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4 NARRATIVA DE MATRIZ EXISTENCIAL: considerações e

4.2 DA FUNDAMENTAÇÃO NARRATIVA AO CONCEITO DE NARRATIVA DE

4.2.1 Consequências Existenciais: fundamentos narrativos

Este trecho de minha tese busca explorar questões estruturais da narrativa e como o modelo existencialista pode operar internamente para construir uma ambiência específica, de fundo existencialista, na narrativa fílmica. Não materializo aqui um resgate em larga escala da própria engenharia do enredo (plot), como, por exemplo, o que faz Aristóteles na Poética ou Gérard Genette em Discurso da Narrativa. Contudo algumas revisões teóricas são imprescindíveis para que possamos observar o que há por trás das cortinas quando a narrativa fílmica é analisada, particularmente no engendramento de seu enredo. Dito isso, e de início, talvez seja importante sublinharmos o papel da fábula no processo de construção narrativa.

A fábula aglutina os acontecimentos principais, as cadeias de evento na sua sucessão, por necessidade e não por mera temporalidade. Textos desse gênero podem receber os mais diferentes tratamentos estéticos. Por exemplo, uma mesma fábula pode render uma narrativa na forma literária tradicional, no formato de peça teatral e na conformação cinematográfica. A fábula é o insumo “narrativizável” com o qual se pode trabalhar diferentes formatos, e, no caso específico deste estudo, reflete-se sobre o papel de uma organização de modelo de pensamento, baseado nos pensamentos providos pelo existencialismo — como determinante da elaboração de uma ambiência que abriga uma das possíveis materialidades de uma fábula.

Dave Mamet (2001) aponta para o fato de que a narrativa se potencializa na capacidade de cortar, limar o que é sentimento, descrição exacerbada, aquilo que é mais sentido por quem escreve do que propriamente articulado na narrativa. Tira-se tudo até sobrar a história, a trama na sua potencialidade basal. Mamet é alguém que parte do ofício — de contador de histórias no teatro e no cinema — para chegar na teoria. Ele disseca sua própria poética para compreender o que impulsiona uma história ou não. Por sua vez, O’Connell (2010), ao refletir sobre a evolução das teorias sobre a narrativa — em particular, suas implicações fílmicas —, comenta que contar uma história é uma atividade essencialmente social, cooperativa, que age na própria audiência, na sua capacidade de se engajar ou rejeitar um estímulo estético formatado nos regramentos da contação de história — no mundo que rege a lógica interna da história. Tanto no caso de O’Connell quanto no de Mamet, há algo por trás operando de modo elusivo. Trata-se da atmosfera particular do que está sendo criado. Para Mamet, essa atmosfera determina aquilo que é limado do enredo. Para O’Connell, se trata de algo que perpassa a condição social de partilha daquilo que é contado e mostrado. De qualquer maneira, essa

atmosfera, essa ambiência que é sensível a partir do encontro com a narrativa no mundo — seja ela sonora, fílmica, plástica, etc. —, pode ser vista como uma característica organizável para muito além de implicações de forma e conteúdo, pode ser encarada como um véu abrangente que perpassa a criação e o produto final, pode ser vista como um conjunto estético de possibilidades que pautam as escolhas e operações narracionais, como o diapasão que afina a própria contação da narrativa, seus eventos, temas, valores e emoções construídas. A lógica das possibilidades narrativas faz parte da poética fílmica como um todo e dá conta das técnicas e engrenagens narrativas tanto quanto, em seu estudo, analisa as leis que regem seu funcionamento e governo, sua matéria e fluxo. A narrativa fílmica, não diferente da narrativa teatral e literária, é observada sob esse mesmo diapasão de tonalidade universal e, ao isolar certas questões e determinar certos predicados, oferece um entendimento de um estilo particular de se contar uma determinada história.

Nossa tradição narrativa ocidental é bastante rica e vasta no que toca sua teoria. Ela é organizada por inúmeros tipos de ponto de vista e por nomes consolidados, como os de Vladimir Propp, Algirdas Julien Greimas, Tzvetan Todorov, Claude Bremond, Roland Barthes e Gérard Genette. É possível contendermos que Aristóteles está para a tragédia assim como Vladimir Propp está para a narrativa fílmica. Propp, ao revelar suas 31 funções narrativas-morfológicas do conto popular, abriu caminho para que essa visão, superestrutural e estruturante da narrativa por excelência, fosse cooptada por Hollywood e, como pelo efeito bola de neve, chegasse aos demais cinemas tributários da produção norte-americana ao longo da primeira metade do século XX, não diferente de outras questões influentes do modernismo. Isso se afere particularmente como verdadeiro, pois um incontável número de narrativas partilha das semelhanças estruturais, de engrenagens narrativas, com esses modelos estabelecidos por Propp. Seu esforço é valioso ao nos ajudar a responder a dúvida sobre o que torna reconhecível ou similar ao observarmos as engrenagens por trás do que é contado em cada conto. Como há grandes variações de tipologia de tema e personagem, uma maneira de chegar a essas questões é isolando as funções auxiliares da narrativa, como os esquemas de composição ordenam as ações e tipos de condutas. Essas questões nos ajudam a compreender as sequências elementares, cujas funções movem o fluxo narrativo. Em termos aristotelicamente herdados, toda narrativa consiste de um conjunto discursivo que organiza uma sequência de ações (eventos e temáticas) dentro de uma unidade de

um enredo por uma lógica de necessidade e inevitabilidade. A demanda por uma certa unidade vem para potencializar o que se encontra dentro da esfera diegética, limpar ela de desinteresses mundanos e atender ao interesse humano de coesão.

