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DE CONHECIMENTO ATRAVÉS DA ESCRITA

Gislene da Silva Oliveira13

VII

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer, Porque eu sou do tamanho do que vejo

E não do tamanho da minha altura.

...

Alberto Caeiro14 INTRODUÇÃO

O presente texto se organiza a partir dos seguintes pontos: a) relação entre ciência e ciência tradicional,

b) as marcas da territorialidade na construção dos saberes,

c) caminhos da pesquisa sobre ensino-aprendizagem da escrita na realidade amazônica.

Seu objetivo é verificar possibilidades para pesquisa do ensino-aprendizagem da linguagem escrita na realidade amazônica, considerando a relação entre os saberes tradicionais e o conhecimento científico.

CIÊNCIA OU CIÊNCIA TRADICIONAL?

Inicialmente é fundamental diferenciarmos ciência e ciência tradicional. O que diferencia a ciência da ciência tradicional? O que faz com que a primeira, em muitos casos, se sobreponha à segunda?

CUNHA (2007), em seu artigo intitulado Relações e dissenções entre saberes tradicionais e saber científico, defende a ideia de que são históricas e profundas as diferenças

13 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Linguagens e Saberes na Amazônia, Linha de Pesquisa Educação, Cultura e Sociedade da Universidade Federal do Pará (UFPA), Campus de Bragança/PA. E- mail:100gisoliveira@gmail.com

14 CAEIRO, Alberto. “O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).

Ano VI - Nº 01 - jan./jun. 2019 - Natal/RN - ISSN 2317-8841

44 entre conhecimento científico e conhecimento tradicional e estabelece relações analógicas entre

essas duas formas de conhecimento.

Segundo a autora, a ciência se afirma como hegemônica, colocando-se como verdade absoluta até ser sobrepujada por outra verdade. Por sua vez, o conhecimento tradicional dispensa o caráter da universalidade e se coloca mais tolerante ao aceitar de forma mais flexível explicações divergentes. O caráter hegemônico do conhecimento científico é evidenciado, inclusive na linguagem, na qual para se referir a ciência tradicional faz-se necessário o uso do adjetivo como forma de especificação, enquanto a referência à “ciência” (ciência ocidental) é feita com o termo linguisticamente não-marcado.

Mais adiante a autora afirma que, embora as duas formas de conhecimento sejam em muitos aspectos diferentes, são passíveis de comparação. Escreve:

Há também um problema de saber se a comparação entre saberes tradicionais e saber científico está tratando de unidades em si mesmas comparáveis, que tenham algum grau de semelhança. A isso, uma resposta genérica mas central é que sim, ambos são formas de procurar entender e agir sobre o mundo. (CUNHA, 2007) Outro ponto apresentado pela autora diz respeito ao método utilizado por ambas, pois “A ciência moderna hegemônica usa conceitos, a ciência tradicional usa percepções” (CUNHA, 2007).

Neste sentido, é fundamental ao pesquisador, em especial aquele que tem seu o seu olhar voltado para a pesquisa dentro da realidade amazônica, considerar qual ou quais as possíveis interseções entre o saber científico e os saberes tradicionais para que, ao analisar os objetos/sujeitos pesquisados, uma ciência não se sobreponha à outra, mas que, tendo métodos e lógicas diferentes, possam estabelecer uma relação recíproca de contribuições entre saberes. “O problema, então, é achar os meios institucionais adequados para, a um só tempo, preservar a vitalidade da produção do conhecimento tradicional, reconhecer e valorizar suas contribuições para o conhecimento científico” (CUNHA, 2007).

TERRITORIALIDADE E SABERES

Little (2002) define a territorialidade como o esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico, convertendo-a assim em seu “território”. Em consequência disso, território se definirá então como “um produto histórico de processos sociais e políticos.” Vale ressaltar que os sujeitos desses saberes tradicionais são organizados “em agrupamentos humanos categorizados como

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45 “populações”, “comunidades”, “povos”, “sociedades”, “culturas” – cada uma das quais tende a

ser acompanhada por um dos seguintes adjetivos: “tradicionais”, “autóctones”, “rurais”, “locais”, “residentes” Little (2002).

