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Como espero ter mostrado na seção anterior, a questão da relação entre

“estar certo da verdade de uma proposição” e “a verdade de fato” desta proposição parece se resolver em vistas da discernibilidade das condições que permitem estabelecer a certeza da verdade das proposições; isso, ao menos, nas Regras. Mas, como ele procede a isso? Como Descartes discerne o que chamei aqui de verdade de fato de uma proposição da falsidade de fato? Como vimos, sua estratégia já está estabelecida desde a Regra II. Ela consiste em tomar uma ciência que não é considerada como falsa como de fato verdadeira. E uma ciência que, além de ser isenta de vício de falsidade, é também isenta de vício de incerteza. Ela pode ser considerada, devido à natureza de seu próprio objeto e a certeza que se possui por relação ao que se pode saber sobre ele, o modelo de conhecimento a ser analisado como possuindo as características requeridas para que possa ser considerada como de fato verdadeira e da qual se pode ter certeza de sua

verdade. Agora, mais do que considerações de método, nos importa aqui o que faz de uma proposição ou de um conhecimento algo apto a ser tomado como verdadeiro nas Regras. Nisto, creio eu, consiste a gênese da teoria das percepções claras e distintas.

A escolha das ciências como tipos ou modelos de conhecimentos que respeitam as condições estabelecidas por Descartes na Regra II não parece ser sem propósito. Como ele mesmo o afirma, os conhecimentos da Aritmética e da Geometria são as únicas isentas, segundo ele, de vício de incerteza e de falsidade. Estas ciências, então, cumprem com os requisitos iniciais estabelecidos na Regra II, mas possuem, além disso, uma vantagem adicional. Elas não consistem em ciências falsas, e talvez segundo a ótica de Descartes nem poderiam ser consideradas como tais: se é assim, não é implausível que Descartes as tenha tomado como verdadeiras, tendo em vista que o que não é falso parece poder com razão ser considerado verdadeiro. E mesmo, não é implausível também dizer que ele as tenha tomado por verdadeiras propositalmente. O que significa que Descartes pensa estar autorizado a conceber a relação entre “estar certo de algo” e proposições que são “de fato verdadeiras” a partir de conhecimentos que são aceitos como de fato verdadeiros. Se levamos em consideração, por exemplo, a apresentação da geometria através do método axiomático, o que Descartes chama de maneira de demonstrar sintética nas Segundas Repostas, então não há nenhum motivo para que estas ciências, tomadas nelas mesmas, sejam consideradas como falsas. Pois, segundo esta maneira de demonstrar, parte-se de proposições consideradas auto-evidentes e por isso tomadas como verdadeiras, os axiomas e postulados, e deduz-se a partir deles suas proposições e teoremas, de maneira que estes teoremas podem ser considerados como proposições verdadeiras da geometria. Assim, Descartes pode crer estar autorizado a pensar a partir das ciências matemáticas as condições de aceitabilidade de proposições a título de certas e evidentes, ou seja, a pensar a partir deste modelo matemático aquilo que as torna certas e evidentes.

Aproveitemos o ensejo dado pelo exemplo acima, para mostrar algumas das coisas que Descartes parece ter em mente ao falar de conhecimento certo e evidente.

Embora a geometria euclidiana seja tomada como um dos modelos de ciência, sua maneira de demonstrar possui ainda um inconveniente: nem todas as suas proposições podem ser consideradas igualmente evidentes. As suas proposições não são todas evidentes por si mesmas, pois muitas delas dependem de outras proposições e do reconhecimento de que são verdadeiras. Apenas as proposições que são consideradas como axiomas ou postulados, aquelas que são as mais simples, são tomadas como

proposições evidentes. E é justamente por serem consideradas evidentes que elas são ditas serem verdadeiras. O conhecimento da verdade das demais conclusões depende, no entanto, da verdade das primeiras proposições, ou seja, das definições, dos axiomas e postulados. Dado que os axiomas são tomados como verdadeiros, as conclusões tiradas a partir dos axiomas e que tomam os axiomas como premissas, devem ser também tomadas como verdadeiras, desde que a dedução seja correta. Agora, o que Descartes parece levar em consideração, no que se refere a este modelo de conhecimento, é que algumas das proposições desta ciência não podem ser tomadas como falsas, mesmo se excluímos delas as demais proposições, pois, se a verdade dos axiomas e dos postulados depende apenas de sua evidência, não é preciso, para que se as tome como verdadeiras, nenhuma outra proposição ou qualquer pressuposição. Da mesma maneira, a certeza que se pode possuir por relação a elas: elas são consideradas verdadeiras porque são evidentes, e consideradas certas porque consideradas verdadeiras.

Embora certeza e evidência sejam atribuíveis ao conhecimento dos axiomas, Descartes não parece atribuir evidência às demonstrações feitas a partir destas proposições em si mesmas evidentes, mas apenas certeza:

“Mas foi preciso proceder assim [pensando um segundo modo de conhecer além da intuição, a dedução], porque um grande número de coisas são conhecidas com certeza, sem serem elas mesmas evidentes, posto que elas sejam deduzidas dos princípios verdadeiros e conhecidos por um movimento continuo e em nenhuma parte interrompido do pensamento o qual intui cada coisa à parte” (RUC, 9;

AT X-1, 369).

