acontecem em diferentes contextos sociais, envolvendo a luta pela terra, água, direitos e pelos meios de trabalho e produção. A definição da CPT para conflitos pelo uso da água relaciona-se as ações de resistência, em geral coletivas, para garantir o uso e a preservação das águas e de luta contra a construção de barragens, contra a apropriação particular dos recursos hídricos e contra a cobrança pelo uso da água no campo, especialmente quando envolvem ribeirinhos, atingidos por barragens e pescadores.

Desde 1985, a CPT registra conflitos pela terra no Brasil, e partir de 2002 passou também a registrar os conflitos pela água, especialmente no meio rural (CPT, 2004). A tabela 2 demonstra a evolução de conflitos pelo uso da água registrados pela CPT no território brasileiro entre os anos de 2002 e 2009. O aumento do número dos registros se dá pela atenção dos agentes nesse tipo de conflito, e também pelo aumento real do número de casos

TABELA 2: Registro do número de conflitos pela água e de famílias atingidas. Ano N.º de Conflitos Famílias Atingidas

2002 8 1.227 2003 20 9.601 2004 60 21.949 2005 71 32.463 2006 45 13.072 2007 87 32.747 2008 46 27.156 2009 45 40.335 Fonte: Adaptado de CPT (2009)

Os gráficos 1 e 2 ilustram a evolução do número de conflitos pelo uso da água registrados pela Comissão Pastoral da Terra, demonstrando o crescimento do número de registros de conflitos, e do número de famílias atingidas por estes conflitos ao longo do tempo.

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GRÁFICO 1 – Registro de conflitos pelo uso da água entre 2002 e 2009.

Fonte: Adaptado de CPT, 2009.

GRÁFICO 2 – Evolução do número de famílias atingidas por conflitos pelo uso

da água entre 2002 e 2009.

Fonte: Adaptado de CPT, 2009.

A CPT (2009) apresenta dados da evolução do número de conflitos e do número de famílias atingidas, mas não descreve o motivo nos índices registrados em 2006 e 2008. Acredita-se que a queda no registro da quantidade de famílias atingidas nestes anos foram menores devido ao menor número de conflitos pelo uso da água registrados pela instituição (CPT), e não que a ocorrência de conflitos tenha sido de fato menor.

A Comissão Pastoral da Terra (2009) afirma que os conflitos pelo uso da água registrados no ano de 2007 e que se relacionam às barragens e açudes somaram 38% do total

54 de casos, 54% relacionaram-se às formas de uso e preservação e o restante às questões de apropriação particular (gráfico 3). Dessa forma, identifica-se que a construção de barragens e reservatórios para usinas hidrelétricas foi a segunda maior causa de conflitos pelo uso da água registrada pelo estudo da CPT no Brasil.

GRÁFICO 3 – Conflitos pelo uso da água no Brasil no ano de 2007.

Fonte: Adaptado de CPT, 2009.

O conflito pelo uso da água ocorre devido o desequilíbrio entre oferta e demanda, resultando em disputas que exigem esforços da sociedade para o gerenciamento dos recursos hídricos. Podem ser definidos como problemas que determinada atividade pode ocasionar a outros usos, chegando, algumas vezes, a torná-los impossíveis, não só pela escassez quantitativa, mas também pela escassez qualitativa de água (MOTA, 1995). Para Lanna (2002), este tipo de conflito ocorre quando determinado recurso d‘água não atende às múltiplas finalidades, em virtude de interesses conflitantes entre pelo menos dois setores usuários de água.

Getirana (2005, p. 15), com relação aos conflitos pelo uso da água, defende que a competição pelos recursos hídricos nem sempre é, de fato, uma situação de conflito entre usuários de água, pois devido ao construto social existente entre atores, muitos dos conflitos potenciais não se transformarão em conflitos reais:

A ocorrência de comprometimento de um determinado uso do recurso hídrico por outro uso distinto não imp lica, necessariamente, conflito entre usuários. Tais situações podem caracterizar-se pelo fato de que uma forma de uso pode compro meter outra sem que haja disputa explícita entre os componentes

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beneficiários. Estas são definidas como conflitos potenciais e existem em grande número nas bacias em decorrência do uso desordenado dos recursos hídricos.

De acordo com Nascimento (2001, p. 94) ―todo conflito tem um conjunto de elementos que o caracterizam e regem sua evolução e intensidade‖, sendo os principais: natureza, atores sociais diversos, campo específico, objeto em disputa, lógica ou dinâmica de evolução, mediadores e tipologia. A partir dessas definições os conflitos nesse estudo serão denominados de conflitos por múltiplos usos da água, pois se relacionam aos conflitos que ocorrem em recursos hídricos com comprometimento de determinados usos da água em detrimento de outros.