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Capítulo 2: Da Consciência

3. Consciência dos objetos

Antes de tecermos quaisquer comentários a respeito da chamada «consciência dos objetos», acreditamos que deveríamos considerar, mesmo com rápidas pinceladas, as

91 Veja nesse sentido: Cardoso, L; Marins, F. ; Magalhaes, R.; Marins , N. et all(2015) Abstract

Computation in Schizophrenia detection through artificial neural network based systems; The scientific World Journal, Vol. 2015 pp1-10

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Waters, F. ; Badcock, J. (2010) First-rank, Symptoms in Schizophrenia: Reexamining Mechanisms of Self- recognition; Schizophrenia Bulletin; vol 36, º3 p. 510

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Kean, C. (2009) Silencing the self: Schizophrenia as a self-disturbance; Schizophrenia Bulletin; Vol 35; nº6 pp. 1034-1035

denominadas «desordens da orientação». Pelo seguinte fato: a orientação, depende, antes de mais nada, da integridade do estado da consciência e da perceção dos objetos . Não podemos perder de vista que a orientação, quer seja em relação a «si mesmo» quer em relação «ao tempo e ao espaço», são a expressão última de uma série de experiências e de atos de apreensão significativa que ocorrem no «campo da consciência».

Do ponto de vista técnico, lançamos mão dos termos: autopsíquica (referente a orientação referente a si próprio) e alopsíquica (no que toca a orientação em relação ao tempo e ao espaço)94 .

Antes de avançarmos, cabe valorizar um outro aspeto: as alterações do espaço e do tempo surgem nomeadamente em estados patológicos definidos, mas também sempre, que se perturbe, mesmo de forma indelével, a relação de estreita interdependência entre o Eu e o Mundo. Basta um exemplo para nos lembrarmos deste elo que une o nosso Eu e o perimundo: quando estamos a aguardar uma notícia agradável, o tempo afigura-se- nos como demasiadamente longo e arrastado. As «vivências» que temos do espaço também são alteradas dentro desta relação Eu-Mundo.

Um exemplo: a distância percorrida de retorno à casa parece-nos menor do que quando iniciamos o percurso de ida mesmo que a distância seja a mesma.

O estudo da espacialidade e da temporalidade insere-se no que é denominado «qualidades primordiais das vivências»; ao lado da capacidade mnemónica e da chamada «atividade do Eu» que já tivemos ocasião de desenvolver.

As doenças psiquiátricas podem acarretar uma desestruturação do tempo Por outro lado, a dimensão espacial, para apresentar este mesmo tipo de desestruturação, exige uma alteração mais profunda da personalidade, tal qual observamos nos quadros clínicos de feitio demencial ou nos estágios finais de um processo esquizofrénico.

Vale a pena destacar a íntima conexão entre as dimensões de tempo e de espaço. O tempo objetivo passa a ter sentido ao referir-se ao espaço. Dito de outra forma: quando ambas as dimensões se referem a «algo» ou a «alguém».

Ratificando um ponto de vista essencial: a orientação no espaço e no tempo é um rendimento psíquico de complexidade e que nos permite ter consciência e interagir com

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o meio circundante. Uma boa orientação temporal e espacial acontece, em última instância, graças à plena coordenação de específicas funções psíquicas. Poderíamos apontá-las: a memória, nomeadamente as suas capacidades de fixação, conservação e evocação dos engramas; a atenção; o pensamento racional e a compreensão.95

Jaspers diz-nos a este respeito: «espaço e tempo são reais para nós somente através do seu conteúdo. É verdade que nós os concebemos como um vazio, apesar de nós tentarmos retratar este vazio, para nós mesmos em vão. Como este vazio, eles compartilham uma característica básica de uma forma quantitativa; nós encontramos dimensões, homogeneidade, continuidade, infinitude. As partes então constituídas não são, contudo, instanciais de um universal chamado espaço ou tempo, mas partes de um todo percetual»96.

A dimensão «quantitativa» na conceção jaspersiana vem a ser complementada pelo caráter de «qualidade». Este caráter de «qualidade» surge desde que ocorra, para um tempo e espaço, um esclarecido conteúdo. Em suma: um objeto intencional.

O interesse jaspersiano, no que diz respeito às dimensões do tempo e do espaço, filia-se como eles são realmente experienciados, isto é, como são realmente vivenciados e posteriormente comunicados.

