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A voluntariedade das ações cooperativas

Consideradas as críticas realizadas por Furrow (2007) à imparcialidade defendida pelas doutrinas deontológica e utilitarista, investiga-se o papel das virtudes na interpretação destas categorias valorativas. Na perspectiva hobbesiana, tem-se a noção de virtudes intelectuais, que seriam capacidades humanas de valorização das características dos indivíduos. Para Hobbes

67 (2004, p. 71: grifos do autor), a análise das virtudes parte de uma comparação e devem ser distinguidas do talento.

Por virtudes intelectuais sempre se entendem aquelas capacidades do espírito que os homens elogiam, valorizam e desejariam possuir em si mesmos; e vulgarmente recebem o nome de talento natural, embora a mesma palavra talento também seja usada para distinguir das outras uma certa capacidade.

Quanto aos defeitos contrários às virtudes, o autor salienta que o juízo tem a capacidade de condenar a partir da sugestão de possibilidades, uma vez que, de acordo com Hobbes (2004, p. 72), “o juízo se limita a sugerir quais circunstâncias que tornam uma ação louvável ou condenável”. Para tal, Hobbes (2004) analisa o conhecimento de forma bipartida, como o fez

na análise do discurso mental. Conforme sugere o autor, há dois objetos diferentes do conhecimento: (i) conhecimento dos fatos (que é atrelado à memória); e (ii) conhecimento das consequências (que é condicionado à ciência). O filósofo compreende que o primeiro é testemunhal, portanto absoluto, enquanto o segundo é a capacidade de conjecturar hipóteses quando se raciocina. “Este é o conhecimento necessário para um filósofo, isto é, para aquele que pretende raciocinar”. (HOBBES, 2004, p. 81)

Ademais, cabe supor que o conhecimento dos fatos, embora tenha veracidade absoluta, não é defendido por Hobbes (2004) como a espécie estritamente necessária para o exercício filosófico. Compreende-se que em uma análise hobbesiana da cooperação social, o conhecimento das consequências, não embasado na prudência (como visto, já refutada pelo autor), é necessário para fomentar os vínculos cooperativos entre humanos, uma vez que se argumenta, e se defende, que toda ação coletiva parte da condição de exercê-la, bem como é condicionada pela ação de outros indivíduos.

Por conseguinte, partindo da concepção de que todo conhecimento das consequências obtido em um grupo é condicionado, desenvolve-se a interpretação acerca da influência da mediação do poder neste cenário. De acordo com Hobbes (2004), ter poder é dispor dos meios necessários para se obter vantagens futuras. Novamente o autor realiza uma divisão em (i) poder original; e (ii) poder instrumental. O primeiro, parte da ideia de se considerar as características humanas naturais (força, beleza, etc.), enquanto o segundo leva em conta o que se adquire e se almeja na esfera social. Para Hobbes (2004, p. 83: grifos do autor), “os poderes instrumentais são os que se adquirem mediante os anteriores ou pelo acaso, e constituem meios e instrumentos

68 para adquirir mais: como a riqueza, a reputação, os amigos, e os secretos desígnios de Deus a que os homens chamam boa sorte49”.

Contudo, para o filósofo de Westport, nenhuma das categorias apresentadas se iguala ao poder coletivo guiado por um indivíduo. Nessa perspectiva, é válido ressaltar que tal argumento corrobora com a defesa do Estado, ou do Leviatã, à frente da sociedade para conduzi-la. Entretanto, reduzindo-se a estrutura valorativa dessa defesa política, é evidente a defesa da força da coletividade, resultado da união de indivíduos, isto é, a cooperação social. Ademais, é necessário considerar que a presença do Leviatã só é justificada por Hobbes (2004, p. 83) diante da identificação da ausência de modelos cooperativos sólidos estabelecidos na esfera moral.

O maior dos poderes humanos é aquele que é composto pelos poderes de vários homens, unidos por consentimento numa só pessoa, natural ou civil, que tem o uso de todos os seus poderes na dependência de sua vontade: é o caso do poder de um Estado. Ou na dependência da vontade de cada indivíduo: é o caso do poder de uma facção, ou de várias facções coligadas. Conseqüentemente [sic] ter servidores é poder; e ter amigos é poder: porque são forças unidas.