Se, como disse antes, é a evidência das proposições que permite dizer delas que são verdadeiras, estas proposições então não deveriam ser ditas falsas? A reflexão cartesiana da relação entre certeza e verdade não visa afirmar que proposições deduzidas não são elas mesmas verdadeiras. Antes, parece-me, visa distinguir entre conhecimentos que são ditos serem verdadeiros por si mesmos (as coisas per se notas – conhecidas por si) das coisas (talvez, proposições) que são conhecidas a partir de outras (as notas par autrui – conhecidas a partir de, ou através de, outras); ou seja, visa meramente distinguir as coisas que são conhecidas como verdadeiras (ou não falsas) independentemente das demais proposições, daquelas proposições que são conhecidas demonstrativamente a partir destas primeiras. O que Descartes nos diz no trecho supracitado, portanto, por relação à evidência, é que muitas das proposições que consistem em conhecimentos

certos não são “elas mesmas evidentes”, ou seja, conhecidas por si mesmas, enquanto outras proposições o são.

Há ainda um segundo inconveniente na maneira sintética de demonstração.

O que Descartes tem em mente ao longo do desenvolvimento das Regras não é especificamente este modo de demonstrar, mas com certeza três – e talvez mesmo quatro – outras propostas: 1) um método geral de descoberta / resolução de problemas, descrito por alguns comentadores como método analítico e, por outros, como método analítico-sintético; 2) uma certa concepção de ciência, a mathesis universalis, uma ciência da ordem e medida enquanto ciência matemática mais geral que as ciências matemáticas particulares (a Aritmética, a Geometria, mas também a Música e a Astronomia); 3) se não uma concepção de filosofia natural, ao menos um método a partir do qual seja possível explicar qualquer fenômeno físico; 4) e mesmo talvez uma ontologia. Não me deterei em delinear cada uma dessas coisas, mas apenas em considerar brevemente uma diferença entre maneira de demonstrar sintética e analítica.

A primeira é considerada por ele, até onde eu sei, como uma espécie de dispositivo expositório/dedutivo, no qual se apresentam, segundo o modelo da Geometria de Euclides, axiomas, postulados e demonstrações. De fato, se deduz neste modelo, mas a interpretação cartesiana deste é a de que esta dedução não nos mostra a maneira pela qual os conhecimentos foram obtidos ou descobertos, mas apenas são expostos da maneira mais adequada ao convencimento do leitor, consistindo na maneira de demonstrar “mais adequada para arrebatar a adesão do leitor”. É apenas a análise que nos mostra “o verdadeiro caminho pelo qual uma coisa foi descoberta”. Ora, a primeira diferença relevante entre estas duas maneiras de proceder é a de que no modelo sintético se enunciam todos os axiomas e postulados necessários à demonstração de todas as proposições que seguem seu enunciado, enquanto alguns deles não são necessários e, nem mesmo, úteis, para demonstrar uma proposição ou teorema em particular. A segunda diferença é que a maneira de demonstrar sintética não ensina a colher os elementos necessários para a resolução de um problema particular, enquanto para a análise um adequado recolhimento destes elementos é necessário.

Por que estas duas diferenças são relevantes para o presente capítulo?

Porque o que Descartes pretende, com o estabelecimento de um método universal e de uma mathesis universallis, não é construir uma exposição axiomática de uma dada ciência, mas estabelecer as regras segundo as quais seja possível chegar ao conhecimento de proposições sem que, para isso, seja necessário um estabelecimento

prévio de um maquinário axiomático. Sua pretensão é mostrar como é possível construir deduções sem que para isso seja necessário ter estabelecido uma axiomática completa, identificando apenas os elementos necessários para se provar uma determinada proposição, aquilo que se busca conhecer e que é apresentado como o problema em questão20. É na descoberta dos elementos necessários para a prova de uma dada proposição e na ordenação entre eles que as regras de seu método (parece-me) se concentram. É importante notar que isto não implica para ele nem uma recusa do uso da lógica, mas apenas uma recusa de um modelo formal ou formalístico da lógica (e talvez de uma certa concepção de lógica, a silogística aristotélica e suas versões medievais), e tampouco uma recusa da verdade e validade de exposições axiomáticas para as ciências.

O que isso implica com certeza é uma diferença no uso da lógica, que é submetida a uma orientação metodológica e à necessidade de que aquilo que é demonstrado deve ser conhecido de maneira evidente, por um lado, e que os axiomas (sejam eles pertencentes a todas as ciências ou, então, a ciências particulares) devem ser considerados apenas na medida em podem ser intuídos, intuição regulada a partir dos dados levantados para a solução de um problema em particular ou para a prova de uma determinada proposição.

Isso, é claro, não suprime o propósito da escolha cartesiana da Aritmética e da Geometria como modelos de ciências para as Regras, pois elas possuem características que qualquer leitor minimamente versado em Matemática e em Filosofia na época de Descartes estaria disposto a aceitar: são certas, evidentes (ao menos os axiomas ou proposições mais simples) e isentas de falsidade. O que Descartes fará, após um longo percurso que não apresentarei aqui, é eleger as coisas que podem, segundo ele, ser consideradas certas e evidentes e, principalmente, mostrar quais são elas e como elas podem ser ligadas entre si em uma dedução. Estes elementos são as naturezas simples e o que permite descobrir as relações entre elas são as noções comuns, que são contadas dentre as naturezas simples.

20 Alguns comentadores sugerem que o método de análise em Descartes consiste em tomar a proposição em questão como resolvida, de maneira a procurar em seguida os elementos e relações que permitem concluir esta mesma proposição. Em geometria, isto significa encontrar tomar a incógnita como conhecida e relacioná-la com as demais quantidades da equação. Descartes pode abrir mão da axiomática completa, nesse caso, porque precisa se concentrar apenas nas relações necessárias para resolução do problema. Talvez este ponto seja, ao menos em alguma medida, análogo para este caso.