Jaspers continua a guiar-nos: «ambos, espaço e tempo existem para nós em um número de configurações básicas, penso que o que eles têm em comum não é sempre claro imediatamente. No que diz respeito ao espaço nós temos de distinguir: 1- o espaço é percebido como uma estrutura qualitativa - quando eu o vejo da minha própria orientação tendo como centro o meu corpo, isto é, esquerda ou direita, acima ou abaixo, longe ou próximo. Este é o espaço que eu contacto em torno de mim, como eu vivo e me movo, aquilo que os meus olhos alcançam, o lugar onde eu estou; 2- o espaço objetivo em três dimensões, o espaço através do qual eu me movo, onde constantemente o tenho comigo e o entendo como meu imediato espaço e de orientação. 3- espaço teórico, incluindo o espaço não euclidiano da matemática – o espaço que é

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No campo da clinica, as formas mais representativas de desorientação temporo-espacial as encontramos sobre a rubrica de: desorientação amnésica, apática, demencial, oligofrénica ou confusional.

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Jaspers, K. (1997) General Psychopathology, The Johns Hopkins University Press; Baltimore. Vol I , Chapter I, Section One; p.79

simplesmente uma construção teórica» e mais adiante prossegue Jaspers: «em relação ao tempo, nós temos que distinguir: o tempo da experiência, o tempo do relógio, cronológico e o tempo histórico e o tempo como aspeto histórico da existência do indivíduo»97.

Enfim, o espaço e o tempo encontram-se sempre presentes, mesmo não sendo «objetos primários», eles encontram-se sempre revestidos de «objetividade». Jaspers prefere seguir os passos de Kant e lembra que o filósofo de Konigsberg chamava o tempo e o espaço de «formas de intuição».98

O nosso próximo passo será a apreciação de alterações espaciais vividas, nomeadamente, por doentes esquizofrénicos, relatadas por Jaspers.

. As seguintes «vivências» podem ocupar o «campo da consciência»: «1. objetos podem parecer menores (micropsia) ou maiores (macropsia) ou oblíquos, mais crescidos de um lado ou de outro (dismegalopsia); 2º - experiências de espaço infinito; 3º - tal qual o conteúdo da perceção, a apreciação do espaço também assume um caráter afetivo»99. Vale a pena, nesta última «vivência» da dimensão espacial tendo como pano de fundo a vida afetiva, levar em conta o exemplo de Carl Schneider, citado por Jaspers colhido de um esquizofrénico: «Eu vejo tudo como se fosse através de um telescópio diminuto e de uma grande distância, embora não tão pequena na realidade, mas menor do que na

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Jaspers, K. (1997) General Psychopathology, The Johns Hopkins University Press; Baltimore. Vol I, Chapter I , Section One ; p.80

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No mundo da física newtoniana, que é compartilhado por Kant, o tempo e o espaço são plenamente «formas e intuição». Todavia, esta concepção temporal e espacial sofre uma reviravolta com a entrada em cena da teoria da relatividade de Albert Einstein. Passando pelas descobertas de Faraday e Maxwell, no que diz respeito ao campo electromagnético , Einstein fomenta uma ideia extraordinária: o campo gravitacional não está, como se pensava, difundindo pelo espaço: o campo gravitacional é o espaço. O espaço é um dos componentes “materiais” do mundo, e o mais revelador, na minha opinião, o espaço se curva, o espaço se move, as coisas vão ao chão porque o espaço se inclina, estamos “mergulhados” neste espaço que é flexível. Dito de outra forma: o espaço curva-se onde existir matéria. Seria como o espaço a “andar de bicicleta” e desviar-se de uma árvore. Para complicar ou expandir a nossa imaginação: o tempo também curva-se. Falamos em dimensão temporo-espacial. Abrangendo um pouco mais: as coisas que vemos são feitas de átomos. Como bem sabemos cada átomo é constituído por protões e neutrões que por sua vez são formadas de partículas menores chamadas: quarks que são unidas por forças denominadas de Glue. Estas são partículas elementares do mundo material que só são percebidas (e detectadas) quando se deparam com outra coisa. Bem, a teoria quântica aponta para a existência de Loops (laços) que entrelaçados formam uma rede de relações granulares de partículas. Isto é o espaço. Veja nesse sentido: Rovelli, C. (2015) Sete breves lições de Física; Editora Objectiva, Lisboa

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Jaspers, K. (1997) General Psychopathology, The Johns Hopkins University Press; Baltimore. Vol I , Chapter I ; Section One ; pp. 80,81

mente… Menos relacionado com uma coisa com a outra e comigo próprio como estivesse… Cores são obscuras assim é o significado… tudo está distante…é mais um afastamento mental»100.

A experiência do tempo implica também a dimensão vivencial de «ter uma direção», um crescimento em direção a algo. Este, «algo», situa-se entre as vivências pretéritas, marcadas pela memória e pelo tempo futuro que se aproxima.

O avanço do tempo, que é um aspeto objetivo e real, sentido no nosso próprio corpo, passa a ser «vivenciado» como no dizer de Von Gebsattel: «o empurrar (o tempo) e o impulso vital próprio da vida que se projeta e planeia no futuro contribui para mascarar a forma elementar do transcurso.»101

Jaspers vai arrolar uma série de «vivências» referentes ao tempo, narradas por doentes psicóticos (esquizofrénicos ou psicóticos por ação de drogas) que mostram do ponto de vista psicopatológico- fenomenológico uma perspetiva ímpar.