Hobbes (2004, p. 83) ainda considera que o poder é o responsável por tornar viável a contribuição de outros indivíduos, visto que, para o autor, “qualquer qualidade que torna um homem amado, ou temido por muitos, é poder; porque constitui um meio para adquirir a ajuda e o serviço de muitos”. Tal argumento suscita reflexões acerca da análise filosófica proposta. Deste modo, questiona-se se o poder seria o resultado da cooperação social ou, em direção oposta, a cooperação social seria resultado do poder. Acredita-se que tal questionamento é válido, uma vez que, no atual contexto capitalista, tal questão parece ser respondida com certa ambiguidade50.

49 Ao encontro de Hobbes (2004) e, como se verá no capítulo seguinte, Mill (2001, p. 53: grifo do autor) assume

um discurso semelhante ao de Marx (2001) e enfatiza que “é verdade que a sorte dos indivíduos não é inteiramente independente de sua virtude e de sua inteligência; as duas realmente atuam a seu favor, mas muito menos do que muitas outras coisas em que não há nenhum mérito. A mais poderosa de todas as circunstâncias determinantes é o nascimento. A grande maioria das pessoas são o que nasceram para ser. Algumas nascem ricas sem trabalhar, outras nascem numa posição em que podem ficar ricas pelo trabalho, a grande maioria nasce para o trabalho duro e a pobreza por toda a vida, multidões para a indigência”. Por conseguinte, Mill (2001, p. 53) ainda estabelece que “energia e talento são muito mais importantes para o sucesso na vida do que as virtudes; mas, se um homem vence aplicando energia e talento a alguma coisa útil, outro vence aplicando as mesmas qualidades para superar e arruinar um rival”. Salienta-se que se pretende realizar novas aproximação, em seguida, na chamada loteria natural descrita em Rawls (2008).

50 Mill (2001, p. 51) corrobora com esse argumento, quando comenta que “qualquer tentativa de pintar as misérias

da indigência, ou de estimular a proporção da humanidade que nos países mais adiantados é habitualmente exposta ao longo de toda a sua existência aos sofrimentos morais e físicos impostos por ela, seria supérflua”. O filósofo inglês também critica o papel do individualismo no contexto capitalista, bem como na manifestação vigorosa da competição, considerada a antítese da cooperação social, como defendido na reflexão filosófica proposta. “Aos seus olhos, a própria base da vida humana como constituída atualmente, o próprio princípio sobre o qual se executam a produção e a repartição de todos os seus produtos materiais, é essencialmente viciada e anti-social

69 Diferentemente de Kant (Gr) que considera a dignidade como fim último de todo dever, Hobbes (2004, p. 84-85: grifo do autor) sugere que dignidade é o valor que o indivíduo adquire, por meio de cargos, títulos e gratificações, isto é, poder. “O valor público de um homem, aquele que lhe é atribuído pelo Estado, é o que os homens vulgarmente chamam dignidade”. Neste sentido, intuitivamente se supõe que, no atual contexto social, todo empreendimento cooperativo se manifesta com vias no poder para que, assim como aqueles que o detêm, os que cooperam possam ter a possibilidade de adquiri-lo. Não à toa, Hobbes (2004, p. 84-85: grifo do autor) enfatiza que a honra está sujeita ao elogio e possui grau de dificuldade maior de ser exercida. “Elogiar um outro por qualquer tipo de ajuda, é honrar, porque é sinal de quem em nossa opinião ele tem poder para auxiliar. E quanto mais difícil é a ajuda, maior é a honra”.

Nesse cenário, ainda segundo Hobbes (2004, p. 85), “ser solícito em promover o bem do outro, assim como adular, é honrar, como sinal de que pretendemos proteção ou ajuda. Negligenciar é desonrar”. Conforme o autor, a recusa da colaboração oferecida é compatível com a desonra, enquanto que “concordar com a opinião do outro é honrar, pois é sinal de aprovação de seu julgamento e sabedoria. Discordar é desonrar e acusar o outro de erro” (HOBBES, 2004, p. 85).

