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As observações anteriores não esgotaram, de forma alguma, as questões envolvidas na noção cartesiana de clareza e distinção. Ao contrário, elas suscitam diversas outras questões. Elas podem, creio eu, ser divididas em questões de três gêneros. Primeiramente, as que dizem respeito às próprias caracterizações de Descartes de claro e distinto. É ela tão simples quanto estas poucas observações por relação a seus aspectos formais fazem parecer? A noção de natureza simples consiste de fato em um conceito geral aplicável a muitos objetos particulares? O fato de nem tudo o que é dito ser claro e distinto parecer “proposicional” por relação a seus conteúdos implica que de

fato o que é claro e distinto nem sempre seja proposicional? Naturezas simples gerais são, de fato, o elemento claro na clareza e distinção? E quanto ao aspecto discursivo do pensamento, a clareza e a distinção não abarcariam também tal aspecto? Questões relativas à epistemologia das Meditações. O que significa uma percepção clara e distinta? Como a clareza e a distinção se relacionam com a teoria cartesiana das ideias?

Se toda ideia é, de maneira geral, clara e distinta, como é possível distinguir entre a verdade e a falsidade das percepções? Como a clareza e a distinção estão relacionadas com a noção de certeza? Questões relativas aos objetos considerados claros e distintos.

São eles todos igualmente claros e distintos? São eles de uma mesma ordem de clareza e distinção, quer dizer, sua natureza e, por assim dizer, acessibilidade ao pensamento se diferenciam entre eles? Todos respondem ao mesmo tipo de exigência no que se refere à sua fundamentação ou a exigências diversas? E, no caso de responderem a exigências diversas, por que isso ocorre?

Estruturarei os próximos capítulos e seções com base nestes três grupos de questões11. Começaremos com o primeiro grupo.

Descartes não parece ter abandonado a noção de natureza simples ao longo de sua obra. E se, de fato, ele deixa quase que totalmente de mencioná-las segundo esta nomenclatura, elas não desaparecem de forma alguma. Ao contrário, elas são listadas em diversos momentos com uma insistência e aparente acordo entre as listas que não parece dever ser ignorada. Começaremos com uma retomada destas listas. Nas Regras, ele nos fornece uma primeira classificação dessas naturezas simples, divididas entre as puramente intelectuais, as puramente materiais e as comuns.

“São puramente intelectuais aquelas, que nosso entendimento conhece por uma certa luz colocada em nós pela natureza, e sem a ajuda de nenhuma imagem corporal: é certo que há muitas semelhantes, e que não se pode forjar nenhuma ideia corporal, para nos tornar presentes, o que é o conhecimento, a dúvida, a ignorância, da mesma [maneira]

o que é a ação da vontade, que se pode chamar volição, e outras iguais [pareilles]; todas coisas que conhecemos entretanto realmente, e mesmo tão facilmente, que basta para isto, que participemos da razão”.

11 Este texto não se encontra tão organizado quanto essa divisão faz parecer. Mas ele foi escrito tendo em vistas estes três gêneros de questão e na medida em que cada grupo de questões parecia exigir o tratamento, mais ou menos extenso, dos outros gêneros ou, ao menos, a alusão a eles.

“São puramente materiais aquelas, que não se conhecem senão nos corpos: como o são a figura, a extensão, o movimento, etc.”

“Enfim se deve dizer comuns aquelas, que se atribui tanto às coisas corporais, quanto às espirituais sem as distinguir, como a existência, a unidade, a duração, e outras semelhantes. À qual é preciso enumerar [rapporter] estas noções comuns, que são como certas ligações para juntar entre elas outras naturezas simples, e cuja evidência sustenta tudo o que concluímos ao raciocinar. A saber estas: duas quantidades iguais a uma terceira são iguais entre si; ou mesmo, duas coisas que não podem ser relacionadas a uma terceira da mesma maneira tem entre elas também alguma diversidade, etc.” (RUC, 46; AT X-1, 419)12.

Nas Meditações, listas muito parecidas ressurgem em diversos momentos.

Na segunda, por ocasião da enumeração dos modos de pensar, no contexto da investigação do “que é uma coisa que pensa”, ou seja, por relação a coisas puramente espirituais: “É uma coisa que duvida, que concebe [intelligens], que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente” (OP, 103; AT VII, 28; AT IX-1, 22). Por relação às coisas corporais, na Segunda, Terceira e Quinta meditações.

