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Capítulo 3: Do Delírio em Karl Jaspers

4. Delírio

Iniciemos por uma plêiade de definições a respeito da ideia delirante que nos é oferecida por Lopez-Ibor: «ideia delirante é uma representação mórbida e ao mesmo tempo incorrigível (Bumke); ideia delirante é uma representação mórbida falseada e incorrigível (Hoche): ideia delirante é um erro surgido do sentimento de significação morbidamente alterado; é incorrigível porque é vivida como inabalavelmente certa (Bleuler); Ideia delirante é uma representação morbidamente falseada (Kraepelin):

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Nobre de Melo, A.L. (1979). Psiquiatria. Editora Civilização Brasileira; Rio de Janeiro. Primeiro Volume. P.120

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Jaspers, K. (1973). Psicopatologia Geral. Livraria Atheneu; Rio de Janeiro. Primeiro Volume, Primeira Parte, Primeiro Capítulo, Primeira Secção, p.128

ideias delirantes são erros engendrados de um modo mórbido, que não são acessíveis a justificação por fundamentos motivados (Kraepelin-Lange)»159.

Todas estas definições colocam em evidência o aspeto mórbido do delírio.

Porém, não basta a característica da morbidade para possuirmos um conceito que nos ofereça uma maior segurança. Ao avançarmos no tempo, as dificuldades também persistem, sendo assim ao encararmos o delírio como: um julgamento que não pode ser aceite por pessoas da mesma classe, educação, raça e período da vida, como é aceite pela pessoa que o experimenta, teríamos por um lado uma vantagem- levaríamos em conta aspetos socio-antropológicos – mas na definição poderíamos, de forma enganosa, incluir uma pessoa que pertença a uma minoria religiosa ou que possua ideias incomuns sem o reconhecimento de argumentos contrários razoáveis.

Frente a este cenário, algo complexo e por vezes confuso, acreditamos que deveríamos retornar a conceção de delírio que nos é oferecida por Jaspers.

O que nos diz Karl Jaspers a respeito dos delírios?

Ele diz-nos: «O delírio comunica-se em juízos. Só onde se pensa e se julga pode nascer um delírio. Neste sentido chamam-se ideias delirantes, os juízos patologicamente falsos» e mais adiante Jaspers de forma cautelosa delineia certas condições que devemos levar em conta ao demarcarmos certas ideias como delirantes: «de maneira vaga, chamem-se ideias delirantes, a todos os juízos falsos que possuem em determinado grau- não precisamente delimitado- os seguintes caracteres externos: 1º) A convicção extraordinária com que lhes adere, a certeza subjetiva, incomparável. 2º) A impossibilidade de influência da parte da experiencia e de raciocínios constringentes. 3º) A impossibilidade do conteúdo»160.

Vale a pena ressaltar alguns termos utilizados por Jaspers. Sendo assim: «de maneira vaga» bem como «que possuem um determinado grau», que «não precisamente delimitado». Provavelmente, Jaspers sabia das dificuldades do tema que estava a tratar.

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Lopez-Ibor, J. (1953). Percepción y humor delirante.. Actas Luso-Españolas de Neurologia Y Psiquiatria. Vol. XII; Num 2. p. 90

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Jaspers, K. (1973). Psicopatologia Geral. Livraria Atheneu; Rio de Janeiro. Primeiro Volume, Primeira Parte, Primeiro Capítulo, Primeira Secção, p.118

Temos em mãos, seguindo de perto Jaspers, aspetos externos das ideias delirantes, façamos agora uma diferenciação.

Jaspers delineia uma distinção fundamental no campo dos delírios, ele diz-nos: «A seguir, quanto à origem do delírio deve distinguir-se duas grandes classes: uns originaram-se, de modo compreensível para nós, de afetos, que abalam e produzem sentimentos de culpa, e de outras vivências, , de percepções falsas ou de vivências de alheamento do mundo da percepção em alterações de consciência, etc. Outros não são susceptíveis de serem seguidos psicologicamente, são do ponto de vista fenomenológico, algo de último e derradeiro. Os primeiros chamados deliróides, os últimos, autênticas ideias delirantes»161.

Para Jaspers uma ideia delirante é derivada de uma vivência delirante primária. Primária na conceção que não mais a podemos derivar de uma outra. Primária no sentido que não a conseguimos compreender. Vale lembrar que Gruhle, contemporâneo de Jaspers, «considerava que um delírio primário, é uma perturbação do significado simbólico, não uma alteração na perceção sensorial, aperceção ou inteligência»162.

