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4 NARRATIVA DE MATRIZ EXISTENCIAL: considerações e

4.2 DA FUNDAMENTAÇÃO NARRATIVA AO CONCEITO DE NARRATIVA DE

4.2.2 Essências da Matriz: angústias acolhedoras e a matriz existencial

Este subcapítulo tem como objetivo apresentar uma sistematização técnica e formalizada da proposta de narrativa de matriz existencial. Para tanto, muitos paradigmas epistemológicos podem ser utilizados. Há todo um arcabouço teórico da narratologia — e propriamente uma narratologia fílmica, embora em menor volume que uma literária — que pode arar o campo para que, da reflexão, possa surgir uma dada proposição matricial.

Mieke Bal (2017), na sua introdução à teoria da narrativa, segmenta os níveis de narração e aborda os aspectos da narrativa como97: temporalidade, ordem sequencial,

ritmo, personagens e espaço. Encarando essas questões no nosso horizonte, precisamos realizar uma distinção técnica sobre a organização do ofício criativo de elaboração da história — seja ela em qual mídia for seu destino final. Tal distinção é entre a fábula e o enredo. A fábula pode ser entendida como uma “matriz geral” da história a ser contada, um universo de possibilidades latentes sem uma determinada encarnação midiática. O devir de cada mídia determina e afeta as diferentes possibilidades de contação de uma mesma trama. Por sua vez, o enredo expressa uma determinada organização da fábula, se apropria das latências existentes na fábula e as condiciona às especificidades simbólicas, estéticas e técnicas de um determinado modelo de produção. Uma mesma fábula pode gerar diferentes enredos para histórias homogêneas. Vemos exemplos disso em adaptações de produtos de uma mídia para outra — como o caso da literatura para o cinema, processo no qual uma fábula se fez literatura e, depois, se fez produto audiovisual.

97 Por uma questão epistemológica, omiti a “frequência”, visto que ela está em maior atuação com a fábula da qual nasce a história do que propriamente com o fluxo narrativo, algo complementado por Gérard Genette (1998). Por uma questão também de fundo teórico, omiti a “focalização” pela sua pertinência mais próxima à literatura e pelas suas considerações já levantadas dentro do audiovisual anteriormente.

Debruçando-nos sobre essas questões, podemos perceber nelas um ponto de partida para perceber as engrenagens narrativas que colocam a história a ser contada em um determinado fluxo com uma atmosfera e ambiência específicas. A autora comenta que a temporalidade é autoevidente nas artes que se desdobram por uma duração (BAL, 2017), dentre as quais cita o cinema, o vídeo, a música e a dança. Essa característica não aparece na literatura, muito embora, se refletirmos sobre o gênero textual do roteiro, o papel da temporalidade acaba por ter um peso e uma designação semelhante à literatura, embora se distancie nas especificidades da própria mídia audiovisual. Já a ordem sequencial é percebida como “orientadora” de uma direção, de um vetor narrativo, articuladora de nuances e distâncias, bem como de fluxos de antecipação98 e sugestão. O ritmo, tanto na literatura quanto nas artes audiovisuais,

pode ser compreendido em uma proximidade com a ideia de duração, duração dos sequenciamentos justapostos, organizadora de temporalidades, elipses e dilatações sensoriais de percepção da própria duração. Sobre as personagens, Bal aponta que elas fazem a narrativa "prosperar através dos apelos afetivos das personagens" (BAL, 2017, p. 104). De um modo geral, nas artes narracionais, há um leque gigantesco de funções e atribuições narrativas designadas pelas personagens. Elas podem operar materialmente, na condição e propriedade de si mesmas, ou de maneira simbólica, como muito acontece nas narrativas de Fiódor Dostoiévski, em que as personagens encarnam uma possibilidade simbólica (culpa, desejo, medo, etc.) e assim o exercem como força narrativa. No audiovisual, isso também ocorre de maneira bastante semelhante. Na proposta de Bal, o espaço é o que mais se distancia do audiovisual, o que acontece porque a materialidade da imagem audiovisual propõe outro tipo de relação sensorial com a construção da noção de espaço. Na literatura, podemos pensá-lo como descritivo- informativo e, a partir desse eixo, seu desvelamento para com a leitora ou o leitor. No caso do cinema e do vídeo, há diferentes materialidades em jogo, fisicalidade das locações, construções computadorizadas dentro e fora de estúdios, considerações simbólicas da narrativa através do espaço — embora também partilhadas pela literatura —, como foi discutido largamente em Rodrigues (2015), mas mais sinteticamente na seguinte passagem:

