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Considerações em torno da literatura de testemunho

CAPÍTULO V À PROCURA DA NOVA ANTÍGONA: POR UMA

5.2 Considerações em torno da literatura de testemunho

A literatura de testemunho30 é uma expressão cultural específica do período pós-guerra e pós-ditaduras latinoamericanas. Essa conceituação surge na década de 70 exatamente no continente que carrega uma forte herança da exploração colonial: A América Latina. Sua origem, quanto ao marco , ocorreu no momento em que os jurados do concurso literário, do Prêmio da Casa das Américas, em Cuba, se depararam com uma dúvida em relação ao enquadramento de certas obras inscritas, haja vista que elas não se categorizavam, pelas suas peculiaridades, dentro de nenhum gênero da tradição literária. Eram de caráter altamente testemunhal, carregadas de memórias da violência humana e da tortura psicológica. Contudo, sua

30 “Em latim pode-se denominar o testemunho com duas palavras: testis e superstes. A primeira

indica depoimento de um terceiro a um processo. (...) Também o sentido de superstes é importante no nosso contexto: ele indica a pessoa que atravessou uma provação, o sobrevivente (SELIGMAN- SILVA, 2003, p. 371).

difusão mais intensa se dá a partir das décadas de 80 e 90 num período de abertura política e redemocratização de muitos países. E tem a ver com o momento de retorno dos exilados, militantes políticos e violentados da terra de toda ordem de pessoas por regimes ditatoriais. Essas vozes se insurgem vindo a público como história não oficial, contada agora do ponto de vista dos vencidos e degradados em sua dignidade.

Esse tipo de expressão literária (testimonio) resguarda uma forte ligação com outra concepção de testemunho, a chamada reflexão sobre a Shoah, termo hebraíco que significa aniquilação, vindo substituir o uso recorrente de holocausto. Em suma, trata-se de um campo de reflexão sobre as consequências do terror nazista. Tanto o

“testimonio” latinoamericano, quanto a Shoah enfrentam o problema de

representação das imagens da dor e do sofrimento pelo uso da palavra, entretanto, não abrem mão do caráter mimético resguardado na força expressiva da literatura ou arte.

Já foi sugerido que o testemunho é o modo literário – ou discursivo – por excelência de nosso tempo e que nossa era pode ser definida precisamente como a era do testemunho. „Se os gregos inventaram a tragédia, os romanos a epístola e a Renascença o soneto‟, escreve Elie Wiesel (1977, p.9), „nossa geração inventou uma nova literatura, aquela do testemunho (FELMAN, 2000, p. 18).

As experiências históricas do século XX marcadas indelevelmente pela catástrofe, criaram o humus cultural e pós-traumático para o surgimento do testemunho, o qual, na nossa compreensão, é a narrativa da dor e do sofrimento humano causado proeminentemente pela violência de Estado, mas também de toda e qualquer natureza. Nessas circunstâncias ele pode ser encarado como a figura contemporânea da “nova Antígona”, agora envolvida na luta para quebrar a “afasia” derivada do trauma e romper o silêncio. O sentido do trágico se expressa não na centralidade de um herói, mas na vivência de uma pessoa agredida que se esforça para contar sua própria dor como sobrevivente. Ela conta como foi afetada na sua condição humana. Daí que a literatura do testemunho, já consagrada como gênero, é uma expressão que sempre remete “a uma relação entre literatura e violência” (MARCO, 2004, p. 45), cujo elemento central é a catástrofe humana.

Contudo, não seria o Prêmio Casa das Américas o criador do testemunho em sentido lato, ao dar status de gênero a esse tipo de literatura, antes disso a

composição ontológica do testemunho é o reflexo de resistência na medida de esforço por expressar a violência histórica do século XX. Ele é resultado das incongruências e injustiças da temporalidade da história moderna, exatamente daquela que representa um amontoado de catástrofes. O ato de testemunhar é a “farpa” que escapou à consolidação do espírito absoluto, contrapondo o harmonioso desfecho da concepção hegeliana da história.

Outro ponto fundamental se refere

ao caráter “democrático” desse modo de composição do testemunho, uma vez que ele viabiliza a entrada na cultura letrada das vozes de outras identidades, das vozes até então silenciadas, do texto produzido a partir de espaços externos ao poder constituído, da interpretação não oficial da história (DE MARCO, 2004, p.48).

