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1 DEMOCRACIA E CONSELHISMO

1.1 Conselhos e teorias democráticas

Os conselhos podem ser compreendidos como um conjunto de práticas decisórias desenvolvidas por diversos atores sociais e, ao mesmo tempo, como um tema em discussão sobre as relações políticas dentro de uma sociedade. Tratá-los inicialmente como prática ou como conceito leva a diferentes abordagens e a diferentes resultados, igualmente válidos, mas com propósitos bastante distintos. Partir dos conselhos como práticas significa considerar que há uma dinâmica social, consolidada o suficiente para ser percebida, pela qual os participantes reconhecem a si mesmos como parte de “conselhos” ou outras expressões equivalentes, com comportamentos e ritos que guardam alguma semelhança entre si . Por outro lado, partindo dos conselhos como conceitos, há um esforço de elaboração sistemática em que o elemento que se entende como “conselhos” é modelado e posto à prova perante um conjunto amplo de conhecimentos previamente reconhecido, de uma forma que guarde coerência com os outros elementos que fazem parte desse universo intelectual. Não são abordagens opostas, mas necessárias e complementares (desde que bem estabelecidos os papéis de cada uma), que serão desenvolvidas neste trabalho.

Na abordagem prática, o ponto de partida é a observação e a perspectiva de abertura à surpresa, ou seja, a possibilidade do encontro com o diferente e toda a necessidade de revisão e reaprendizado que dele decorre: é a postura da pesquisa empírica. Do ponto de vista conceitual, o primeiro passo é a análise do conhecimento já

existente para a identificação do ponto de tradução, ou seja, a possibilidade de discussão de novos conceitos para representar as novas inquietações nos termos daquela linguagem cognitiva: é a postura da pesquisa teórica. É correto assumir que a diferença é uma questão de ênfase, dado que, mesmo na abordagem prática, é necessário o manuseio de conceitos prévios, assim como não pode ser dispensada uma relação com a observação prática na abordagem teórica. Mesmo sendo uma diferença de ênfases, é preciso reconhecer que isso muda o trajeto desses dois caminhos, que, por isso, requerem certo cuidado — até para fazer com que se encontrem ao fim do percurso.

Na abordagem conceitual, a pesquisa empírica não é necessariamente o ponto de partida e, assim, a síntese intelectual, gozando de certa autonomia, pode se apresentar de antemão. Quando isso acontece, a discussão conceitual prévia também tende a antecipar a postulação de juízos de valor de maior relevância que, assim antepostos, passam a constituir premissas da argumentação, não consequências. Na abordagem prática, a observação precede a síntese e, por isso, confere maior destaque ao debate dos resultados que lhe sucedem. Quando isso acontece, a oferta a debate dos juízos de valor pós-observacionais não apaga a necessidade de avaliar também os juízos de valor que precederam a observação, ainda que silenciados.

A análise dos conselhos paira então entre esses dois riscos. De um lado, ao ser muito extremados na discussão conceitual prévia, podemos acabar cristalizando algumas premissas sobre o tema, antes mesmo de termos dados suficientes para saber se correspondem à prática política de uma determinada sociedade, e em que medida. De outro lado, ao partir de imediato para uma pesquisa empírica sem maiores preocupações conceituais, há a possibilidade de acabar trazendo também juízos prévios que, por terem sido silenciados, foram subtraídos ao debate, mas permanecem influenciando os resultados.

Este trabalho propõe adotar ambas as perspectivas, por isso precisa responder aos dois riscos. Embora sejam igualmente graves, o segundo chama mais a atenção por ser de mais difícil correção. Um desvio numa perspectiva conceitual, que está submetida a um debate constante, pode ser revisto e reavaliado a qualquer momento, ao passo que um desvio numa pesquisa empírica, embora reversível, pode exigir uma quantidade maior de recursos materiais para sua repetição, que nem sempre estão disponíveis. Um caminho possível, conciliando as perspectivas, é partir da análise conceitual para uma pesquisa empírica e, com base nos seus resultados, revisitar as premissas anteriormente colocadas.