Teríamos pois: «consciência momentânea do tempo» que apresentaria as seguintes formas: «o tempo que corre ou se lentifica»; «perda da consciência do tempo»; «perda da realidade da experiência do tempo»; «a experiência que o tempo ficou parado»102. . Em relação ao tempo passado e futuro encontramos «vivências» de outra ordem que poderiam ser da seguinte forma delineadas: «Dejá vu e jamais vu»; «descontinuidade do tempo»; «meses e anos voam com excessiva velocidade»; «encolher do passado». Há mais. Em relação à «consciência do futuro», o futuro desaparece.103

100

Mais uma vez, gostaríamos de ratificar a noção básica da unidade das «funções psíquicas» em interacção com o «mundo circundante». Veja nesse sentido as alterações perceptivas que acompanham a chamada «atmosfera delirante».

101

Alonso-Fernandez, F. (1979) Fundamentos de la Psiquiatria Actual; Editorial Paz-Montalvo;. Madrid. Vol I , pag.251

102 Jaspers, K. (1997) General Psychopathology, The Johns Hopkins University Press; Baltimore. Vol.I ,

Chapter One, Section One; pp.83-87

103 Jaspers vai ao cerne da questão a partir da enumeração e relato destas vivencia quando assinala :

«mudanças na atmosfera emocional da percepção dos pacientes e na consciência das coisas também fazem elas próprias perceptíveis na experiencia do tempo. O que é perdido é o sentimento do conteúdo imediato. As coisas lá estão mais o paciente pode somente saber delas, não senti-las, então o futuro desaparece como tudo mais. O conceito de tempo lá está e o conhecimento correto do tempo, mas não a experiencia verdadeira do tempo». Jaspers, K. (1997) General Psychopathology, The John Hopkins University Press; Baltimore. Vol I, Chapter One, Section One; p.86

Por último, no que toca à «vivência do tempo», cabe assinalar: «a experiência esquizofrénica do tempo a ficar parado, fluindo junta, e parando»104.

Tais «vivências» pertencem à série esquizofrénica e retratam as profundas alterações de «vivenciar de forma real» o tempo por estes pacientes.

Em relação ao tempo, Jaspers aponta três distinções que devem ser levadas em conta. Teríamos pois: «1º - o conhecimento do tempo; 2º - experiência do tempo; 3º - o manuseio do tempo».105

No primeiro caso, temos o tempo objetivo: «o tempo do relógio» e a capacidade de julgar de forma correta ou não os intervalos do tempo;

No segundo caso, estamos diante da subjetiva «vivência» do tempo que deixa de ser estimada por qualquer medida. Numa «total consciência» do tempo, conseguimos abarcá-lo num breve espaço de tempo. Por último, o manuseio do tempo. Movidos pelas «exigências da vida», temos que manusear o tempo em diversas e complexas facetas: em que o tempo se conjuga com a ação, sendo assim: o tempo de esperar, de atuar, de planear, de tomar decisões.

Gostaríamos de chamar a atenção para as relações que existem entre o «conhecimento do tempo» e a «experiência do tempo». Jaspers chama a nossa atenção: «conhecimento do tempo (e real orientação no tempo) acontece na base da nossa experiência do tempo mas não é a experiência do tempo em si. A nossa experiência do tempo envolve uma consciência básica da nossa existência; sem esta constância no tempo não estaríamos conscientes do tempo que passa.»106

Dito de outra forma e olhando para o essencial: o ter «consciência» do tempo em seu devir é uma «vivência» fundamental de continuidade. Para terminar, esta parte que envolve a espacialidade e temporalidade, vale a pena reiterar uma das formas que possuímos para vivenciar, vale a pena tecer um rápido comentário em torno do movimento.

104

Jaspers, K. (1997) General Psychopathology, The Johns Hopkins University Press ; Baltimore. Vol I, Chapter One, Section One; pp.86-87

105

Jaspers, K. (1997) General Psychopathology,. The Johns Hopkins University Press ; Baltimore. Vol I, Chapter One, Section One ; p.82

106

Jaspers, K. (1997) General Psychopathology, The Johns Hopkins University Press; Baltimore. Vol I, Chapter One, Section One;p.83

De forma mais clara: a perceção do movimento envolve, simultaneamente, espaço e tempo. As alterações do movimento são referidas em casos de lesões cerebrais ou intoxicações.

Jaspers diz-nos: «a descrição da vivência do tempo inclui as vivências anormais do movimento: assim a vivência em saltos, o facto de não se perceber o movimento, o objeto ou a pessoa está, ora aqui ora ali, mas sem continuidade de tempo intermediário; ademais, a aceleração e diminuição dos movimentos vistos»107.