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Conformidades e restrições cooperativas

Novamente, antes de prosseguir na noção rawlsiana de cooperação social, aborda-se a mesma a partir do pensamento crítico de David Gauthier (1994). Convém recordar que o neocontratualismo rawlsiano, em resumo, determina que cada indivíduo almeja atingir os próprios objetivos, sem prejudicar os demais semelhantes que compartilham do ambiente social, mas não estão preocupados, primariamente, em considerar os benefícios mútuos ou dos demais indivíduos. Gauthier (1994) interpreta tal consideração como uma variação do egoísmo, criticado por Hobbes (2004) na admissão de que cada indivíduo objetiva a autopreservação. Gauthier declara:

sea lo que fuere que tenga posibilidad de hacer, el egoísta siempre busca maximizar su utilidad esperada. Aun reconociendo que la cooperación le ofrece la perspectiva de beneficio mutuo, el egoísta niega que comportarse de manera cooperativa sea racional, se esa conducta restringe la maximización. (1994, p. 215).

uma idéia [sic] de reciprocidade entre os cidadãos. Finalmente, essas observações deixam claro que a idéia [sic] de reciprocidade não é a idéia [sic] do benefício mútuo” (RAWLS, 2000, p. 60)

102 Contudo, parece que ao tecer tal crítica, Gauthier (1994, p. 217) se contradiz quando, ao citar Hobbes (2004), supõe que o filósofo inglês teria sugerido que,

al hacer un pacto, cada persona maximiza su utilidad esperada, puesto que cada uno obtiene una ganancia de la renuncia recíproca que ese pacto implica. Pero cada individuo maximiza su utilidad esperada al establecer un pacto, en la medida en que ese pacto le exige limitar el ejercicio de alguna parte de su libertad previa.

A interpretação do filósofo canadense acerca das interações cooperativas se dá de maneira muito semelhante à abordagem de Hobbes (2004) e crítica de Rawls (2008), isto é, sem a necessidade da liberdade, entendida como a base de um estado democrático de direito e, por conseguinte, pilar central de todo modelo cooperativo social sólido. A cooperação interpretada como um balizador que serve para restringir os atos individuais dos agentes, para que os mesmos não recebam vantagens imerecidas, assemelha-se àa exigência de renúncia proposta por Hobbes (2004) para defender a limitação do direito natural original.

Embora haja semelhanças quanto ao processo de escolha imparcial dos agentes, proposto por Gauthier (1994) e Rawls (2008), há algo análogo ao véu da ignorância do pensamento rawlsiano. Entretanto, a interpretação de voluntariedade do filósofo de Toronto se dá de maneira distinta da proposta neocontratualista liberal do autor estadunidense. Tal argumento se justifica ao considerarmos que, embora refute a necessidade de coerção, antes defendida por Hobbes (2004), Gauthier (1994, p. 222) admite a necessidade de restrições internas para que haja o afastamento do estado de natureza, por meio de mecanismos políticos e morais75.

Pagamos un alto precio si somos en realidad criaturas que no aceptamos racionalmente ninguna restricción interna a la búsqueda de nuestra propia utilidad y que consecuentemente somos capaces de escapar al estado de la naturaleza en aquellas circunstancias en las que las externalidades están irremediablemente presentes, sólo mediante artificios políticos e morales.

Salienta-se que, como já defendido anteriormente, a subjetividade humana se faz necessária na manutenção da cooperação social, visto que a racionalidade pura é insuficiente para explicar como, em alguns casos, a cooperação se manifesta autointeressada. Além disso,

75 Convém salientar que Kant (MS Ak 419: grifos do autor) defende que, neste sentido, “haverá portanto apenas

uma divisão objetiva dos deveres para consigo mesmo segundo seu elemento formal e material; dentre os quais os primeiros são restritivos (deveres negativos) e os outros são extensivos (deveres positivos para consigo mesmo). Aqueles proíbem o homem de agir contra ele mesmo em vista do fim de sua natureza e, portanto, se referem meramente à autoconservação moral; estes ordenam tomar como fim um certo objeto do arbítrio e se referem ao

103 ressalta-se que o próprio Gauthier (1994, p. 224) dá indícios do caráter lotérico das ações cooperativas, bem como a influência da insegurança na efetivação de uma interação cooperativa, visto que

una estrategia individual es una lotería que obra sobre las posibles acciones de un actor único. Una estrategia conjunta es una lotería que obra sobre los posibles resultados […]. Un individuo no puede estar seguro de que actúa dentro de una estrategia conjunta porque depende no sólo de sus propias intenciones sino también de las de aquellos con quienes participan de la interacción. Pero podemos decir que un individuo funda sus actos en una estrategia conjunta en la medida en que elija intencionalmente lo que la estrategia exige de él.

Logo, ao identificar a questão da intenção, comentada acima por Gauthier (1994), parece evidente a aproximação da questão do autointeresse, abordado por Rawls (2008). Nesta perspectiva também parece clara a problemática que pode surgir diante da ausência do liberalismo rawlsiano em detrimento da aceitação dos mecanismos de restrições internos sugeridos pelo autor canadense76. Assim, entende-se que a garantia de segurança de Gauthier

(1994) é análoga à defesa da autopreservação hobbesiana, interpretada, na reflexão filosófica proposta, como um combustível da competição e um dos vetores da autodestruição social.