Parte dessa semântica estrutural da narrativa está relacionada a uma dimensão de conduta como operadora por trás da ação. Neste estudo, é esse o foco de reflexão. Observei que as narrativas: a) são um conjunto organizado de ações; b) apresentam uma determinada unidade; c) situam-se ao redor de um conflito desenlaçado pelas consequências de uma ou mais ações, que demandam reparação, uma instância punitiva ou retorno ao equilíbrio neutro de onde partiram, para assim chegar em seu desfecho, de modo a ser necessário que se faça uma reflexão sobre a própria dimensão da conduta como motivadora e engrenagem por trás de uma determinada ação94.

A ação normalmente se pauta pelo ponto de vista de uma personagem desejante de um valor ou competência que é traduzido em uma determinada performance95. Muitas

narrativas constroem a lógica de suas motivações por trás das demandas de conflito internas das próprios personagens, e o embate resulta de suas posições no mundo e de suas condutas. Erde (1995) comenta que os valores narrativos dos aspectos morais de uma ação estão essencialmente imbricados nas características dos relacionamentos estabelecidos durante a história, o quão bem as personagens conhecem a si mesmas — e assim se toleram —, o quão empáticas são e como lidam com as consequências de suas ações com relação a seus próprios valores. Sob essa lógica, ficam evidentes os julgamentos internos à narrativa e também aqueles eventualmente externos, de quem a consome ao criar um juízo de valor (estético). Sendo assim, como é tentado neste estudo, buscamos compreender o lugar da má-fé dentro da conduta determinante de um conjunto de ações representadas em uma trama fílmica.

Sartre nos ajuda a entender uma leitura que vai além da própria esfera da conduta sobre nossas ações. Bornheim (1971), por sua vez, compara o comportamento de má-fé ao fascínio pela marionete em paralelo à imposição ente-social de nos fazer ser o que

94 O caso clássico mais lúdico, ainda em nossa tradição ocidental, talvez seja o que pode ser compreendido sobre as ações e conduta de Agamemnon tanto na Ilíada, de Homero, quanto na Oresteia, de Ésquilo. Quando Helena foge com Páris para Troia, é a Menelau que caberia comandar a armada de Micenas (Grécia) e ir resgatá-la, mas é Agamemnon, irmão de Menelau, que, em um ato de arrogância ultrajante, a hybris, toma para si a ação de ir buscar Helena. Não sendo sua causa direta, os ventos não sopram, a armada grega não pode ir até Troia, e os deuses demandam o sacrifício de uma virgem. Agamemnon, então, leva sua filha Ifigênia para o altar, sob a premissa de se casar com o mais nobre dos guerreiros, Aquiles, e a sacrifica aos deuses. Assim, os ventos sopram, mas os deuses não fazem vistas grossas para a arrogância e insensatez de Agamemnon.

somos segundo as imposições de que sejamos algo. Dessa maneira, os indivíduos nunca coincidem com o que representam, se mistificam em uma função tomada para si e se isolam em uma espécie de reconhecimento enquanto objeto de uma conduta, e não como sujeito dela: “o paradoxal, contudo, está em que o homem busca ser algo sem poder de fato sê-lo96” (BORNHEIM, 1971, p. 50). O entendimento que Bornheim (1971, p. 50)

oferece sobre a noção de má-fé estabelecida e provocada por Sartre ressoa enquanto evidência de uma das particularidades ônticas desse tipo de condução de si, visto que, na literatura, na filosofia e na sociedade, é possível claramente percebermos um humor e uma conduta propagados por indivíduos que gestam inúmeros esforços para serem o que são “segundo o modo de não ser o que se é”, representando uma realidade humana que busca se organizar como ela não é, mas acredita ser. Uma enganação individual, com consequências coletivas, que transparece “uma ausência perpetuamente ébria que não consegue preencher”. Algo constitutivo da própria existência de si, em particular, quando a própria sinceridade existente é pautada por essa condição.

O verdadeiro perigo dessa má-fé, alertado por Sartre, transpassa a condição de conduta e vira uma crença, “aquela translucidez que está instalada na origem de todo saber” (BORNHEIM, 1971, p. 52). Sendo assim, se há uma perversão inata na sinceridade de si e, logo, no ser-em-si que delimita o existir quando se tem fé na conduta enganadora, então o exame da consciência, do estar ciente e das consequências enquanto ação dessa consciência pode operar como mapa avaliativo da mecânica dessa má-fé — como uma busca por vestígios e rastros de uma interioridade exteriorizada da consciência pervertida da liberdade de existir. Adicionando a isso, para Sartre, o maior autoengano é a crença de que não temos opções, de que cumprimos um determinado papel e de que esse papel limita as nossas possibilidades de conduta — pervertendo, assim, duplamente nossa ação de si e nossa representação de si. Por um lado, isso nos traz uma segurança, nos exime de agir de outras maneiras não comportadas no papel que exercemos e nos garante uma falácia argumentativa: as coisas são assim para mim, logo eu não sou livre para escolher outra maneira. Por outro lado, isso constrói a desfaçatez de uma existência inautêntica e escravizadora. Desse modo, se podemos compreender a má-fé como uma crença enganadora, como uma afronta à inalienável consciência e à responsabilidade de si, como representação inautêntica de si e como uma

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Uma referência à dicotomia proposta por Sartre em função do ser-para-si, que valoriza seu vazio e o preenche com sua própria autenticidade, e o ser-para-outro, que é constituído das imposições externas para a organização de seu eu interno.

volitiva delimitação da liberdade de existir privilegiando uma essência predeterminante ao invés de uma existência livre, na próxima subseção, busco observar como a materialidade fílmica pode operar como fonte documental, representativa e ilustrativa da filosofia, particularmente da filosofia do existencialismo.