• Nenhum resultado encontrado

3 VAZIO E MÁ-FÉ: obras, contextos e as primeiras balizas da matriz

3.3 NOITE VAZIA: o silêncio nauseabundo da intimidade com o vazio

Noite Vazia, dirigido e roteirizado por Walter Hugo Khouri em 1964, tem em seu elenco nomes de peso da televisão e do cinema brasileiro como Odete Lara e Norma Bengell. O filme começa mostrando a noite paulistana, o fervor da capital, pessoas se divertindo como contraponto da monotonia do trabalho e o período desenvolvimentista industrial da região. Duas personagens, Nelson e Luisinho, conhecem duas garotas de programa, Mara e Regina. A noite acaba se tornando frustrante para todos, visto a amargura dos diálogos e atitudes, transparência das angústias que reverberam um no outro e a constatação do vazio da vida das quatro personagens.

Khouri, como também acontece em seus filmes, As Amorosas (1968) e O Palácio dos Anjos (1970), explora a melancolia partilhada pelas pessoas, que ressoa e aumenta em cada um, e a maneira como essa "bile", esse humor diante do mundo, pontua uma experiência do vazio de si mesmo, questões cuja leitura se legitima ao refletirem a própria inserção historiográfica do diretor no percurso do cinema brasileiro, como pode ser visto na fala, primeiro, de Fernão Ramos:

O horizonte de Khouri, na época [anos 1960], é evidentemente a produção a nível industrial dos grandes estúdios. Já surgem aí, de forma tênue, as diferenças que o irão isolar do movimento cinemanovista anos depois, tornando-o uma figura singular no panorama do cinema brasileiro na década de 1960. (RAMOS, 1987, p. 313).

E também na de Jean-Claude Bernardet:

A esse respeito, podemos lembrar a polêmica que nos anos 1960 opõe Walter Hugo Khouri e alguns cineastas e críticos (eu entre eles). Khouri era criticado por não abordar uma temática mais “brasileira”, por não se voltar para as regiões mais obviamente perceptíveis. Ao que Khouri respondia, e responde, que não ambientaria seus filmes no Nordeste porque o que ele conhece mesmo é São Paulo. Em um ponto, Khouri tem toda a razão: ele tem direito de tratar a temática que bem entender e ambientar seus filmes nas regiões e faixas sociais que quiser. [...] O que basicamente importa é como essa temática, rural ou urbana, nordestina ou paulistana, era tratada. A alta burguesia paulista europeizada é tão brasileira e faz tão parte do processo histórico brasileiro quanto o camponês do Nordeste. O que é decisivo é o tratamento ideológico- estético que a temática receberá. (BERNARDET, 2014, p. 109).

E na de Nehring (2010):

Abre-se aqui um duplo jogo: a representação de São Paulo, em Noite Vazia, vai de par com um aspecto da obra de Walter Hugo Khouri criticado à época, entendido como pendor por privilegiar narrativas desvinculadas da

problemática nacional. O caráter genérico de metrópole é reforçado por planos que trabalham com alguns clichês da cidade americanizada: os edifícios altos filmados em contre-plongée, os equipamentos urbanos de “ponta”, a profusão de luzes, o tráfego intenso de carros. (NEHRING, 2010, p. 674).

Embora contemporâneo do Cinema Novo, Walter Hugo Khouri — juntamente com Domingos de Oliveira, Arnaldo Jabor, Luís Sérgio Person, Leon Hirszman e Ana Carolina80 — pautou seu cinema por outras vias. Glauber Rocha e sua turma fizeram o

cinema de guerrilha intelectual, de eterno atrito com a plateia, mas de muito agrado da crítica, especialmente a de esquerda, enquanto Khouri optou por abraçar a burguesia, levar ela para a tela e falar dela sob tonalidades semelhantes às de Michelangelo Antonioni e Vittorio De Sica, fortes expoentes do neorrealismo italiano. Walter Hugo Khouri, especialmente em Noite Vazia, optou por criar um diálogo com a universalidade, usando questões brasileiras, e não o oposto, como era preferido pelos cinemanovistas. Nesse filme, os espaços são mínimos, as locações são poucas, a pobreza dos ambientes ecoa a solidão e o vazio das personagens. Tudo é retratado com um contraste levemente emperrado, porções baixas do espectro de imagem, trazendo assim uma suavidade, apesar da imagem não ser de baixo contraste.

O filme inteiro se comporta como um retrato fiel e indiscreto de parte de uma burguesia que não se contenta apenas com o papel social que vem cumprindo desde os anos 1950. O boom desenvolvimentista expande as cidades e o poder de compra da classe emergente, mas acentua o vazio de si e a necessidade de ocupar, dentro de cada um, espaços que não se bastam pelo dinheiro, que lidam com a solidão diante da própria reciprocidade de um amor não desejado, a felicidade de uma vida exercida por um papel pré-determinado e a hipocrisia de uma felicidade embalsamada pela inautenticidade da própria conduta. As garotas de programa deixam bastante claro, ao longo do filme, sua liberdade de escolha: elas determinam seus clientes e, se não lhes satisfizerem financeira ou sexualmente, elas vão embora. Contudo, defrontando-se com o vazio de si, elas acabam fragilizadas por perceberem sua incapacidade de lidar com o vazio que tentam preencher com sua conduta no mundo.

No próprio encadeamento de ações e condutas dessa tessitura narrativa, encontramos a representação pontual do conceito de má-fé. Se por ele entendemos essa terceirização das marcas e valores ideológicas de uma conduta, essa inadequação diante do cumprimento de um papel que vai tolhendo o exercício da liberdade, então todas as

quatro personagens acabam instaurando um conflito entre si calcado nas próprias incompetências em lidar com o exercício autêntico e legítimo de suas autenticidades — suas existências que precedem qualquer essência que busquem empreender. Nelson, Luisinho, Mara e Regina se encontram constantemente entre a angústia e a torpe ilusão de felicidade, entre o nada e uma existência frágil e sem sentido. Sua busca por autenticidade flerta com um certo niilismo debochado e gira entre altos e baixos das percepções distorcidas de cada um por si e pelo outro. Em termos estritamente sartrianos, nenhum deles existe: são mosaicos de essências partidas e partilhadas que reverberam um no outro e que apontam para um nada bastante convidativo.