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O Bolsa Família como programa clientelístico (e sua crítica)

CAPÍTULO 1 – Construindo o objeto de pesquisa: um diálogo crítico com os

1.1 O Programa Bolsa Família e a influência eleitoral das políticas sociais

1.1.2 A influência eleitoral do Programa Bolsa Família

1.1.2.1 O Bolsa Família como programa clientelístico (e sua crítica)

Na seleta de escritos que tratam da ascendência das políticas sociais sobre voto no Brasil, o influente80 artigo de Wendy Hunter e Timothy Power (2007)

diferencia-se por sua abordagem peculiar em relação às razões políticas que estariam na raiz de tal fenômeno. Conforme os termos dos autores, o Bolsa Família seria a engrenagem central no suposto engenho de Lula em usar o poder do governo federal para fomentar o apoio popular baseado em uma estratégia clientelista (HUNTER; POWER, 2007, p. 9) – princípio explicativo único, por estar na contracorrente da postura majoritária registrada pela literatura de inscrever os desdobramentos políticos de programas como o PBF nos esquemas correntes (e legítimos) de bonificação eleitoral a uma ação de governo.

No entanto, essa não é a única peculiaridade do texto. Encarnando, como nenhum outro escrito dessa série, a adequação (BIROLI; MIGUEL, 2011) aos esquemas de análise comuns na esfera pública, os autores põem em sintonia a influência eleitoral do PBF com os escândalos político-midiáticos que ocorreram durante o primeiro governo de Lula. Ou seja, a pretensa configuração clientelística do Bolsa Família (e seus resultados) seria a razão pela qual o petista teria resistido à onda de denúncias de corrupção que “assolou” seu governo. Em tal argumento, que, aliás, constitui-se no principal motivo do texto81, reside uma lógica peculiar. Segundo

Hunter e Power (2007), as denúncias de corrupção foram processadas de forma

79 O interessante é que, entre eleitores de Serra, também o efeito “conhecimento de beneficiário” do

PBF é alto. Nessa categoria de entrevistados, ele obteve 48,6% dos votos (KERBAUY, 2011, p. 490).

80 Como antes registrado, tal artigo foi um dos primeiros a associar o PBF à reeleição de Lula. Isso

ajudou na sua larga difusão entre os pesquisadores enredados a investigar a temática. Da produção até aqui considerada, não há um só artigo que deixe de referenciar o trabalho de Hunter e Power.

81 Conforme palavras dos próprios: “[...] explain Lula’s resilience in the Wake of the corruption

diferencial pelos diversos estratos sociais do eleitorado brasileiro, isto é, as condições socioeconômicas dos eleitores influenciaram não somente quão informados estavam sobre os escândalos, mas também se eles se “importavam” com estes. Para os autores, menores níveis de renda e educação redundariam em uma maior atenção aos issues relacionados a questões “materiais” e, por extensão, numa maior votação em Lula. Por outro lado, melhores marcas nesses quesitos (como os níveis apresentados no Sul e Sudeste) concorreriam para uma maior informação sobre escândalos de corrupção e, consequentemente, menor predisposição ao voto no petista (HUNTER; POWER, 2007, p. 12).

A centralidade que a recepção dos escândalos de corrupção assume nos argumentos de Hunter e Power ancora-se na hipótese de que os eleitores brasileiros tenderiam a ser mais “punitivos”, caso devidamente informados sobre denúncias. Entretanto, como antes citado, a disseminação da informação a respeito dos gates envolvendo o governo Lula teria ficado restrita a determinadas camadas do eleitorado. Nesse sentido, as principais evidências por eles arroladas são a baixa circulação dos principais veículos de mídia impressa no Brasil (segundo os autores, restritos às classes “a” e “b”, 2007, p. 12) e, principalmente, os diferentes graus de informação identificados por pesquisas de opinião entre eleitores brasileiros menores justamente entre os com níveis mais baixos de instrução e aqueles que moram no Norte e Nordeste brasileiro (HUNTER; POWER, 2007, p. 13-14).

Seguindo sua lógica, Hunter e Power contrapõem a recepção diferencial das denúncias de corrupção à suposta inclinação, presente entre os grupos mais desfavorecidos economicamente, a votar a partir de uma avaliação das realizações do governo, sem considerar as denúncias de envolvimento dos governantes em atos ilícitos.

