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Prudência e coerção cooperativa

Neste ponto, pode-se problematizar de que forma esta segunda espécie de pensamentos interagiria com a efetivação das ações morais, isto é, questiona-se a eventual necessidade e, (em caso positivo) qual seria o papel da prudência, por exemplo, na tomada de decisão diante de um cenário cooperativo que, na interpretação hobbesiana, não passa de pura suposição. Hobbes (2004) elucida a questão retomando a discussão acerca da experiência. Conforme o filósofo inglês, a experiência é um fator que objetiva prever consequências com base no que já fora vivenciado. É necessário salientar que, para o autor, todo resultado deste “retorno” ao passado não seria nada mais que uma suposição que pode gerar resultados falaciosos com conteúdo apenas imagético.

Deste modo, segundo Hobbes (2004), toda ação, no momento em que surge, é encarada com ineditismo, uma vez que o futuro bem como o passado são desconsiderados e, consequentemente, o presente é a única realidade aceitável. Para o filósofo de Westport, nos momentos em que se deseja conhecer as consequências de uma ação, se pensa em ações semelhantes ocorridas no passado e se supõe que algo semelhante vai acontecer desta vez. Os pensamentos desta natureza são chamados de previsão, prudência, providência ou sabedoria. De acordo com Hobbes (2004), o presente é o único espaço temporal possível. Assim, o passado tem existência apenas na memória, enquanto que o futuro sequer existe41.

E muito embora se denomine prudência quando o acontecimento corresponde a nossa expectativa, contudo, em sua própria natureza, nada mais é do que suposição. Pois a previsão das coisas que estão para vir, que é providência, só compete àquele por cuja vontade as coisas devem acontecer. Dele apenas, e sobrenaturalmente, deriva a profecia. O melhor profeta naturalmente é o melhor adivinho, e o melhor adivinho aquele que é mais versado e erudito nas questões que adivinha, pois ele tem maior número de sinais pelos quais se guiar. (HOBBES, 2004, p. 41: grifos do autor).

Considerando apenas a materialidade da ideia do filósofo de Westport, isto é, negando- se a questão sobrenatural ou profética citada acima, entende-se que se faz necessária a busca pela caracterização destes sinais, os quais, compreende-se, abrigariam uma explicação embrionária do fenômeno metafísico dos atos cooperativos. Os sinais que indicam a essência

41 Ao encontro de Bentham (1984) e oposto a Hobbes (2004), John Rawls (2008) também sugere que a vida deve

ser vista como um uma cadeia de causas e efeitos. Na concepção do filósofo estadunidense, não há necessidade de menosprezar ou separar os planos futuros dos atuais, visto que “os objetivos futuros não podem ser desprezados apenas em razão de serem futuros, embora possamos, é claro, atribuir menos peso a eles, se houver motivos para pensar que, dada sua relação com outras coisas, sua realização é menos provável” (RAWLS, 2008, p. 520).

55 moral da cooperação antecedem, ou se manifestam concomitantemente, à ação cooperativa, consistindo no ato de deliberar e decidir (fundamentado no autointeresse), visto que, para Hobbes (2004, p. 41: grifos do autor), quanto mais experiência, mais precisão na imaginação de cenários futuros.

Um sinal é o evento antecedente do conseqüente [sic], e contrariamente, o conseqüente [sic] do antecedente, quando consequências semelhantes foram anteriormente observadas. E quanto mais vezes tiverem sido observadas, menos incerto é o sinal. E portanto aquele que possuir mais experiência em qualquer tipo de assunto tem maior número de sinais por que se guiar para adivinhar os tempos futuros, e conseqüentemente [sic] é o mais prudente.

Enfatiza-se que, embora Hobbes (2004) tenha argumentado favoravelmente quanto à prudência, novamente ressalta, na sequência do exercício filosófico, que esta não é uma característica meramente humana, uma vez que também é identificada em animais, inclusive com faixa etária menor, que têm acesso àquilo que consideram valorativo desde as recém- iniciadas vidas. Deste modo, para Hobbes (2004, p. 42), não é a prudência que distingue o homem dos demais animais, pois “há animais que com um ano observam mais e alcançam aquilo que é bom para eles de uma maneira mais prudente do que jamais alguma criança poderia fazer com dez anos”.

Isso significa que, se considerarmos apenas a prudência como uma categoria necessária para a manifestação da cooperação social, há de se refletir acerca da constituição moral do ser humano. Observa-se, portanto, que Hobbes (2004) segue na contramão de correntes filosóficas que colocam a racionalidade como fator exclusivo, ou ao menos decisivo, para a tomada de decisão moral, visto que, ao analisar de forma redutiva a estrutura de um pensamento, ter-se-á a representação hobbesiana daquilo que se origina na sensação. Por este motivo, acredita-se que, nesta redução constitutiva, as consequências advindas de se buscar uma explicação do processo cognitivo da cooperação nos conduzirão à raiz sensitiva individual de cada indivíduo.