Retomando os versos que abrem este texto, como explicar ou entender que o sujeito vê, de uma aldeia, o quanto se pode ver do universo? Como compreender alguém ser do tamanho do que vê e não considerar sua estatura física?

Surge aqui mais um dos dilemas do pesquisador: compreender que os saberes (tradicionais) atendem à lógica das qualidades sensíveis e que, portanto, a visão de mundo e das relações homem-natureza que nele existem são entendidas pelas percepções e pelo alcance de cada cultura, e estão, portanto, diretamente ligadas às noções de território e territorialidade.

Além disso, a territorialidade exercida, pelos povos tradicionais, em especial na realidade amazônica dada sua vastidão territorial, sua imensa biodiversidade e as inúmeras comunidades com suas relações sociais diversificadas, multifaceta-se em métodos e modos de vida em comunidade, que seguem uma lógica própria de saberes repassados pelos mais experientes e apreendidos pelos mais jovens. Esta lógica nem sempre atende aos parâmetros definidos pela visão urbanocêntrica, enraizada na ideologia do desenvolvimento urbano e industrial, cujos objetivos são as tecnologias mais avançadas, de ponta, as chamadas “high tech”.

Conhecer, desde o Iluminismo, virou pressuposto para experimentar e respeitar, e porque não dizer reconhecer-se, pois em oposição ao outro marcamos um território, uma referência, tomamos uma posição diante do que vemos e ouvimos, mesmo quando esta posição não seja explícita ou, ainda, intencional. Este posicionamento parte sempre de um centro de referência, de onde projetamos nossos marcadores, muitas vezes silenciosos.

A construção do objeto de pesquisa acontece por meio das relações práticas, portanto conduzir a pesquisa, considerando as relações entre o conhecimento científico e os saberes tradicionais e populares, a partir da desconstrução do seu próprio centro referencial, e certamente dos seus marcadores, sejam eles declarados ou velados, será sempre um dos grandes desafios do pesquisador.

Essa condução exige cada vez mais conhecimento da realidade pesquisada, para que desse modo se venha a reconhecer e vivenciar os saberes, sejam eles tradicionais ou populares, não como relegados a segundo plano em relação ao saber científico, não como a ciência tradicional, não como tecnologia de “segunda mão” ou como saberes nos quais a tecnologia esteja ausente, e sim tal qual um conjunto de valores e significados que são construídos culturalmente e, que portanto, carregam as marcas da historicidade, da ocupação, do sentimento

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46 de pertencimento, das disputas políticas, enfim conjunto de valores cuja a tessitura é definida

pela territorialidade.

CAMINHOS DA PESQUISA SOBRE ENSINO-APRENDIZAGEM DA ESCRITA NA REALIDADE AMAZÔNICA

Sendo a linguagem escrita um saber cultural e historicamente constituído que utiliza a tecnologia gráfica para a comunicação e interação das ideias humanas, cabe então considerar os fatores históricos, sociais e contextuais que envolvem a sua produção, mais especificamente no âmbito escolar, pois é comum ouvir de professores que os alunos, além de não gostarem da disciplina Língua Portuguesa, não conseguem fazer uso da língua, ou pelo menos, não conseguem se apropriar dos conteúdos propostos pelo currículo da disciplina.

A hipótese aqui levantada é que não seja verdade que a causa desse quadro insatisfatório esteja somente no desinteresse dos alunos pelas aulas de língua portuguesa, como algumas falas nos conduzem a acreditar. Há também que se refletir sobre o papel da escola em planejar, implementar e orientar atividades de escrita que desencadeiem, apoiem e orientem a ação e reflexão do aluno, a partir de sua realidade, procurando garantir uma aprendizagem mais efetiva da linguagem escrita.

A linguagem torna-se dessa forma, essencial, para as análises sociais, assim como o signo torna-se essencial para o semiólogo. Nesse aspecto, a análise estrutural permite identificar os signos e os códigos dentro do texto e constatar que, debaixo dos aspectos naturais da narrativa, encontram-se os aspectos sociais (BORGES, 2014).

Refletir acerca do ensino/aprendizagem da linguagem escrita, sobre suas