O cinema, na mesma medida em que narra um espaço, também o ocupa. A câmera não pode imaginar e compor um espaço em que não esteve99. A câmera se posiciona de tal maneira que o seu lugar se mistura com os diversos habitantes daquele espaço que ela registra. O próprio termo “habitar” indica o exercício de uma ocupação; da vivência de uma espacialidade. (RODRIGUES, 2015, p. 62).

Entretanto Bal (2017) oferece um ponto de encontro entre a narratologia do espaço na literatura e na mídia audiovisual, nas linhas de uma potencialidade de espaço como um arranjo de conexão de diferentes tipos de discursos implicados no fluxo narrativo, ao considerar que “o olhar cola a personagem ao espaço” e que o próprio fluxo da elaboração das personagens se desdobra pelas afecções do espaço:

O mundo [narrativo] que emerge aparece, ou se faz aparecer. Em outras palavras, entre a naturalização do mundo da fábula e sua materialidade teatral, artificial da mise-en-scène da história, existe uma linha tênue que a ficção constantemente transgride [...]. Os lugares são ligados por certos pontos de percepção. Esses lugares vistos em relação com a percepção apresentada constituem o espaço da história. (BAL, 2017, p. 124).

A história do cinema e do audiovisual nos traz inúmeros exemplos do espaço, da cidade, do lugar como adjuvante da narrativa. Dentro do cinema soviético, podemos olhar para as “sinfonias de cidade”, um marco estético importante para a evolução da linguagem cinematográfica e da montagem fílmica como um todo. Repensando relações mais simbólicas, podemos ponderar filmes como Paris, Texas (1984), do cineasta alemão Wim Wenders, e Short Cuts (1993), de Robert Altman, como exemplos de um protagonismo simbólico dos espaços como grandes interferentes do fluxo narrativo e da própria composição da matriz narrativa.

Tomando como uma base geral essas noções teóricas norteadoras, bem como o desenvolvimento epistemológico debatido até aqui, ofereço a seguinte sistematização da proposta, conceitual e técnica, da narrativa de matriz existencial.

Em primeiro lugar, por “narrativa de matriz existencial” (NME), entenda-se uma tipologia narrativa de estruturação de enredo. De sua gênese, a NME surge de uma revisão sócio-historiográfica de um tipo ou estética de cinema realizado do período pós- guerra até o final da década de 1960, primeiro na Europa e, depois de meados da década de 1950, na América Latina, com alguns exemplos fora da curva temporal entre 1970 e o

99 “Desconsiderando-se aqui as perspectivas dos produtos audiovisuais em animação e tela verde, que, embora não demandem um local, fazem uso da virtualidade da câmera e do espaço respectivamente.” (RODRIGUES, 2015, p. 62).

cinema recente até a segunda década do século XXI. Também corrobora fortemente para a consolidação do conceito o modelo de pensamento existencialista — enquanto proposta filosófica e de reflexão de conduta — com asserções oriundas do pensamento iluminista-romântico europeu, mas com maior expressão na primeira metade do século XX através de Nietzsche, Heidegger, Sartre e Camus. Enquanto organização tipológica, a NME pode ser utilizada como: a) instrumento preliminar de elaboração de enredo, roteiro e suas dissidências (storyline, sinopse, argumento); b) ferramenta de análise de propostas narrativas já realizadas ou em qualquer ponto de produção.