[...] even if Lula lost some points with the public over corruption, he compensated for that loss in other realms. From the vantage point of less economically secure voters, the PT and the Lula government may have been corrupt, but they also delivered valuable material benefits. This notion is encapsulated in the popular yet pejorative Brazilian saying rouba mas faz (he steals but gets things done) (HUNTER; POWER, 2007, p. 14).

Isso abre caminho para a introdução do PBF como programa assentado em bases clientelistas para um público enclausurado na busca pela manutenção de suas condições materiais de existência.

Hunter e Power, entretanto, não se limitam a identificar o PBF como vetor da vitória de Lula: em acréscimo, tentam demonstrar que os gastos no programa variaram deliberadamente de acordo com a função clientelística pretendida por sua administração. Eles avaliam que, na primeira metade do governo petista, as políticas sociais implementadas (tais como o Fome Zero) não obtiveram muitos êxitos. Assim sendo, a partir de 2005, houve um sensível aumento do orçamento com os gastos sociais, particularmente com o PBF, que passou a representar 38% dos investimentos federais nessa área em 2006. Portanto,

the election results testify to the wisdom of Lula’s acceleration of social policy in the second half of his first term. An impressive statelevel correlation exists between Bolsa penetration in 2006 and vote swing toward Lula compared to 2002. At the state level, Lula’s vote share correlates at .621 with the share of families covered by the Bolsa. [...] In other words, the higher the percentage of state families added to the Bolsa Família rolls in the 18 months prior to the election, the higher the vote swing toward Lula and against the PSDB (HUNTER; POWER, 2007, p. 19-20)82.

Valendo-se dessa operação estatística, buscam demonstrar que tal acréscimo na alocação de recursos na área social foi exitoso na transferência da votação de Lula às unidades da federação com menores índices de desenvolvimento social. Esse fenômeno também pôde ser observado na existência de correlações entre o voto em Lula e dois indicadores sociais importantes: o IDH Estadual (numa relação inversa, ou seja, quanto menor o índice, maior a votação do petista) e a queda nas taxas de pobreza (esta, por sua vez, numa relação direta)83.

Por fim, Hunter e Power relacionam a mudança de base eleitoral empreendida por Lula entre 2002 e 2006 como parte da tendência à “interiorização” ou “nordestinização” do voto dos partidos governantes no Brasil.

This “interiorization” or “northeasternization” of support is typical of governing parties in Brazil. Victor Nunes Leal told us just that more than 50 years ago in his classic work Coronelismo, enxada e voto (1949). In some important respects, this is yet another unfolding of the old story of using the government to build clientelistic support (HUNTER; POWER, 2007, p. 9).

82 Note-se que, dentre os estudos que combinam a utilização da variável Bolsa Família com uma

abordagem metodológica centrada em dados agregados por território, o artigo de Hunter e Power é o único a utilizar uma escala estadual de agregação.

83“At the state level, Lula’s second round vote share correlates at -.635 with HDI anda t .642 with the

Se há um mérito nas formulações de Hunter e Power, este foi o de abordar pautas que estiveram presentes na agenda das eleições presidenciais de 2006. Escândalos de corrupção, voto do eleitorado nordestino, alocação de recursos nos programas sociais são os temas que se constituem na substância que dá corpo às suas análises. Não obstante ser esta uma abordagem deveras característica do próprio texto, ela mesma suscitaria boas páginas de resenha crítica, as quais seriam, ainda, volumosas, posto que nenhuma das formulações dos autores sobre aqueles tópicos escapa à superficialidade empírica e teórica. No presente trabalho, contudo, opta-se por um repto mais objetivo, centrado na peculiar caracterização do Bolsa Família como programa clientelístico84.