No exame do pedaço de cera, o que resta após a análise e é conhecido pelo intelecto:

“Certamente nada permanece senão algo de extenso, flexível e mutável” (OP, 104; AT VII, 31; AT IX-1, 24). No contexto da primeira prova a posteriori de Deus, ao enumerar a segunda lista de coisas que são percebidas clara e distintamente por relação a elas e que podem estar contidas eminentemente “em minha natureza”: “Quanto às outras qualidades de cujas ideias são compostas as coisas corporais, a saber, a extensão, a figura, a situação e o movimento de lugar, é verdade que elas não estão formalmente em mim, posto que sou apenas uma coisa que pensa” (OP, 115; AT VII, 44; AT IX-1, 35). E, por relação às comuns, na Terceira Meditação, por ocasião da primeira prova a posteriori para a existência de Deus, aquelas que estão formalmente contidas “em minha natureza”: “Quanto às ideias claras e distintas que tenho das coisas corporais, há algumas dentre elas que, parece, pude tirar da ideia que tenho de mim mesmo, como a que tenho da substância, da duração, do número e de outras coisas semelhantes” (OP, 115; AT VII, 44; AT IX-1, 35).

Na carta a Elisabeth de 21 de maio de 1643:

12 Na tradução de J-L. Marion e P. Costabel, a partir da qual traduzi e citei estas passagens, a gramática latina não é corrigida na versão francesa. Traduzi o mais literalmente possível a tradução francesa, por isso mantive os erros de pontuação e não tentei adaptá-los.

“considero haver em nós certas noções primitivas, as quais são como originais, sob cujo padrão formamos todos os nossos outros conhecimentos. E não há senão muito poucas dessas noções; pois, após as mais gerais, do ser, do número, da duração, etc., que convém a tudo quanto possamos conceber, possuímos, em relação ao corpo em particular, apenas a noção da extensão, da qual decorrem as da figura e do movimento; e, quanto à alma somente, temos apenas a do pensamento, em que se acham compreendidas as percepções do entendimento e as inclinações da vontade; enfim, quanto à alma e ao corpo em conjunto, temos apenas a de sua união, da qual depende a noção da força de que dispõe a alma para mover o corpo, e o corpo para atuar sobre a alma, causando seus sentimentos e suas paixões”

(OP, 310 – grifo meu).

Por fim, nos Princípios, artigo XLVIII, que classifica as coisas que caem sob a percepção entre “uma coisa”, “afecção de uma coisa” ou como “uma verdade eterna”:

“Tudo o que cai sob a nossa percepção, nós o consideramos ou bem como uma coisa, ou uma certa afecção das coisas, ou bem como uma verdade eterna que não tem qualquer existência fora de nosso pensamento. Dentre os conteúdos [percebidos] que consideramos como coisas, os mais gerais são a substância, a duração, a ordem, o número e, se é que há outros do mesmo tipo, os que [também] se estendem a todos os gêneros de coisas. Não reconheço, porém, mais do que dois gêneros supremos de coisas. Um é o das coisas intelectuais ou cogitativas, isto é, pertinentes à mente ou à substância pensante. O outro é o das coisas materiais, ou que pertencem à substância extensa, isto é, ao corpo. A percepção, a volição e todos os modos de perceber quanto de querer referem-se à substância pensante; à extensa, porém, a grandeza (ou seja, a própria extensão em comprimento, largura e profundidade), a figura, o movimento, o lugar, a divisibilidade das próprias partes e coisas que tais” (PP, 64-5; AT – grifo meu).

E, no artigo seguinte, ele enumera algumas das verdades eternas: “Desse gênero são: é impossível que o mesmo seja e não seja ao mesmo tempo; o que foi feito não pode não ter sido feito; aquele que pensa, enquanto pensa, não pode não existir” (PP, 65; AT)

É certo que estas listas não reproduzem sempre o mesmo conteúdo de maneira precisa, ou seja, que tudo o que é enumerado em uma esteja também na outra.

Uma olhada para elas é suficiente para perceber que em diversos momentos elas não estão precisamente de acordo umas com as outras – ao menos textualmente de acordo.

