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CAPÍTULO 3 – O Voto de classe

3.1 Formações políticas e voto de classe

3.1.1 Consciências e solidariedades

Como notado pelo próprio Wright, falar em “consciência de classe” numa chave teórica marxista pressupõe, inescapavelmente, marcar diferenças e aproximações no que diz respeito à concepção formulada por Lukács (2003) em sua obra basilar sobre a questão. Em contraposição à abordagem “contrafactual” ou “imputada” desenvolvida por esse clássico do pensamento filosófico marxista, aquele sociólogo investe em uma formulação do conceito como um atributo concreto da subjetividade individual (WRIGHT, 1985, p. 243). Portanto, no quadro teórico que desenvolve, a ideia de uma consciência de classe, antes do que um atributo substancial da classe em si189, é concebida como um efeito da inserção em relações

de classe sobre os indivíduos. Por extensão, o problema de análise posto por tal acepção do conceito é o de compreender variabilidade do componente de classe das consciências individuais (WRIGHT, 2000, p. 199).

189 A principal crítica de Wright a Lukács reside na ideia presente na obra desse autor de que a

consciência é um atributo da classe enquanto entidade supraindividual. Para maiores detalhes, ver Wright (1985, p. 241-243).

Nesse caso, a própria utilização da ideia de consciência é utilizada por Wright como oposta aos aspectos pré-reflexivos, e mesmo inconscientes, da subjetividade humana. Tal ênfase nas características “[...] discursively accessible to the individuals own awareness” (1985, p. 244) conduzem o autor a relacionar o conceito aos problemas de intencionalidade da ação individual. Dessa forma, embora ressalte que a consciência individual não pode ser reduzida às ações intencionais dos indivíduos, esse teórico neomarxista evidencia que “[...] the most important way in which consciousness figure in social explanations is in the way it is implicated in the intentions and resulting in choices of actors” (1985, p. 244). Por conseguinte, a acepção que desenvolve do conceito de consciência de classe se relaciona inextrincavelmente às capacidades dos agentes de perceber conscientemente o conteúdo de classe de uma dada situação, elaborar “teorias práticas190” e

preferências sobre os cursos de ação disponíveis e, por fim, empreender intencionalmente tais ações191. A locução “de classe”, portanto, faz sentido na

medida em que o conceito em questão é concebido como “[...] those aspects of consciousness with a distinctive class content to then” (1985, p. 246, grifos nossos). Por fim,

if class strucuture is understood as a terrain of social relations that determine objective material interests of actors and class struggle is understood as the forms of social practices wich attempt to realize those interests, than class consciousness can be understood as the subjective

processes with a class content that shape intentional choices with respect to those interests and struggles (2000, p. 195, grifos nossos).

Tendo em vista esses elementos definidores de uma investigação abrangente sobre as diferentes formas de consciência de classe, faz-se necessário abordar tanto o processo de percepção, elaboração de teorias e preferências quanto as próprias escolhas e ações com conteúdo classista. O próprio Wright, por exemplo, investiga empiricamente tal fenômeno a partir da formulação de questões atitudinais em pesquisas do tipo survey, através das quais se torna possível captar como os

190 Wright ressalta que somente a percepção dos fatos da realidade não é suficiente para que os

indivíduos façam escolhas e se engajem nos cursos de ação disponíveis – é necessário, antes, “[...] some understanding of the expected consequences of given choices of action” (2000, p. 196). Tal entendimento é a base para as “teorias práticas” formuladas pelos atores individuais. Isto é, antes que princípios abstratos e explanatórios das teorias científicas, teorias sobre as próprias ações são elaboradas no nível do censo comum, pelos indivíduos.

191 Para maiores detalhes das concepções de intencionalidade da ação, bem como da análise do

conceito de consciência de classe como composto por percepções e elaboração de teorias e preferências, ver Wright (1985, p. 247; 2000, p. 195-197).

entrevistados respondem a situações com componentes classistas característicos (WRIGHT, 2000). Numa adaptação desse conceito à análise do objeto aqui estudado, tal aspecto metodológico deve ser levado em consideração. Por se basear fundamentalmente em informações sobre um determinado tipo de ação – o voto –, o presente estudo prescinde de dados a respeito dos demais elementos componentes do conceito de consciência de classe. De forma indireta, todavia, o princípio fundamental a embasar essa formulação pode aqui ser mobilizado. Assim sendo, é possível caracterizar o voto de classe como uma escolha consciente, com componente de classe, despenhada por um dado agente individual. Isto é, a decisão de respaldar eleitoralmente certo partido ou candidato, caso informada por um viés de classe, baseia-se numa avaliação, por parte do eleitor, de que tal escolha se coaduna com seus interesses objetivos classistas. A identificação de tendências de voto de classe, portanto, pressupõe que os indivíduos que delas participam são capazes de distinguir as filiações classistas das alternativas políticas disponíveis em uma determinada disputa eleitoral.