Nesse trajeto, as teorias democráticas ficam mais visíveis como um primeiro passo. Elas trazem, de acordo com cada paradigma, um conjunto de concepções sobre as relações políticas que se pretende estudar, formando uma base sobre a qual se assenta a primeira análise conceitual. Isso permite, segundo os diferentes recortes, perceber relações e intuir explicações para fatos que, pela pura observação, podem parecer desconexos. Os conselhos, assim, podem ser tomados desde o início como elementos de relações políticas mais complexas, que indicam seu papel na sociedade e sua razão de ser. Em outras palavras, as teorias democráticas têm “ontologias próprias” (SCHULTZ, 2002, p. 74).

Se essas teorias, por um lado, já indicam alguns elementos de entendimento sobre os conselhos, por outro, são gerais o suficiente para não fazer disso um quadro muito fechado. Não há, assim, uma conceituação necessariamente decorrente da adoção de uma perspectiva teórica, mas um espectro de possibilidades relativamente aberto. Isso fornece parâmetros suficientes para iniciar um debate conceitual e adotar algumas orientações, ainda que provisórias, que precedam o trabalho prático. Da análise dos resultados empíricos, é possível rever essas escolhas preliminares, até mesmo para reconhecer sua insuficiência.

Isso só é possível porque as ontologias decorrentes das propostas teóricas são marcadas pela sua natureza ideológica. Como ideologias, fazem parte da dinâmica de relações entre grupos dentro de uma determinada sociedade e são por elas afetadas, com todas as marcas de autoria e comprometimento que seriam de se esperar em qualquer processo político. Ao buscar uma concepção inicial de conselhos que seja fundamentada em uma teoria específica, é preciso considerar que, com ela, são importados alguns juízos sobre o lugar desses conselhos, o papel que devem exercer e sua relação com os grupos sociais. São elementos que fazem parte de qualquer reforço ideológico e podem ser assim discutidos.

A importação ideológica por meio das teorias democráticas não pode acontecer de forma silenciada. A ideologia que se afirma como tal pode ser identificada, reforçada ou resistida, de acordo com a maneira como as relações políticas se estabelecem naquele contexto. A ideologia silenciada, por outro lado, é mais vulnerável ao debate público e por isso mantém seu caráter de implicitude — é tão mais aceita quanto menos for discutida. Daí advém o senso comum, como o reforço “espontâneo, ideológico e inconsciente” (HALL, 1977, p. 325) às ideias disseminadas de forma indistinta sobre

determinado tema. A ideologia reforçada de modo difuso pelo senso comum é mais difícil de ser identificada e, por isso, também mais difícil de ser resistida.

A disseminação do senso comum é ação rotineira, uma forma de construir “um mundo cotidiano similar ou compartilhado” (WALLACE; WOLF, 2006, p. 263). Quanto mais difundida a prática de conselhos, portanto, mais intensa a formação — espontânea, ideológica e inconsciente — de um senso comum sobre conselhos. Se o propósito é difundir essa ideologia, operar dentro dos parâmetros do senso comum pode ser o caminho mais proveitoso, mas não é o caso aqui. Ao pretender problematizar os conselhos como conceito e como prática, é inevitável também colocar em questão as ideologias sobre o tema.

A perspectiva conceitual sozinha não é suficiente para enfrentar esse desafio. A ideologia e o senso comum não são facilmente traduzíveis em afirmações mais explícitas e, por isso, a perspectiva prática aparece como uma maneira complementar de compreensão. A observação de como as relações se concretizam permite captar os momentos sutis em que se revela uma influência ideológica e traz dados que auxiliam a identificá-la. Aliando esses dois aspectos — o conceitual e o prático —, é possível uma compreensão mais ampla dos conselhos, que leve em conta também a sua natureza ideológica. A análise de conjuntura proposta no capítulo 3 apresenta mais algumas considerações sobre essa abordagem.

Para isso, o primeiro passo é a explicitação da teoria democrática que sustenta o trabalho. É um ponto de partida, para o qual se pretende retornar.