Umas enumeram mais coisas do que outras em cada gênero de naturezas simples listados. Umas qualificam estes gêneros, permitindo identificar a que tipos gerais de

coisas estas naturezas simples se aplicam enquanto outras não, subordinando as demais naturezas simples a uma noção primitiva, como no caso das listas posteriores por oposição às listas apresentadas nas Regras; umas as identificam apenas de acordo com as faculdades usadas para chegar ao conhecimento delas, enquanto outras não. Elas parecem ser organizadas frequentemente a partir de classificações distintas, o que pode ter por consequência uma divergência por relação a seus conteúdos (por exemplo, quando organizadas a partir do fato de que são conhecidas pelo intelecto puro ou a partir do fato de que são referidas a objetos intelectuais ou materiais). As listas pertencentes às obras posteriores enumeram uma classe a mais de naturezas simples, a das coisas conhecidas sob a noção primitiva da união entre corpo e alma (que é uma classificação que explicitamente não aparece nas Regras e, talvez também nas Meditações); e das verdades eternas, que não aparecem nas Regras, não ao menos a título de verdades eternas13, e cujo nome também não aparece nas Meditações e, se bem me lembro, nem nas Respostas às Objeções.

Mas também é certo que Descartes nem sempre fornece listas exaustivas em suas classificações de coisas passíveis de serem conhecidas e nem sempre parece considerar necessário fazê-lo. E isto pelos mais diversos motivos: nas Regras, não o faz porque talvez não tenha como fazê-lo, na medida em que se trata de um texto não acabado, por um lado, mas também de um texto que visa estabelecer o funcionamento geral de seu método; na medida em que se trata de um projeto e de um texto de método (que parece envolver, no entanto, também uma ontologia [MARION, 1975, pg. 19-34 e 257-269]) não parece ser necessário dar listas exaustivas de naturezas simples; no entanto, a própria classificação é exaustiva, ao menos no que se refere às coisas que podem ser conhecidas pelo intelecto (o que exclui a lista da união entre corpo e alma14), as únicas as quais o método pode ser aplicado (já que para Descartes sentir não é questão de método, embora sua classificação a título de ideias seja). Outras vezes, porque se tudo o que há para conhecer das coisas fosse classificado nas listas, elas se

13 Talvez seja possível traçar um paralelo entre as “noções comuns” das regras, que dizem respeito às relações entre naturezas simples e as “noções comuns” ou “axiomas” dos princípios, que são caracterizadas a título de verdades eternas. No entanto, esta não é uma tarefa a qual me proponho aqui.

Acredito que esta tarefa deverá confrontar ao menos duas dificuldades: a primeira diz respeito à maneira com a qual Descartes pensa a “formação” ou, talvez seja melhor dizer, a descoberta de axiomas por relação à função e ao lugar que eles ocupam no sistema; a segunda diz respeito à questão da fundamentação da eternidade das verdades eternas em Descartes. Ou seja, a primeira diz respeito à maneira com que Descartes entende a relação entre axiomas, proposições e teoremas, assim como sua relação com o método e a segunda aos argumentos e critérios metafísicos para que se possa afirmar sua eternidade.

14 Ver a lista apresentada na carta a Elisabeth de 21 de maio de 1643, citada logo acima.

tornariam demasiadamente longas e, mesmo, porque sua extensão pode ser indefinida.

Neste sentido, Descartes não enumera tudo o que pode cair sob a classe geral de pensamentos ativos, classificados sob a designação da vontade ou, mesmo, todas as ideias intelectuais: basta aqui que se possa identificar de maneira geral, sob um traço que distinga estes modos de pensar de todos os outros: para o entendimento ou percepções tomadas em geral, basta que sejam classificados a título de passivos; para as volições, a afirmação e a negação, que sejam classificadas a título de atividades do pensamento. Outras vezes, porque alguns dos elementos da lista podem ser postos em relação com outros e dependem deles, de maneira que ao enumerar algum deles, os outros já são de alguma maneira enumerados: como a noção de lugar nos princípios, que depende apenas da noção de extensão e, talvez, de figura, na medida em que a própria noção de lugar pode ser explicada através de uma figura; a de divisibilidade, que implica apenas a noção de extensão, na medida em que o que é extenso segundo o conceito cartesiano de extensão é, também, divisível. Outras vezes ainda porque frequentemente estas naturezas simples não podem ser enumeradas, na medida em que são indefinidamente numerosas e dependem apenas do conhecimento das coisas (mais) particulares ou do próprio pensamento para serem conhecidas: como as verdades eternas, que são axiomas ou noções comuns, algumas das quais não são reconhecidas nas Regras, mas o são nas Meditações e nos Princípios: “aquele que pensa, enquanto pensa, não pode não existir” não está, e nem poderia estar, presente na primeira; mas está presente nas últimas. Por fim, porque algumas dessas classificações e nomenclaturas dependem de desenvolvimentos doutrinais posteriores: assim, as noções comuns são aludidas nas Regras, mas seu estatuto de verdade eterna só começa a ser compreendido por Descartes nas cartas de 6 e de 27 de maio 1630 (AT I, 147-154;