A prática do testemunho como texto literário consiste principalmente numa denúncia sobre a corrosão dos direitos humanos mais básicos, da perspectiva subjetiva de quem vivenciou a dor ou passou pelo trauma. Com efeito, “„um testemunho de vida‟ não é simplesmente um testemunho sobre uma vida privada, mas um ponto de fusão entre texto e vida, um testemunho textual que pode nos

penetrar como uma verdadeira vida” (FELMAN, 2000, p.14. Grifos da autora). O teor

da narrativa do testemunho gera sempre uma identificação afetiva com a dor do outro. Por conseguinte, o saber trágico ou consciência trágica que decorre desse testemunho de vida, perpassando-nos com sentido profundamente real, se encaminha para nós como uma “preocupação com a humanidade do outro”. Não se trata simplesmente de uma ética assente em fundamento racional ou normativo, mas num ímpeto pré-racional que se volta para o outro que sofre.

No dizer de Levinas (2003), o testemunho é a transcendência do testemunhado, pois a testemunha seria sempre alguém diante do outro. A narrativa testemunhal afeta o outro como phatos estético. Ela reconta a efetividade da ocorrência factual numa configuração estética do acontecimento, justamente por repintar mimeticamente aquilo que a arte em algum momento já arremedou da realidade. O espanto reside na veracidade da representação do real. Daí que as “obras de arte contemporâneas usam frequentemente o testemunho, tanto como objeto de seus dramas, quanto como meio de sua transmissão literal (FELMANN, 2000, p.16). Não é por outra razão que Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos

e Recordações da Casa dos Mortos, de Dostoieviski, podem ser consideradas simultaneamente expressões da arte e do testemunho. Ambas as obras possuem como testemunhos a dimensão da realidade vivida. Ademais,

O testemunho também se sabe obra de uma testemunha, que é sempre um foco singular de visão e elocução. Logo, o testemunho é subjetivo e, por esse lado, se apresenta com a narrativa literária em primeira pessoa. O testemunho vive e elabora-se em uma zona de fronteira. As suas tarefas são delicadas: ora fazer a mímese de coisas e atos apresentandos-os „tais como realmente aconteceram‟ (conforme a frase exigente de Ranke), e construindo, para tanto, um ponto de vista confiável ao suposto leitor médio; ora exprimir determinados estados de alma ou juízos de valor que se

associam, na mente do autor, às situações evocadas (BOSI, 1995, p. 310.

Os grifos são nossos).

A estética do testemunho coloca em movimento as dimensões do afféctus no leitor/espectador. A identificação afetiva com a dor vivida, “em primeira pessoa”, na efetividade do acontecimento provoca a experiência mimésica do trágico, o que permite uma compreensão da realidade e da história contemporânea na perspectiva dos sofridos. Inclusive, em termos do curso histórico, o testemunho é um não- idêntico, porque, ao ser exprimida para fora da história, “a verdade subjetiva de uma só testemunha poderá valer pela verdade objetiva que a História pretende guardar e transmitir” (BOSI, 1995, p.321). Vale reforçar que: se o lutilúdio benjaminiano reencontrou o valor do trágico na história, como forma de ostentar as faces da violência histórica, o testemunho, por sua vez, experimentou subjetiva e corporalmente o sofrimento na efetividade do trágico, e agora como forma de resistência do não-idêntico, denuncia numa linguagem mimética, “como medium para um outro”, a vida humana danificada em seu direito mais básico de ser. Por essa razão o testemunho é composto de um compromisso altamente ético:

A tarefa de lembrar a tragédia, de narrar o núcleo dos fatos – enfim, de

narrar a história a contrapelo –, envolve ainda o enfrentamento, por parte do

narrador, do sofrimento experimentado, além de alimentar nele esperança

de que tal narração seja um meio de acusar o inimigo pela barbárie perpetrada, impedindo-o assim de continuar a adotar tais práticas

(FRANCO, 2003, p.360. Os grifos são nossos).

É nessa exata dimensão que o testemunho carrega o sentido do trágico como contraposição às encarnações do mal no homem e na história.

5.3 A voz do testemunho: A força estético-formativa do trágico no tempo