Além de única no campo acadêmico, tal asserção somente pode ser feita ao se desconhecer substancialmente o funcionamento do programa. Esse, ademais, é o motivo de se enredar numa “polissemia pantanosa” (BICHIR, 2010, p. 127) que confunde os legítimos retornos eleitorais de uma política pública85 com o

clientelismo. Tal problema se torna claro, no caso de Hunter e Power, principalmente na formulação segundo a qual a criação do Bolsa Família e o aumento dos gastos sociais foram orientados com fins eleitorais. É certo que a abrangência do PBF foi ampliada no último ano do primeiro mandato presidencial de Lula: a meta de 11 milhões de famílias, então atingida, dobrou o número de beneficiários, em comparação com seu início (período no qual 5 milhões de famílias nele estavam incluídas, conforme dados de 2004). Contudo, essa expansão “[...] se deu em

substituição aos diversos programas que o precederam, de modo que o número total de transferências realizadas pouco aumentou, de 11,2 milhões, em 2004, para 11,8 em 2006” (ROCHA, 2013, p. 120, grifo nosso). Em suma, tal salto representou “[...]

uma importante racionalização do sistema, já que a consolidação do Bolsa Família

84 É possível, contudo, compilar algumas referências que ajudam a pôr em questão boa parte dos

argumentos de Hunter e Power. Mesmo os eleitores críticos dos escândalos de corrupção votaram em Lula ou (a) pela utilização de “escudos ideológicos” (para usar a imagem de Rennó, 2007) que mantiveram uma avaliação positiva do governo ou (b) pelo não convencimento em relação à participação do presidente em ilícitos, ou mesmo devido a questionamentos acerca do próprio conteúdo das denúncias em si (ver Venturi, 2006). O conceito de “nordestinização” formulado por Hunter e Power é produto tanto de uma leitura equivocada de Leal (ver Carvalho, 1997) quanto da desinformação sobre os padrões de votação na região. Conforme leitura de Terron (2009), não se pode falar de um processo inequívoco de “territorialização” eleitoral do Nordeste pelos candidatos governistas. Zucco (2008), por sua vez, revela que o processo de interiorização da votação de Lula ocorreu não no sentido sul/norte, mas dos municípios ricos aos pobres, impulsionado pela afeição ao voto pró-governo nessas localidades (experimentado por todos os incubents no período pós- redemocratização).

85Bichir (2010, p. 127) complementa: “[...] qualquer programa social tem potencial de retorno eleitoral,

eliminou a forte superposição dos programas” federais de transferência condicionada de renda (ROCHA, 2013, p. 120)86. Posto que as ações do governo

representaram um aperfeiçoamento da gestão do PBF (antes do que um incremento escuso e descabido de seus recursos) e o aumento do público total dos programas sociais resulta mínimo (logo, sem acréscimo de uma clientela adicional somente com fins eleitorais), a ideia de aceleração politicamente orientada dos gastos sociais torna-se vazia de sentido.

Mas esse não é o único aspecto desconhecido do Bolsa Família, por parte de Hunter e Power, a conduzir a associação que empreendem entre o programa e o clientelismo. Hipoteticamente, salienta Zucco, a apropriação clientelística de uma política necessitaria, para funcionar, de uma rede operacional local, com agentes que selecionassem os beneficiários e os compelissem a votar de determinada maneira “[...] by implying that the benefit is conditional on voting behavior” (ZUCCO, 2011, p. 20). Tais condições não se aplicam ao PBF, pois o design do programa, baseado em critérios impessoais e objetivos de elegibilidade, além de pagamentos diretos aos assistidos, simplesmente impede tal forma de apropriação87.

No mesmo diapasão, Zucco argumenta que seria necessária a manutenção, por parte do PT e do PSDB – partidos que formularam as principais políticas de transferência condicional de renda quando no governo federal –, de redes clientelistas com os fins acima descritos. Obviamente, tais partidos não dispõem da descomunal estrutura que seria necessária para tanto. Mesmo assim, caso eles pelo menos tivessem tentado empreender algo nesse sentido, seria de se esperar que a votação deles crescesse numa proporção direta a de seus candidatos a presidente, o que não ocorreu nas eleições do período democrático vigente88.

86 Essa racionalização na gestão ocorreu, ademais, sem um reajuste do valor dos benefícios

concedidos, o que seria de se esperar numa possível aceleração de gastos com fins clientelísticos. A correção nos valores dos benefícios somente viria ocorrer em agosto de 2007 (ROCHA, 2013, p. 130).