CSMK, 24-26 – em ambas as edições as cartas localizam-se em sequência), ambas a Mersenne, e de fato enunciada nos Princípios. Não me estenderei em discutir as minúcias relativas à aceitação da noção de naturezas simples no pensamento posterior de Descartes, mas assumirei isto como um pressuposto, pois me parece ser mais lucrativo aceitá-las para tentar compreender a filosofia cartesiana que recusá-las e partir do nada. No mais, se as aceito para explicar a filosofia cartesiana, não vejo porque não devo aceitar também a nomenclatura, e, portanto a manterei no que se segue.

Outra diferença que pode, e deve, ser traçada entre a primeira enumeração apresentada nas Regras e as mostradas nas obras posteriores é o claro peso ontológico atribuído a elas nas obras posteriores e aparentemente ausente na primeira. Enquanto

nas Regras as naturezas simples parecem possuir um estatuto meramente epistemológico, a título de coisas a serem conhecidas por parte do intelecto, nas obras posteriores elas ocupam o papel de atributos e modos de coisas realmente existentes ou, então, possivelmente existentes; sendo que, nos Princípios e nas Meditações até mesmo a substância parece figurar a título de algo passível de ser pensado15. No entanto, parece um juízo demasiado apressado assumir uma completa exclusão entre os âmbitos epistemológico e metafísico em que estas duas obras se desenvolvem. Afirmar que as Regras não possuem nada a dar em contribuição para a compreensão das obras de metafísica, na medida em que a primeira apenas esboça um plano de uma ciência universal que não parece encontrar eco nas obras metafísicas, permanecendo apenas no âmbito da epistemologia cartesiana, é ignorar o fato básico que as obras de metafísica pretendem, dentre outras coisas e talvez mesmo, sobretudo, fundar a ciência. Seria ignorar que percepções claras e distintas não são uma exclusividade da metafísica.

Antes de deixar a apologia às Regras de lado e partir para nossa análise, é importante notar o que há de comum em todas estas listas. Todas elas são divididas em naturezas simples puramente intelectuais, puramente materiais ou comuns, com exceção das últimas que adicionam a ela coisas que pertencem à união entre a alma e o corpo. Os modos da união não serão levados em consideração em nossa análise. Além disso, todas elas concordam entre si em que o conhecimento destas noções depende, sobretudo, do entendimento, e que apenas as naturezas simples materiais e as naturezas simples que são noções comuns (as que servem para conectar as outras naturezas simples entre si) podem – mas não necessariamente devem – ser conhecidas com a ajuda da imaginação.

Por relação às naturezas simples comuns, elas parecem quase todas serem conhecidas apenas pelo entendimento, mas muitas vezes poderem ser representadas pela imaginação ou serem atribuídas às coisas com a ajuda da sensibilidade. De fato, é difícil conceber como Descartes poderia afirmar que as noções de substância e de existência poderiam ser coisas pensadas pela imaginação, na medida em que não parecem conter nada de imaginável por si só: embora possamos falar em substância extensa, poderíamos representar pela imaginação o que é a substância ou o que é a existência?

15 A oposição que tenho em mente é a da noção de existência nas Regras por relação à de substância nas Meditações e Princípios. É difícil dizer se tratam de uma mesma coisa ou não. Mas, um indício pode ser o seguinte: a noção de existência é uma noção mais geral e menos precisa que a de substância, pois a noção de existência pode caracterizar indiferentemente tanto os modos quanto a própria substância, tanto a essência de algo quanto seus acidentes. Por outro lado, a noção de substância caracteriza apenas aquilo que pode subsistir por si, se distinguindo assim dos modos, que não podem existir por si, mas apenas em outro ou por outro (cf. Exposição Geométrica).

(citar Regras). Por outro lado, a noção de extensão deve ser pensável por relação à noção de substância, pois, de outra maneira, não seria possível falar em substância extensa. Da mesma maneira a noção de existência não parece ser imaginável ou sequer sentida, mas apenas conhecida pelo entendimento, embora o juízo de existência dos corpos nas Meditações dependa da sensibilidade. Apenas a noção de duração ou, talvez, a de tempo, parece poder ser representada pela imaginação de alguma maneira. Quanto às naturezas simples de substância e existência, assumirei que são conhecidas pelo entendimento apenas, naquilo que elas têm de cognoscíveis.