Todavia, para que os eleitores façam escolhas eleitorais significativas em termos de classe, advertem Evans e colaboradores, os próprios partidos precisam assumir posições distintivas no que se refere às questões relevantes para os interesses classistas. Quando o campo político converge em relação a tais questões – isto é, nas ocasiões em que os partidos em disputa adotam posturas mais centristas –, consequentemente, as classes deixam de ser índices significativos, orientadores do comportamento eleitoral individual192. Nesse sentido,

class voting is not only a consequence of the strength of the class divide in societies, but is also conditioned by the extent to which political parties are seen to be associated with interests of different social classes […]. As class- relevant economic issues are more salient this may give rise to political

192 Nas discussões sobre o fim da influência política das classes, da qual diversos pesquisadores

anglo-saxônicos se ocuparam durante os anos 1990, Evans, certamente, foi o mais destacado debatedor. Dentre suas diversas contribuições à compreensão do fenômeno, pode-se destacar seus esforços em construir instrumentos metodológicos adequados para mensurá-lo. Para ele, somente por intermédio de parâmetros rígidos de investigação empírica seria possível identificar se a política então havia deixado de polarizar em torno das classes – diagnóstico, segundo o próprio, impossível de ser feito por intermédio de medidas comuns em tal debate, como o índice Alford (EVANS, 2000). Consequentemente, por investir largamente na construção de tais parâmetros, esse autor pôde, ao mesmo tempo, negar o fim da política de classes nos países capitalistas desenvolvidos durante finais de século XX e identificar indícios de seu declínio na década seguinte. Tanto em estudos específicos sobre a Grã-Bretanha (EVANS; TILLEY, 2012) quanto em pesquisas transnacionais (EVANS; JANSEN, DE GRAAF, 2013), esse declínio é associado à ampliação das convergências nas plataformas políticas dos partidos em relação a questões concernentes às clivagens classistas.

polarization and reveal underlying differences between classes (EVANS; JANSEN; DE GRAAF, 2013, p. 378).

Como resultado, o voto de classe, enquanto fenômeno supraindividual, baseia-se no microfundamento materializado na capacidade dos indivíduos de discernir as diferenças programáticas, estabelecidas entre os partidos e os candidatos, no tocante aos elementos constitutivos de seus interesses materiais classistas. Nesse sentido, em um sistema eleitoral no qual o voto de classe se mostra significativo, desvela-se não somente que o eleitorado é capaz de distinguir as alternativas no campo político, mas que os próprios agentes partidários se diferenciam enquanto opções à representação classista. Não obstante, se, por um lado, a escolha eleitoral mesma é privativa aos atores individuais, por outro, a formação de coletividades politicamente organizadas em busca de interesses de classe somente pode ser analisada a partir do processo de formação de solidariedades entre indivíduos.

Necessariamente, em termos de classe, as solidariedades interindividuais são frutos da inserção em posições semelhantes das relações de exploração. Como já reiteradamente destacado, conforme a abordagem neomarxista de análise de classe, esse posicionamento impõe, na busca por interesses materiais, dilemas e

trade-offs semelhantes aos partícipes de uma determinada localização de classe.

Enquanto tal, os indivíduos se localizam em um mesmo “ambiente estratégico”, no qual as escolhas disponíveis para a melhoria de suas condições materiais de existência são compartilhadas (WRIGHT, 2000, p. 202-203). Formulado dessa maneira, o conceito de formação de classe somente faz sentido como uma “categoria descritiva” (WRIGHT, 2000, p. 191), capaz de analisar uma grande gama de potenciais variações advindas de tal ambiente estratégico. Assim sendo, “any form of collectively constituted social relations which facilitates solidaristic action in pursuit of class interests is an instance of class formation” (WRIGHT, 2000, p. 191- 192). Ademais, segundo Wright (2000, p. 191), o caráter dos laços de solidariedade estabelecidos pode variar desde as formas mais sólidas de associação às relações “estritamente instrumentais”. Esse último tipo, em especial, é de suma importância para a adaptação do conceito de formação de classe à análise do comportamento eleitoral com componente classista.