Em segundo lugar, na condição de matriz narrativa, a NME opera, primeiramente, por cinco engrenagens narracionais, sendo elas: a) personagem; b) conflito; c) espaço; d) ritmo; e) angústia. Por “personagem”, entenda-se a formulação de personagens, protagonistas, antagonistas e demais adjuvantes, a partir de uma determinada ambiência existencialista. Essa ambiência pode ser criada a partir de uma construção de personagens ensimesmadas, cujas motivações se dão pelo sentimento de angústia, contemplação — ativa ou passiva — do vazio diante da vida e por uma falha — ou outras dinâmicas de aceitação — da ausência de um sentido prévio à vida — nos moldes sartrianos de que a existência precede a essência. O conflito dentro da narrativa de matriz existencial se estabelece de maneira interna às personagens, embora não se excluam as possibilidades de exteriorização proeminente dessa prerrogativa. Postulo isso, pois, dentro do escopo estudado, notei que os conflitos eram estabelecidos majoritariamente dentro das personagens, em outras palavras, delas consigo mesmas e os reflexos desse conflito individual, causando outras redes de conflitos com as demais personagens e espaços. Os conflitos acabam por refletir a própria constituição das personagens. A ação dramática, a mise-en-scène diante do vazio, estabelece parte da atmosfera existencial e os possíveis desdobramentos narrativos. As relações estabelecidas com os espaços podem operar de maneira concreta, objetiva, isto é, a miséria do espaço ou o vazio da opulência podem refletir e conflitar com a trama e os desejos protagonizados pelas personagens. De maneira alegórica, como parte do conflito interno — o espaço interno, na cabeça e espírito das personagens — e, simbolicamente, no sentido bachelardiano, enquanto casa, ninho e cantos simbólicos da própria angústia. As questões ligadas ao ritmo narrativo se aproximam muito das considerações gerais que há sobre ele na criação ficcional. Dito isso, podemos destacar uma maior ocorrência — ou um maior potencial de harmonização com a ambiência existencial — de dois

fatores ligados ao ritmo: a) a natureza episódica da narrativa, ou seja, calcada em recortes e trechos da vida das personagens, sem grande vínculo com a unidade aristotélica da formulação de enredo; b) letargia, distensão temporal dos momentos, demarcações aproximadas do tédio e do vazio. Já a angústia é uma proposição de ambiência, atmosfera, que atravessa todas as outras quatro engrenagens da NME. Não estaria errado também se pensássemos nela como um centro de onde as outras engrenagens vão surgindo — talvez não apenas as citadas aqui, mas também outras latentes, mais particulares a uma dada narrativa. A noção de angústia é o ponto comum que se pode perceber na esteira do pensamento existencial, um ponto de toque entre Pascal, Kierkegaard, Nietzsche, Sartre, Camus. Ela está sempre olhando para a personagem, sempre se fazendo sentir e perceber. Comumente é descrita como o nada que não tipifica uma determinada tristeza ou ansiedade: se sente, embora não se saiba sua razão. É o nada que nadifica a vida e que nos alerta para o vazio da derrocada de uma essência que se teima em perceber como precedente à existência.

Em terceiro lugar, as cinco engrenagens previstas, quando observadas dentro da materialidade da formulação audiovisual, possuem desdobramentos específicos. A materialidade das mídias impõe — na sua qualidade de imagem técnica — uma determinada organização estética da proposta existencial vinda da matriz. É importante sublinhar que cada organização midiática da narrativa de matriz existencial vai dialogar diferentemente com cada sensibilidade estética que a apreende.

Esses três pontos buscam inaugurar e estabelecer o conceito de narrativa de matriz existencial dentro de uma sistematização pragmática e concreta. É evidente que esse tipo de proposta acaba, muitas vezes, por fugir do próprio fluxo do processo criativo envolvido em determinadas elaborações narrativas. Mesmo vivendo em uma sociedade e temporalidade distante do auge do estruturalismo, é possível ainda sentir sua tributação em diversas pontas da criação ficcional, seja nos processos pessoais autorais ou mesmo nas questões relacionadas ao ensino da produção ficcional. Como dito anteriormente, trata-se de uma ferramenta que pode auxiliar as duas pontas do encontro com a narrativa: sua criação e sua análise enquanto objeto pronto. Certamente há aproximações e distanciamentos entre as engrenagens (entre elas) e também do próprio devir das histórias com a proposta da NME. Não vejo isso como uma desqualificação do conceito, mas como uma porta ou janela por onde novas considerações podem surgir e melhor abarcar o processo criativo.