Neste sentido o autor canadense determina que a cooperação só se efetiva a partir do estabelecimento de uma estratégia conjunta, que embasaria os atos daqueles envolvidos. Logicamente, todo ato cooperativo visa substituir as estratégias individuais que beneficiam os agentes autointeressados, por estratégias conjuntas, que seriam benéficas àqueles que estivessem engajados. Por conseguinte, Gauthier (1994) determina maximizadores (i) de diretos e (ii) de restrições. No primeiro caso, um agente visa maximizar a própria utilidade com a intenção de atender às estratégias definidas na interação cooperativa, enquanto, no segundo caso, tal agente objetiva maximizar a própria utilidade, não pensando nas estratégias dos demais indivíduos, mas sim baseado na utilidade daqueles que participam de um modelo cooperativo. O segundo modelo, já criticado por Rawls (2008), é defendido pelo autor canadense.

Entretanto, Gauthier (1994, p. 226-229) adverte que, para que tal modelo tenha validade, é necessário que (i) um agente maximizador restringido coopere seguindo os princípios morais de uma única estratégia conjunta racional (senão, em um possível ajuste, o indivíduo poderia migrar para outro modelo mais individualmente favorável para si); (ii) neste cenário, os atos

76 Argumento que se ampara, inclusive, em Kant (MS Ak 422), que enfatiza que, “enquanto se fala de deveres,

portanto, enquanto vive, o homem não pode alienar sua personalidade, e é uma contradição ter a autorização para se subtrair a toda a obrigação, isto é, a agir livremente, como se para essa ação não se precisasse de absolutamente nenhuma autorização”.

104 deste agente devem alcançar um resultado justo àqueles que cooperam com a estratégia conjunta definida (isto é, cada ação teria como objetivo primário o benefício coletivo e, em seguida, o benefício pessoal); e (iii) como a maximização restringida difere da maximização direta, o agente não aceita restrições verdadeiras, isto é, há a identificação de que, independentemente do cenário, a cooperação mútua é mais benéfica que a sua inexistência (mesmo que haja menos participação de alguns indivíduo). Tal ponto pode parecer problemático na interpretação rawlsiana, principalmente em relação à questão da diferença. Contudo, ao encontro das noções de racional e de razoável de Rawls (2008), Gauthier (1994, p. 239) ressalta que o

argumento apela implicitamente a la exigencia de que la cooperación proporcione resultados aproximadamente justos y óptimos […]. Puesto que la persona que acata estrechamente está siempre preparada para aceptar acuerdos cooperativos basados en el principio de la concesión relativa minimáxima, también está preparada para participar de manera cooperativa en cualquier interacción que pueda ser mutuamente beneficiosa fundada sobre bases igualmente racionales y justas para todos. Al rechazar otras bases, esa persona no disminuye sus perspectivas de cooperación con otras personas racionales y garantiza que aquellos que nos estén dispuestos a participar de una cooperación justa no gocen de los beneficios de ninguna cooperación, pues hace que la injusticia les cueste cara y por lo tanto les resulte irracional.

Nesse sentido, a honestidade é interpretada pelo autor canadense não como uma estratégia racional, mais sim como uma disposição de caráter, visto que Gauthier (1994) defende que uma pessoa honesta é justa e, portanto, digna de alcançar os benefícios vislumbrados em um modelo cooperativo77. De acordo com o autor, tal argumento se baseia na

identificação de que a racionalidade humana é capaz de promover autocríticas, uma vez que “el individuo plenamente racional es capaz de reflexionar sobre su norma de deliberación y de cambiar esa norma a la luz de la reflexión (GAUTHIER, 1994, p. 246).

Logo, em um modelo cooperativo, a autocrítica debatida por Gauthier (1994) evidencia não apenas a necessidade da natureza racional humana, mas também do aspecto moral, visto que esse é revelado no confronto entre as preferências individuais cotidianas e os padrões sociais e morais vigentes, uma vez que se defende que ambas surgem do interesse pessoal. Além disso, toda forma de conduta coercitiva ou ameaçadora também é repudiada, visto que ambas se originam da inflexibilidade irracional e não promovem os benefícios mútuos vislumbrados

77 Novamente, tal argumento possui amparo teórico, inclusive, em Kant (MS Ak 429: grifos do autor), quando o

filósofo alemão estabelece que “a maior violação do dever do homem para consigo mesmo, considerado meramente enquanto ser moral (a humanidade em sua pessoa), é o contrário da veracidade: a mentira […]. A

veracidade nas declarações é denominada também honestidade e, quando esta é ao mesmo tempo uma promessa,

105 em um modelo de cooperação social sólido. “Por lo tanto, nuestra argumentación muestra que la conducta amenazadora es tanto irracional como inmoral” (GAUTHIER, 1994, p. 250), o que, de certo modo, refuta parcialmente o que fora defendido por Hobbes (2004), na defesa do Leviatã, e contribui para a argumentação de Rawls (2008).