Por conseguinte, Abdalla (2004, p. 102: grifo do autor) novamente comenta acerca da noção hobbesiana defendendo o princípio da cooperação como a alternativa racional para evitar que o não-cognitivismo fundamente a competição entre semelhantes, pois,

o estabelecimento do princípio da cooperação como eixo racional fundamentador, em oposição ao da troca competitiva, além de garantir a sobrevivência (seria melhor dizer:

a vida) de um grande número de pessoas, possibilita uma maior aproximação do

universo subjetivo humano à práxis que, histórica e antropologicamente, possibilitou a existência do ser humano como espécie e evitou a sua extinção. É a possibilidade de reencontro do ser humano com a sua essência, perdida pelas conformações históricas fundamentadas na exploração.

56 Acerca dessa suposição, Berlin (1981) questiona como seria possível evitar conflitos entre as vontades individuais, visto que, como cada pessoa busca a autorrealização, seria necessário delimitar uma fronteira entre os direitos racionalmente determinados de cada indivíduo. Joel Feinberg (1974, p. 94) fundamenta que “é freqüente [sic] dizer-se que não pode haver direitos sem deveres, e que uma condição fundamental para a aquisição ou posse de direitos é a capacidade e disposição de assumirem-se deveres e responsabilidades”. Ainda conforme o autor, “a teoria de que a aceitação de deveres é o preço que qualquer pessoa tem que pagar para ter direito foi chamada doutrina da correlação moral de direitos e deveres42

(FEINBERG, 1974, p. 94: grifo do autor). Já Berlin (1981) supõe que a resposta vai na mesma direção do que já foi sustentado por Hobbes (2004): a existência de um Estado para coordenar esse processo e, assim, agir de forma coercitiva em prol da cooperação social. De acordo com Berlin (1981, p. 152),

um Estado racional (ou livre) seria um Estado governado por leis que todos os homens racionais acatariam livremente; isto corresponde a dizer, leis que eles mesmos teriam promulgado se lhes tivessem perguntado quais, já que se trataria de seres racionais, eram as suas vontades; assim, as fronteiras seriam tais, que todos os homens racionais considerariam como as fronteiras ideias para seres racionais.

Ainda conforme argumenta Berlin (1981, p. 152), as consequências de um processo de cooperação, entre os quais a busca por justiça e igualdade exige coerção, “porque a prematura eliminação de controles sociais poderia levar à opressão dos mais fracos física e mentalmente pelos mais fortes, pelos mais hábeis ou pelos mais energéticos e mais inescrupulosos”. O autor salienta que, nas doutrinas deontológicas como a de Kant, apenas homens que se comportam de modo irracional teriam o desejo de explorar, humilhar e oprimir seus semelhantes, uma vez que, em oposição ao que é defendido por Hobbes (2004), Berlin (1981, p. 152) comenta que “os homens racionais respeitarão o princípio da razão em cada outro homem, e não sentirão o desejo de lutar entre si ou de dominarem uns aos outros”, já que, para ele, o desejo de dominação é irracional43. Nessa perspectiva, “a existência ou a ânsia de opressão será o primeiro sintoma

42 Ainda segundo o autor, “a versão da doutrina de correlatividade moral que condiciona os direitos de um homem

ao exercício de deveres correspondentes em relação a outros, não é nem logicamente necessária nem moralmente desejável em qualquer caso. Não há dúvidas, porém, de que em grande número de casos seja moralmente plausível” (FEINBERG, 1974, p. 96).

43 Corroborando com este argumento, Zingano (2013, p. 11) defende que “procedimentos morais são

particularmente abertos a razões e requerem o que está envolvido em seu conteúdo e por que o agente deveria assentir a ele, pautando consequentemente sua ação com base nele. Justificar preceitos morais com base em razões é, assim, parte essencial do comportamento moral”. Kant (Anthropologie Ak 128) vai na direção desta ideia, pois, para o filósofo alemão, “sin embargo, la insociabilidad coloca al hombre en situación de pretender un bien condicionado asimismo por otro, lo que les hace entrar en colisión y les obliga a escoger un jefe cuyos mandatos sean aceptados por todos, conduciéndoles de un modo sistemático hacia la sociedad civil”.

57 de que a verdadeira solução para os problemas da vida social ainda não foi alcançada” (BERLIN, 1981, p. 153).