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Nos painéis de tamanho monumental, exibidos na X Bienal de Berlin, uma grande cerimônia é representada, neles o motivo central é o peixe sagrado Tanze que transmite o segredo da vida a Sikan. Esta por sua vez a conta a seu companheiro crendo em sua lealdade, entretanto ele repassa o segredo aos demais homens que decidem sacrificá-la. Estes painéis resultam de um trabalho incessante de texturização e colagem de diversas camadas de papéis em cartão que trabalham apenas com tons de cinza, preto e branco. A cosmologia em torno de um segredo, que aproximam o feminino de figuras simbólicas como pássaros e peixes, apresenta muita similaridade com a cosmologia do culto a Baba Egun, experiência que influenciou a artista de Medicina do Amor, em sua instalação anterior, Do You Miss Me? Sometimes, not always. Conforme é possível verificar, tanto nas comunidades da Irmandade da Boa Morte quanto no Ile Agboula de Itaparica, a rivalidade entre gêneros e usurpação do poder sobrenatural é uma constante nas cosmologias de matriz africana no Brasil. A repetição da temática na obra de Belkis reafirma esta questão em outros ambientes diaspóricos.

A relevância tanto estética (no que tange aos códigos simbólicos), quanto cosmogônica do tema, ganha um sentido maior diante de seu suicídio, após toda uma carreira dedicada à pesquisa da sociedade secreta masculina criada a partir do sacrifício de Sikan. A justaposição que a artista faz de sua própria vida e desta figura promove uma dimensão performática de sua morte, não nos termos formais, mas no sentido da realização total de uma ação. Uma vez que a proximidade de sua morte acompanha a intensificação temática de sua obra, à medida que, a pesquisa realiza-se a partir de uma sociedade exclusivamente masculina, onde a figura central é um ser feminino que deteria o poder sobre o invisível, e cuja traição deste segredo levaria a seu sacrifício. A escolha curatorial em expor, no mesmo espaço, os painéis de La Consagracion (1991) e obras como Dejame Salir (1998), evidencia a maturidade formal da artista a partir de seu comprometimento com a pesquisa temática, além de deixar visível a fusão entre vida e obra.

FOTO 15 - Deja Me Salir, 1998

FONTE: ACERVO PESSOAL

Neste sentido, a abordagem curatorial da temática do suicídio dialoga simultaneamente com o debate sobre gênero, revelada na organização expositiva do espaço. Entretanto é possível observar o endereçamento de múltiplas audiências234

também empreendido pela Irmandade da Boa Morte: que consiste em múltiplas camadas de comunicação. Embora o suicídio de Ayon esteja na referência da obra, a informação de que a instalação Medicina do Amor (2018) contém imagens e faz referência à outra obra produzida a partir de um suicídio é acessivel apenas ao público que detém certa proximidade com o universo de arte contemporânea africana, permanecendo desconhecida para o public hegemonico. Ao mesmo tempo, em ambos os casos, a

compreensão do ato de retirar a própria vida, no que tange motivos e procedimentos de cura, extrapolam as noções eurocêntricas de vida e morte.

Esta escolha curatorial torna-se mais visível na última e terceira obra a ser analisada neste espaço. Ao sair da sala expositiva principal deste pavilhão o visitante é levado a entrar em uma galeria, na qual podem ser vistos desenhos de Ana Mendieta (1948-1985). A artista cubana cuja morte é controversa teria cometido suicídio ao se jogar do 34º andar do apartamento no qual ela vivia com o marido, o também artista Carl Andre, acusado do assassinato e posteriormente absolvido três anos depois. A escolha por evidenciar a biografia de Ayon e em seguida expor os trabalhos de Mendieta, acentua a questão de gênero enquanto uma zona de conflito. De maneira paralela, ao aproximar os trabalhos, a curadoria questiona os limites entre o machismo e suas práticas letais tal como o conhecemos no ocidente, ressaltando ainda lógicas não-ocidentais acerca da violência de gênero.

No caso específico de Mendieta, soma-se ainda a grande possibilidade de um suicídio forjado, de maneira a reforçar a vulnerabilidade de determinada categoria biológica no nível social. Esta dimensão expográfica instrumentaliza a morte, em detrimento do atavismo biológico como instrumento de interpretação, tal como indica Oyěwùmí235. Esta carga é elaborada a partir de uma relação alternativa com a noção de

gênero evidenciada pela poética da artista, em seus desenhos pouco exibidos, através dos quais ela produz formas a partir da impressão de uma folha. Na série de desenhos há um exercício de desconstrução das formas naturais como uma tentativa de regressão de unidades visuais encontradas na natureza. Por vezes as imagens se assemelham a imagens do ato sexual de orgãos reprodutivos, mas também a de outras formas naturais como cabaças. Esta última semelhança não é ao acaso, de acordo com a cosmologia yoruba a noção de feminino está amplamente relacionada com a figura da cabaça, sendo este um espaço de poder. Nos mitos onde o poder feminino é usurpado, ele relaciona- se com um pássaro, cuja morada é a cabaça, e a conquista de tal poder estão exatamente em ludibriar as donas do pássaro, as eleye, a fim de adquirir o poder sobre a morte. Segundo a mesma cultura, a dona das cabaças é a proprietária do segredo do Egungun, e através de sua ludibriação, os homens têm acesso à roupa, seus conteúdos

mágicos e lhe dão voz. Este é o mito fundador do Baba Egun, a sociedade exclusivamente masculina a qual a fotógrafa Mimi Cherono Ng 'ok teve acesso, cujo um dos membros a aconselhou quanto a Do you miss me? Not Always (2015) que deu origem a Medicina do amor (2018), exibida na bienal.

Tal como o mito sugere, a figura feminina usurpada seria detentora do segredo, e este mito é fundador de uma sociedade masculina, La Consagracion I, II e III de Belkis Ayon também faz menção a uma figura central feminina, cuja traição do segredo dá origem a sociedade na qual mulher não é permitida. Nas obras de Belkis a representação do feminino é um pássaro tal como na mitologia yoruba, onde este repousa em uma cabaça. Elemento retratado no último ciclo de obras, de autoria de Ana Mendieta, cuja grande referência conceitual era a Santeria236, expressão de matriz africana fortemente

influenciada pela cultura yoruba.