87 De resto, a confusão entre identificação municipal dos possíveis beneficiários e seleção federal do

programa é possivelmente, segundo Bichir (2010, p. 127), a principal fonte de argumentos aos que inscrevem o Bolsa Família no conjunto de políticas clientelísticas.

88 O que não impede a possibilidade de apropriação clientelística local do programa, principalmente

através das chamadas condicionalidades. O que Zucco ressalta é a impossibilidade “operacional”, conforme a noção de clientelismo que mobiliza, de apropriação direta por parte do presidente. Além disso, Bichir acrescenta que a discricionariedade exercida por “burocratas de nível de rua” pode desvirtuar o cadastro do programa em plano local. Entretanto, a autora ressalta que os mecanismos de controle recíproco entre os diferentes níveis de governo envolvidos na implementação do PBF reduzem tanto a possibilidade de clientelismo quanto a discricionariedade (BICHIR, 2010, p. 127).

Por fim, há de se registrar que, devido à forma pela qual a competição política se organiza contemporaneamente no Brasil, a adoção de políticas clientelísticas em plano nacional tende a oferecer menos retornos eleitorais aos incubents. De modo contrário ao que ocorre em contextos como o argentino, no qual o partido que ascende à presidência é impelido a adotar políticas que beneficiem sua própria base eleitoral, no padrão brasileiro de relações entre a esfera governativa e a eleitoral, o governante é levado a produzir ações para o eleitorado que apoiava o governo anterior (BORGES, 2013, p. 124). Tal estratégia, que atesta a característica “constituency dilluting” do sistema político brasileiro (ZUCCO, 2010, p. 19-20), é principalmente incentivada pela inclinação ao comportamento político pragmático e pró-governo nas áreas mais pobres do país.

Nessa direção, Borges acrescenta ainda que, devido ao alto número de eleitores não alinhados partidariamente, é comum que os principais contendores à presidência da república busquem apoio, quando no governo, nesse amplo “mercado eleitoral” não partidarizado (BORGES, 2013, p. 124)89. Faz sentido,

portanto, que políticas públicas baseadas em critérios universais de elegibilidade prevaleçam sobre aquelas que distinguem entre “simpatizantes e não simpatizantes do partido governante” (BORGES, 2013, p. 125). Nesse contexto, por conseguinte, políticas baseadas na seleção universal de beneficiários se apresentam como “[...] um meio mais efetivo de mobilização dos eleitores do que estratégias clientelísticas tradicionais” (2013, p. 125)90.

Devido à sua constituição peculiar, os escritos sobre as relações entre políticas sociais e voto abordam apenas uma reduzida parte das determinantes sociais do voto durante os anos Lula. Por extensão, vasta gama de variáveis não é considerada no escopo daquela agenda acadêmica. Igualmente, aspectos fundamentais das dinâmicas eleitorais do período em tela não seriam conhecidos sem os seus esforços de pesquisa, de modo que, mesmo ao se observar e expor suas principais lacunas, torna-se ainda possível se apropriar de algumas de suas contribuições. Nesse sentido, a crítica de casos atípicos como a discussão sobre

89 Partindo de técnicas de correlação estatística entre votação presidencial e taxas de pobreza e

dependência governamental dos municípios brasileiros, Borges (2013, p. 123) demonstra que, entre 1994 e 2010, “[...] PSDB e PT procuram mobilizar o mesmo eleitorado” quando à frente do executivo federal.

90 Zucco (2011, p. 22) também lembra que, uma vez que outras políticas sociais precursoras

provavelmente tenham sido produzidas sob o manto do clientelismo, programas que adotam determinados critérios racionais como o PBF substituíram “[...] previous connections between government and voters, and possibly [have] reduced the role of clientelism”.

clientelismo e Bolsa Família é elucidativa do que é possível (ou não) se aproveitar em tal debate. Embora o princípio explicativo de bonificação eleitoral à ação de governo contenha algumas limitações, os estudos que nele se baseiam apresentam uma substancial diferença qualitativa, em comparação às teses formuladas por Hunter e Power a partir da caracterização do PBF como clientelístico. Dessa forma, a crítica aos vieses nas análises desses últimos é suficiente e, consequentemente, todo o diálogo com essa produção intelectual restringe-se, desse ponto em diante, aos primeiros.