A ideia delirante primária é, por vezes, também denominada de ideia autóctone. Tal conceito surgiu com Wernicke, em 1906, e recebeu aceitação em escolas psiquiátricas, é pois «uma ideia que é «nativa do solo», aborígene, surgindo sem causa externa»163. Em suma: para Jaspers, a ideia delirante é originária de uma vivência delirante primária, por sua vez, uma ideia deliróide possui uma vinculação compreensível, do campo dos afetos, ,da perceção, ou de alterações da consciência.

Porém, a importância dada por Jaspers ao papel dos delírios no campo da psicopatologia, não era compartilhada por Eugen Bleuler (o criador do conceito e da palavra esquizofrenia). O delírio para Bleuler, é um sintoma acessório ao lado das alucinações. É notório na visão bleuleriana que «tudo o que se deseja e tudo o que se receia pode também encontrar expressão nas ideias delirantes, assim como outras

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Jaspers, K. (1973). Psicopatologia Geral. Livraria Atheneu; Rio de Janeiro. Primeiro Volume, Primeira Parte, Primeiro Capítulo, Primeira Secção, p.118

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Sims, A. (2011). Sintomas da mente. Libri-Faber; Lisboa. p.135

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coisas- pelo menos no estado atual dos nossos conhecimentos- e talvez ainda tudo o que seja susceptível de ser sentido e pensado»164.

Quando na entrevista, o doente relata o conteúdo de suas ideias delirantes encontramo- nos diante de um produto acabado. O doente já encontrou as suas “certezas”. O pensamento e o juízo, já foram postos ao serviço da força imperiosa das ideias delirantes.

No entanto, surge uma interrogação: Qual a origem destas ideias delirantes? Existem respostas e vamos avaliá-las.

Em primeiro lugar, existem os partidários que as ideias delirantes ocorrem devido a uma debilidade da inteligência. Ao existir tal debilidade seria lógico a aceitação, sem obstáculos, das ideias delirantes.

A bem da verdade esta ideia e suas variações não encontram eco quer numa análise psicopatológica quer no campo da clinica. Senão vejamos: sabemos que os delírios apresentados pelos indivíduos que padecem de uma debilidade mental são de um conteúdo tosco e na grande maioria dos casos, sujeitos as variações do humor e do ambiente Uma variação desta ideia é a que valoriza a vida afetiva como o ponto de partida das ideias delirantes.

No entanto, não devemos esquecer que uma pessoa que se encontra a delirar permanece em lucidez de consciência, logo consegue comparar, excluir, incluir e acrescentar elementos ao seu sistema delirante. Esta pessoa coloca em movimento o seu pensamento, o seu raciocínio e os juízos que expressa em função de suas ideias delirantes.

Uma outra resposta seria negar uma vivência delirante primária e afirmar que todas as ideias delirantes são compreensíveis. Teríamos de aceitar que as vivências: ”quando escuto um carro a passar pela rua, uma parte do meu pensamento é arrancado de mim” ou “ não preciso falar, o doutor sabe, o que eu penso, através da telepatia”, são vivências que criam um elo de compreensão (empatia) entre o nosso «aparelho de pensar» e o doente ao relatar tais vivências.

Acreditamos, tendo a visão jaspersiana, como referência, que isto não ocorre.

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Existe uma série de fatores que são alavancados para explicar a génese do delírio. Assim teríamos: perturbação do funcionamento cerebral; influências dos antecedentes de temperamento e personalidade; o delírio como uma resposta à perturbação percetiva ou associada à sobrecarga cognitiva e até mesmo como uma forma de manutenção da auto-estima165.

Porém, todos estes elementos não convergem para o ponto essencial numa visão psicopatológica fenomenológica de jaez jaspersiano. A derradeira resposta aponta para a existência de uma vivência delirante fenomenologicamente específica e a apreende como o elemento patológico nuclear.

Ao contrário da via da compreensibilidade ao aproximarmo-nos de uma vivência delirante primária «logo notamos que não nos é possível apresentar de uma maneira concreta os modos de vivência totalmente estranhos para nós. Sobra sempre um resto enorme de algo incompreensível, inapreensível e imperceptível»166.

O delírio possui uma característica que o torna, do ponto de vista jaspersiano, impar. É a incorrigibilidade. Voltemo-nos, mais detalhadamente para esta questão.