Estudos como o aqui formulado, por lançarem mão unicamente de dados eleitorais para analisar os padrões de escolha eleitoral, prescindem de informações

necessárias para avaliações mais detalhadas acerca do processo de construção de solidariedades interindividuais. Com base somente nessa fonte de informação, não é possível evidenciar, por exemplo, se a identificação de tendências de voto de classe é decorrente do engajamento direto de eleitores em instituições como partidos ou sindicatos, ou mesmo da participação circunstancial em campanhas eleitorais. Portanto, devido à falta de dados complementares, caso se identifique que parte majoritária de um dado grupamento classista tende a votar em determinado candidato ou partido, tal conjunto de indivíduos pode reunir desde o mais participativo militante partidário ao eleitor mais avesso ao engajamento em associações políticas. Não obstante, essa limitação não é capaz de obliterar o princípio, acima descrito, de que os eleitores são capazes de discernir as diferenças estabelecidas entre os partidos e, por extensão, votar conforme seus interesses classistas , tampouco exclui a possibilidade do próprio instituto do voto de constituir numa instância de formação de classe. Desse modo, as eleições se tornam um palco privilegiado para a luta de classes – “a luta de classes democrática”, como querem alguns (HOUT; BROOKS; MANZA, 1995). Por seu turno, as coletividades em busca de interesses materiais podem ser concebidas como formações eleitorais

de classe – formações não somente instrumentais ao intuito de incrementar condições materiais de existência por intermédio do voto – como poderia se propor através da própria letra do texto de Wright –, mas também potencialmente transitórias – passíveis de ocorrer, portanto, em somente um pleito.

Por fim, podem ser enunciados os seguintes parâmetros de um quadro de análise do objeto de pesquisa aqui em questão:

(I) O voto de classe, em seus microfundamentos, é concebido como uma ação consciente e intencional com um conteúdo de classe, por parte de um dado eleitor – baseia-se na escolha por uma alternativa política como representativa de seus interesses classistas. Nesse sentido, a escolha eleitoral individual por candidatos de um partido defensor de medidas redistributivas, como o PT, pode ser identificada como constituída por um “componente de classe”.

(II) Para além dessas características do comportamento individual, o caráter classista do voto somente pode ser explicitado através de padrões de votação supraindividuais. Assim sendo, as tendências de voto de classe no interior dos diferentes grupamentos classistas se revelam quando o agregado de indivíduos que baseiam suas escolhas eleitorais em tais componentes classistas se torna

majoritário. Quando isso ocorre, uma formação eleitoral de classes é constituída. Nas investigações empíricas aqui empreendidas, essas formações, caso identificadas, desvelarão que as candidaturas presidenciais petistas passaram a ser representantes de interesses classistas específicos durante o período estudado.

(III) A constituição de formações eleitorais de classe revela tanto a capacidade dos eleitores de perceberem as diferenças nas filiações classistas das alternativas políticas quanto os próprios contrastes, no interior do campo político, em relação às posições tomadas sobre temas relevantes para os interesses materiais classistas. Somente ao se observar a proeminência que a agenda social assume no discurso político petista, pode-se ter uma amostra da estratégia do partido de se apresentar enquanto representante das posições de classe do proletariado “propriamente dito” e destituído.

O simples fato de um partido com uma larga densidade eleitoral, tal como o PT, assestar suas estratégias eleitorais à representação de interesses das classes trabalhadoras – o que, registre-se, não é feito através do apelo discursivo à classe em si, mas aos seus interesses materiais distintivos193 – é indicativo das

potencialidades que as clivagens classistas podem assumir no que tange à orientação do comportamento político nas disputas eleitorais do Brasil contemporâneo. Como lembra Przeworski (1989, p. 125), a tentativa primordial de uma organização classista da política – nos regimes democráticos em sociedades capitalistas – parte das agremiações partidárias de esquerda que visam organizar politicamente as classes trabalhadoras – fato também ressaltado, em chave teórica diversa, por Evans e colaboradores (EVANS; JANSEN; DE GRAAF, 2013). Consequentemente, assinala aquele cientista político, quando as estratégias daqueles partidos se pautam pela representação de interesses fora das fronteiras do proletariado – apelando às classes médias, primordialmente –, a própria centralidade exercida pelas classes na política é posta em xeque. Pode-se afirmar, dessa forma, que a posição do PT durante os anos de governo Lula difere das estratégias de ampliação da base social dos movimentos socialistas analisados pelo próprio

193 Numa interpretação dos contornos teóricos da análise de classe marxista, Perissinotto concebe as

representações de classe que não se reivindicam enquanto tal como representações “simbólicas” de classe. Seguindo as trilhas abertas por Marx n’O 18 Brumário (1997), esse autor salienta que, nesse caso, “[...] a parte da classe que “fala ou escreve” não exerce a sua função de representação como porta-voz direto da classe, mas sim como portadora de uma visão de mundo que, na sua essência, contribui para reproduzir a ordem social ou para vocalizar na arena política interesses de classe,

Przeworski (1989). A polarização de um sistema eleitoral em torno das classes não é, todavia, uma questão que se resolve somente pela ação de atores políticos como os partidos. Sobre ela, também incidem questões de materialidade dos interesses sociais e da própria estrutura de classes.