Ainda nesta perspectiva, de acordo com Hobbes (2004), o merecimento não teria relação com o valor moral do indivíduo, uma vez que o filósofo inglês considera o primeiro atrelado à aptidão de cada qual com o que é lhe proposto realizar. Nesse sentido, a concepção hobbesiana de meritocracia indica que “o merecimento de um homem é uma coisa diferente de seu valor, e também de seu mérito, e consiste num poder ou habilidade especial para aquilo de que se diz que ele é merecedor, habilidade particular que geralmente é chamada adequação ou aptidão”. (HOBBES, 2004, p. 89: grifos do autor).

Aproximando da abordagem da cooperação social, desconfia-se que tal constatação é o resultado, para utilizar o vocabulário hobbesiano, de um conhecimento dos fatos, absoluto e veraz, mas que, como descrito pelo autor, não é o conhecimento necessário para o raciocínio. Diante de tais considerações, aborda-se a possibilidade de tal reflexão ser o resultado de um

[sic]. É o princípio do individualismo e da competição, cada um por si e contra todo o resto. Está baseado na oposição de interesses, não na harmonia de interesses, e sob tal princípio cada um é forçado a encontrar seu lugar por meio da luta, derrubando os outros ou sendo derrubado por eles […]. Moralmente considerado, seus males são óbvios. É o pai da inveja, do ódio e de todo egoísmo; faz de cada um o inimigo natural de todos os outros que cruzam seu caminho, e os caminhos de todos estão sujeitos a ser constantemente cruzados. Sob o sistema presente quase ninguém ganha, a não ser pela perda de cada um dos outros. Numa sociedade bem constituída, cada um ganharia com os esforços bem-sucedidos de cada um dos outros; enquanto hoje ganhamos pela perda de cada um dos outros e perdemos pelo ganho de cada um dos outros, e nossos maiores ganhos vêm da pior de todas as fontes, da morte, a morte daqueles que estão mais próximos e que nos deviam ser mais caros” (MILL, 2001, p. 54-55).

70 costume social que, há séculos, acena para que a toda manifestação da cooperação trabalhe na defesa do poder em detrimento da dignidade humana.

Além disso, cabe salientar que, para Hobbes (2004), o termo costume não é compreendido como a decência de condutas habituais e cotidianas, mas sim como as ações que têm impacto na convivência humana. O autor refuta as concepções de fim último e bem supremo, outrora defendidas na filosofia clássica, para a justificação de uma vida pacífica e harmoniosa, uma vez que “a felicidade desta vida não consiste no repouso de um espírito satisfeito, pois não existe o finis ultimus (fim último) nem o summum bonum (bem supremo) de que se fala nos livros dos antigos filósofos morais” (HOBBES, 2004, p. 91: grifos do autor).

Quanto à relação homem versus poder, anteriormente apresentada, o filósofo inglês defende que o desejo de poder é universal na humanidade. Segundo o autor, tal manifestação tem fim somente na morte, uma vez que, embora seja natural a busca por um prazer superior consequente à efetivação de um prazer menor, a busca por mais para se viver bem é fruto do descontentamento humano e justificaria a competição social. Nas palavras de Hobbes (2004, p. 91), todos os indivíduos têm

um perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder, que cessa apenas com a morte. E a causa disto nem sempre é que se espere um prazer mais intenso do que aquele que já se alcançou, ou que cada um não possa contentar-se com um poder moderado, mas o fato de não se poder garantir o poder e os meios para viver bem que atualmente se possuem sem adquirir mais ainda.

Ademais, conforme o filósofo de Westport, a busca por tal contentamento leva à competição, compreendida na reflexão proposta acerca da cooperação social, como uma antítese passível de impactar negativamente a esfera moral. Além do mais, Hobbes (2004, p. 92) dá indicativos de que tal intuição, justificada no estudo acerca do fenômeno da cooperação social, não está tão equivocada quando fundamenta que “a competição pela riqueza, a honra, o mando e outros poderes leva à luta, à inimizade e à guerra, porque o caminho seguido pelo competidor para realizar seu desejo consiste em matar, subjugar, suplantar ou repelir o outro”.