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3 A TRAVESSIA: NOTAS DE NAVEGAÇÃO

“Não sabemos como você conseguiu vir para cá, provavelmente esta linha do meio, chamada fun, que aponta os ancestrais. Mas definitivamente você precisará fazer um ritual para voltar. Caso contrário, é melhor nem voltar até que o sacrifício seja feito. Alguns de vocês não podem voltar você não poderia. Você fez algum sacrifício no Brasil antes de chegar aqui288?

Neste capítulo, articularei as fases da minha pesquisa artística a partir dos campos de ação das forças que chamo de contra-necropolítica tal como exponho no capítulo II. Procuro com isso demonstrar a interação prática destes campos de força no meu trabalho e como a dinâmica entre estes tensores interferiram nas escolhas que me levaram de maneira inesperada ao encontro com os D'Almeida. Posteriormente esboço um quadro entre as relações de poder político e transcendental revelados por ocasião de minha visita a costa Oeste do continente africano, e mais nitidamente compreendidas no processo de sacrifício e iniciação ritual ocorrido ao final do trabalho de campo.

"O mundo é uma jornada, o outro mundo é o lar. Filho de Hu, o imutável e misterioso oceano, Dangbelissa vive no mar através do qual transita entre o lar e a jornada trazendo fortuna aos viajantes289".

Para nós, afro-descendentes nascidos na diáspora, de todos os danos causados pela escravidão e sua condição fundante, um em específico é imensurável, em decorrência aos efeitos amenizadores da temporalidade na percepção do deslocamento forçado é minimizado, senão totalmente esquecido. De fato, ao pensarmos a escravidão como um rapto em larga escala, nascer nas Américas é algo como conceber o cativeiro como lar, de modo que o retorno tão sonhado pelas primeiras gerações é uma possibilidade distante ou nula para os afrodescendentes na atualidade. Esta condição é a premissa fundamental para o duplo pertencimento290, uma vez que é a

separabilidade291 a premissa de existência num mundo onde a existência está

fragmentada no eixo necropolítico de negação ou possibilidade de auto representação.

288 [Kofi Argoso, artista plástico e sacerdote de Fa em consulta realizada improvisada em visita curatorial durante trabalho de campo

no Ghana, janeiro de 2019]

289 Proverbio Vodoun. 290 GILROY, 2001, passim. 291 SILVA, 2017, passim.

Deste modo, a seguir exponho meu exercício artístico de auto-inscrição292, a

partir das ferramentas que me foram apresentadas durante os nove anos de pesquisa em torno dos ritos de morte.

Meses depois de minha primeira festa da Irmandade da Boa Morte fiz minha segunda visita a Europa, na ocasião do meu primeiro rito da série Gunga que eu realizaria pelos próximos nove anos. Após ter participado pela primeira vez do rito fúnebre secular, algumas questões passaram a mediar minha relação com o mundo, inaugurando outra interface entre eu e o ocidente, do qual sempre me senti exterior. Esta volta a Europa inaugurou um momento singular na minha relação com o continente africano, um momento de quebra com a sequencialidade onde de alguma forma os lugares em seus detalhes, os hábitos, tudo remetia a acumulação primitiva do capital293

que exigiu três séculos de sacrifícios em massa. Neste contexto inicio Gunga, um ciclo de danças cujo título remete aos primeiros povos escravizados, os bantus, gunga significa o feiticeiro em kikongo. O objetivo dos ritos era desde o inicio promover uma ação decolonial que tangesse o campo ancestral.

De maneira similar a Oliveira Mendes, estes autores apontam a alta freqüência de mortes voluntárias entre os cativos, seja na forma passiva de deixar-se morrer de tristeza, como no banzo, seja por meios ativos, como os suicídios por enforcamento, afogamento, uso de armas brancas etc. O desgosto pela vida e o desejo de morrer são atribuídos pelos narradores a reações nostálgicas decorrentes da perda da liberdade e dos vínculos com a terra e grupo social de origem, e ainda aos castigos excessivos impostos pelos senhores.

(ODA294, 2007, p. 348)

Neste sentido, tal como na prática artística de Mimi Cherono (descrita no capítulo 2), pode-se observar a produção em massa do que Leite295 descreveria como morte

negativa, aquela antes da produção de uma senioridade e carregada de violência. Assim como pudemos observar para as tradições zulus, povo integra o grupo de etnias conhecidas como bantu (SENSATI296, 2008), tais mortes também constituem anomalias

graves que se abatem por toda comunidade uma vez que cessa com a interação entre o

292 MBEMBE, 2001, passim. 293 SILVA, 2017, passim.

294 ODA, Ana Maria Galdini Raimundo. O banzo e outros males: o páthos dos negros escravos na Memória de Oliveira Mendes.

Revista Latino Americana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. 10, n. 2, p. 346-361, jun. 2007. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-47142007000200346&lng=en&nrm=iso. Acesso em 20 Jan. 2020.

295 LEITE, 2008, passim.

296SESANTI, S. The media and the Zuma/Zulu culture: an afrocentric perspective. In. HADLAND, E.; LOUW, E.; SESANTI, S.;

sujeito e o grupo, de modo que é preciso mover a alma do morto do lugar de óbito. Em Banzo, os arquivos da extinta biblioteca do Troppeum Museum foram consultados, nesta pesquisa foi possível encontrar um porto de precificação e escoamento de escravizados no centro de Amsterdam. Neste lugar deu-se a primeira performance do ciclo Gunga. O rito Banzo tinha por objetivo promover uma ação de cura sobre aqueles que haviam tido mortes negativas, no intuito de produzir um ritual que diminuísse este efeito, de modo a transformar ou neutralizar seu conteúdo através de uma ação fúnebre positiva. Nesta ação, além de interagir com o mar enquanto entidade atemporal; articulei cores que dialogam mutuamente com os ancestrais (branco) e com a vida (vermelho), como pode ser visto nas descrições da Otun Iya Ile Efun, no sentido de tangir sua dimensão ancestral. Estas cores também são usadas pelas integrantes da Irmandade da Boa Morte em sua ação ritual.