Em primeiro lugar devemos ter como assente: «na vida normal, adquirem-se as convicções no contexto da vida e do saber da comunidade. Experiências momentâneas da realidade só subsistem quando enquadradas na experiência, criticamente provada ou aceites pela comunidade»167.À experiência da realidade segue-se o juízo da realidade (ou um juízo de atribuição que damos ao que nos acontece ou ao que nos cerca).

Porém, a razão da incorrigibilidade deve ser procurada noutro aspeto. É importante, no quadro que estamos a delinear, que cada experiência particular seja capaz de ser corrigida, mas «a experiência total, porém é no seu contexto, algo estável, dificilmente ou de forma alguma susceptível de correção. Por isso: a razão da incorrigibilidade não

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Brockington, I (1991). Factors involved in delusion formation. British Journal of Psychiatry, 159: (suppl.14). p. 42-45

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Jaspers, K. (1973). Psicopatologia Geral. Livraria Atheneu; Rio de Janeiro. Primeiro Volume, Primeira Parte, Primeiro Capítulo, Primeira Secção, p.121

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Jaspers, K. (1973). Psicopatologia Geral. Livraria Atheneu; Rio de Janeiro. Primeiro Volume, Primeira Parte, Primeiro Capítulo, Primeira Secção, p.128

se deve procurar nunca num fenómeno singular mas na totalidade da condição humana»168.

O Homem encontra-se visceralmente inserido nesta «totalidade» deste seu primeiro ao último frémito. É esta totalidade que lhe dá, concretamente, um chão para pisar e que lhe permite lançar o olhar e vislumbrar a linha do horizonte.169

É evidente para Jaspers,: «nenhum homem abandona essa totalidade. Quando começa a cambalear a realidade aceita em comum, os homens não sabem o que fazer»170. Existe um outro aspeto a ser acrescentado: «o que verdadeiramente se crê como realidade só se mostra de maneira decisiva no comportamento; pois só o que se crê verdadeiramente real impele às consequências de ação correspondente»171.

O delírio autêntico inicia-se, na visão preconizada por Jaspers, por uma vivência delirante primária e torna-se incorrigível devido a uma modificação da personalidade. Uma modificação da personalidade de tal monta que defende até às derradeiras consequências suas convicções contra tudo e contra todos.

Até mesmo contra a realidade concreta que possa fazer- lhe frente. Deve-se admitir, neste caso, uma mudança específica nas funções psíquicas. Quando uma pessoa frente aos elementos que possui, chegando a afirmar, após um período de reflexão: «É assim, disso não posso duvidar, eu bem o sei»172.

. O foco de que gostaríamos, nestas últimas linhas, de enfatizar é a transformação do mundo que o delírio acarreta. A bem da verdade, num primeiro momento «o delírio apresenta-se, primeiramente, como o fato que configura o mundo para quem delira, exprimindo por seu estilo e, por assim dizer, revelando uma essência que nele se evidencia. É o mundo que dá conteúdo ao delírio e, este por sua vez, o modela

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Jaspers, K. (1973). Psicopatologia Geral. Livraria Atheneu; Rio de Janeiro. Primeiro Volume, Primeira Parte, Primeiro Capítulo, Primeira Secção, p.128

169 Uma digressão: a primeira totalidade que entramos em contato chama-se corpo. O corpo dá-nos a

nossa dimensão do real. Já o sabíamos através do ato comum, quando nos deparamos com algo que nos parece fora da realidade:” belisca-me para eu ter a certeza que não estou sonhando”

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Jaspers, K. (1973). Psicopatologia Geral. Livraria Atheneu; Rio de Janeiro. Primeiro Volume, Primeira Parte, Primeiro Capítulo, Primeira Secção, p.128

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Jaspers, K. (1973). Psicopatologia Geral. Livraria Atheneu; Rio de Janeiro. Primeiro Volume, Primeira Parte, Primeiro Capítulo, Primeira Secção, p.128

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Jaspers, K. (1973). Psicopatologia Geral. Livraria Atheneu; Rio de Janeiro. Primeiro Volume, Primeira Parte, Primeiro Capítulo, Primeira Secção, p.120

penetrantemente para o homem enfermo, vindo a constituir em sua elaboração, uma criação mental».173

É inquestionável, que o problema central diz respeito ao motivo da criação e manutenção do delírio. Expressemos uma resposta.

