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Considerações fi nais

No documento Funcionalismo e ensino de gramática (páginas 95-101)

A gramaticalização do verbo ir: implicações para o ensino

5. Considerações fi nais

A análise dos dados coletados no Corpus D&G revela um elevado índice de emprego do verbo ir como auxiliar, predomi- nantemente na oralidade, conforme se pode comprovar no Quadro 1. A variável escolaridade não exerceu aqui nenhuma infl uência quanto ao uso desse verbo como auxiliar, haja vista a freqüência de ocorrência equivalente por parte dos estudantes da 8a série do

ensino fundamental (91%), bem como pelos estudantes do ensino superior (95%), o que evidencia o processo de gramaticalização de ir como marcador de tempo futuro.

Ao lado desse uso, constatamos também a ocorrência de

ir como verbo principal, conforme o Quadro 1, com igual predo-

mínio de ocorrência na oralidade. A dupla função de ir no corpus examinado, ora como verbo principal com sentido de desloca- mento espacial, ora como auxiliar com sentido temporal, refl ete o processo de abstratização progressiva que pode sofrer um item lexical, tal como o prevê a corrente funcionalista. A ocorrência de tal fenômeno se dá pelo fato de o usuário lançar mão de ele- mentos de sentido concreto já disponíveis no sistema lingüístico para veicular um sentido abstrato que tenha estreita relação com o sentido original do item selecionado. Nesse caso, por um proces- so de transferência metafórica, o domínio de experiência de des- locamento temporal (uso de ir como auxiliar) é conceitualizado em termos do domínio de experiência de deslocamento espacial (sentindo fundante do verbo ir).

Nos textos analisados, o tempo futuro é codifi cado, em sua grande maioria, pela forma perifrástica através do emprego do verbo ir no presente do indicativo acompanhado da forma infi nitiva de outro verbo, conforme atesta o Quadro 2. A forma analítica sobrepõe-se em número de ocorrências à forma sintéti- ca, sobretudo na oralidade e com pequena ocorrência na escrita. Conforme se pôde notar no mesmo Quadro 2, o fator escolari- dade não exerceu infl uência quanto ao uso da forma analítica; surpreendentemente, observa-se uma ocorrência da construção perifrástica maior entre os informantes do ensino superior, o que

pode ser interpretado como a consolidação dessa construção na representação do tempo futuro em português.

A forma sintética, defendida pelas gramáticas normativas como a forma canônica de representação do porvir, está perdendo sua posição de destaque, tendo sua ocorrência restrita a contextos mais formais da escrita e da oralidade. Se, como afi rmam as gra- máticas, o futuro analítico representa uma elaboração de domínio intelectual, portanto mais refi nado, exigindo por parte do usuário um maior domínio da variedade lingüística padrão, era de se es- perar que os estudantes do ensino superior, em oposição aos do ensino fundamental, registrassem o uso da forma sintética, o que foi confi rmado pela nossa análise: enquanto estes não produzi- ram nenhuma forma de futuro sintético, naqueles, embora muito pequena, a ocorrência do futuro fl exionado se dá tanto na fala (3 casos) quanto na escrita (5 casos).

Queremos ressaltar também a importância do contexto discursivo em que a forma analítica se faz presente e que confi rma o seu caráter temporal. A presença de elementos como advérbios e locuções adverbiais de tempo que apontam para um momento posterior ao ato de fala são um forte indício de que a forma peri- frástica (ir no presente + verbo no infi nitivo) esteja determinando um sentido de tempo futuro.

Dessa forma vê-se instaurado o processo de gramatica- lização do verbo ir, que tem sua origem num item lexical (com sentido espacial) e se especializa como um item gramatical (com sentido temporal). Esse processo ocorreu num continuum uni- direcional, seguindo uma trajetória de abstratização progressiva do signifi cado, partindo do mais concreto (espacial) para o me- nos concreto (temporal), e culminando na indicação de relações discursivas (textual). Vale lembrar aqui o princípio de camadas defendido por Hopper (1991), que prediz que os novos sentidos que surgem não põem fi m ao mais antigo, podendo coexistir e interagir, dentro de um contexto determinado. Esse fato é corrente com o verbo ir, que tanto se realiza como elemento indicador de deslocamento espacial como também é empregado na representa- ção do tempo futuro.

Quanto à infl uência do gênero textual no emprego do futu- ro composto, pudemos verifi car no quadro 4 que o maior número de ocorrências da forma perifrástica se deu no sub-gênero discur- sivo relato de opinião, com 31% das ocorrências. Nesse tipo de gênero, o falante manifesta um posicionamento face ao que está sendo relatado, levando-o a uma exposição de seus pensamentos, crenças e valores a respeito do vir a ser, caracterizando assim a sua subjetividade.

Apesar de alguns compêndios gramaticais fazerem re- ferências a ir como auxiliar temporal, ainda assim, consensual- mente, a forma sintética de futuro é privilegiada pelas gramáti- cas normativas, que reproduzem, apenas, modelos distanciados do uso real da língua em contextos interacionais. Nossa pesquisa confi rma o caráter maleável da gramática que, segundo a con- cepção funcionalista, está “num contínuo fazer-se, mas nunca se estabiliza” (HOPPER, 1987), tendo em vista atender às neces- sidades comunicativas e cognitivas dos seus usuários. É no uso que as estruturas gramaticais efetivamente se realizam, tornando possíveis determinadas realizações que a gramática tradicional vê com certa cautela, herança da visão compartimentalizada dos fatos lingüísticos. Não queremos aqui relegar as gramáticas a um segundo plano ou bani-las, mas despertar o interesse por parte daqueles que ensinam o idioma materno para que se sensibilizem, procurando instrumentalizar e conscientizar seus alunos para a existência das duas formas de expressão da linguagem: a formal, mais cuidada e presa a normas e a informal, mais livre e criativa, colaborando, assim, para torná-los usuários competentes nas di- ferentes instâncias públicas da linguagem.

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Os conectores e, aí e

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