O aparecimento do delírio, a partir das vivências delirantes primárias na conceção de Jaspers, leva o individuo à formação de uma primeira produção de pensamentos delirantes. O segundo passo é dado, no sentido de« manter como verdade, tais pensamentos e conservá-los contra todas as demais referências e todas as razões numa convicção que supera a certeza normal, chegando até a destruir totalmente as dúvidas ocasionais, surgidas de início»”174 Neste ponto «poderia dizer-se “eu sei”, exprime uma certeza instalada, não uma certeza que ainda está lutando»”.175

Devemos vislumbrar que o delírio é incorrigível por conta de uma modificação da personalidade. Modificação da personalidade, a partir das vivências delirantes primárias, que altera profundamente a relação da pessoa com o seu mundo circundante. Jaspers assinala “Razão da incorrigibilidade não se deve procurar nunca num fenómeno singular mas na totalidade da condição humana”.176

Esta «totalidade da condição humana» existe quer na vida de relação com os que nos cercam quer com as obras que realizamos e como reagimos aos acontecimentos e as exigências da vida. É evidente que o surgimento do delírio altera o mundo circundante da pessoa, pois o mundo vivido «se transformou na medida em que, nele, ou abrangendo-o domina um acontecimento transformador da realidade, de sorte que a correção pareceria o desmoronamento do próprio ser, assim como realmente é para a consciência da existência do enfermo. O homem não pode crer no que eliminaria a própria existência» 177.

173 Jaspers, K. (1973). Psicopatologia Geral. Livraria Atheneu; Rio de Janeiro. Primeiro Volume, Primeira

Parte, Segundo Capítulo, Primeira Secção, p.237

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Jaspers, K. (1973). Psicopatologia Geral. Livraria Atheneu; Rio de Janeiro. Primeiro Volume, Primeira Parte, Primeiro Capítulo, Primeira Secção, p.128

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Jaspers, K. (1973). Psicopatologia Geral. Livraria Atheneu; Rio de Janeiro. Primeiro Volume, Primeira Parte, Primeiro Capítulo, Primeira Secção, p.103

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Jaspers, K. (1973). Psicopatologia Geral. Livraria Atheneu; Rio de Janeiro. Primeiro Volume, Primeira Parte, Primeiro Capítulo, Primeira Secção, p.128

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Jaspers, K. (1973). Psicopatologia Geral. Livraria Atheneu; Rio de Janeiro. Primeiro Volume, Primeira Parte, Primeiro Capítulo, Primeira Secção, p.129

. O que está em jogo, de forma visceral, é «a própria existência» da pessoa que delira. A «própria existência» encerra um saber que a pessoa não pode, nem deve abrir mão. Caso isso ocorresse teríamos um «desmoronamento do próprio ser.»

Não devemos perder de vista que todo o esforço da pessoa que delira, é o de manter um saber. Um saber que busca tornar compreensível o que é incompreensível para si mesmo e posteriormente incompreensível para os que o rodeiam. Este saber encontra-se primordialmente vinculado à realidade. Porém, esta realidade encontra-se transformada sendo o único caminho que lhe dá certezas. Jaspers assinala «A fé na realidade atravessa todos os graus, desde o simples jogo do possível através de uma realidade dupla – a empírica e a delirante- até um comportamento unívoco, corresponde a realidade única e absoluta do conteúdo delirante.»”178

Dito de outra forma: existe um limite para a nossa capacidade de compreensão dos atos psíquicos do outro. Porém, este limite é alcançado quando nos questionamos o porquê desta necessidade para que não haja «desmoronamento do próprio ser», mas não compreendemos o desaparecimento da precisão da vida racional, o desvanecer da ponderação e da crítica frente às próprias condutas, a ausência da dúvida e impossibilidade de comunicação com os seus pares. O que não alcançamos é a força pela qual a estrutura delirante eclode, ramifica-se e cria raízes na personalidade.

Por último, devemos não esquecer que «É o mundo que dá conteúdo ao delírio e este, por sua vez, o modela penetrantemente para o homem enfermo, vindo a constituir, em sua elaboração, uma criação mental.» 179

Esta «criação mental» que é o «delírio» é forjado na relação Eu-Mundo. É nessa relação que sinto-me e sei que os meus pés tocam um chão firme.

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Jaspers, K. (1973). Psicopatologia Geral. Livraria Atheneu; Rio de Janeiro. Primeiro Volume, Primeira Parte, Primeiro Capítulo, Primeira Secção, pp. 129-130

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Jaspers, K. (1973). Psicopatologia Geral. Livraria Atheneu; Rio de Janeiro. Primeiro Volume, Primeira Parte, Segundo Capítulo, Primeira Secção, p.237

Capítulo 4: A conceção de totalidade na vida psíquica