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CAPÍTULO V À PROCURA DA NOVA ANTÍGONA: POR UMA

5.3 A voz do testemunho: A força estético-formativa do trágico no tempo

5.3.3 A estética trágico-testemunhal

Na narrativa testemunhal consiste a fonte básica da possibilidade de o trágico reaver o seu peso na formação humana em vista das condições de vida do tempo atual. Pois o trágico é uma categoria estética que expressa o sofrimento humano, desenvolvendo uma sensibilidade implicada com a dor alheia. Nesse sentido, a dor do testemunho relembra que, se essa dimensão da formação constituída pelo trágico não estiver assente no fulcro das relações afetivas entre as pessoas, o direito humano mais básico da dignidade do homem acaba enfraquecendo-se. Com efeito, é aberto um caminho para a instauração da frieza como modo geral e natural de se estabelecer relações no horizonte das vivências quotidianas comunitárias e institucionais.

O testemunho se constitui como uma figura trágico-histórica, dado que revela em si o particular de uma coletividade que sente as dores e as incongruências da vida social perpetrada pela injustiça como sendo as marcas de uma violência à parte da história oficial. Por essa razão, o espaço da cena histórica do testemunho é desenhado no conflito entre a luta por autodeterminação do sujeito abnegado do direito de ser e o “Estado Creôntico”, obstinado pela opressão imputada a grupos destoantes da norma imperativa, preservadora da barbárie, seja nas ditaduras ou em algumas frágeis democracias ocidentais que alimentam o Estado de exceção.

A voz do testemunho se configura como uma força estético-formativa porque apresenta um phatos provocador de choque através da narrativa da dor, como ficou demonstrado nos testemunhos de Levi (1988) e Menchú (1993). Essa voz é convidativa à elaboração de cenários chocantes. O acontecimento narrado surge na forma de uma “Aparição” (Apparition) (ADORNO, 1970) impactante, porque tenta imitar o absurdo de uma realidade irrepresentável. Os fatos provocam o horror instantâneo, de um lado, para em seguida, de outro, se emudecer, entrar em pausa ou ser estancados por uma racionalidade questionadora: Na forma de uma figura trágica o testemunho se indaga, e nesse momento, mímesis e racionalidade se imbricam na fruição estética do “contemplador”. Pois diante das cenas ele está

perplexo e indagativo no seu acompanhamento frente ao desenlace do relato testemunhal. No jogo dessa cumplicidade catártica acaba também por colocar em parênteses seu próprio contexto de vida. O caráter denunciativo da arte na obra testemunhal convoca à reflexividade crítica em virtude da descentração de si em direção a alteridade do outro.

Aqueles que contemplam a narrativa testemunhal, “revivem” pela experiência

mimésica do trágico a dor do sofrimento. Por conseguinte, apreendem o caráter

inviolável dos direitos humanos pelos canais da sensibilidade e não apenas da razão conceitualizadora. Dessa forma, o testemunho também se revela como uma arte da

perplexidade reflexiva em face da condição existencial.

A estética testemunhal é perpassada pelo sentimento da iminência da morte. Essa constante acompanha permanentemente o leitor ao longo da obra: “A morte é a sanção de tudo o que o narrador pode relatar. É da morte que ele deriva sua autoridade” (BENJAMIN, 2012 p. 224). Essa dimensão do testemunho, para quem se defronta com ele, é rememorativa da finitude humana nas circunstâncias da

“fortuna”. Tal dimensão coloca em cheque a metafísica e exige um olhar atencioso

para a elaboração de um telos terreno para a vida social e subjetiva. Daí que a narrativa testemunhal consome sensações na medida em que afeta esteticamente aquele que se coloca a “escutá-la”, e ver no seu interior o “fantástico” que o engolfa num sublime negativo, pois não há palavras para expressar a aniquilação de um homem. Isso transborda a compreensão cognitiva, por isso essa questão somente é sentida em termos estéticos. Essa inexorabilidade da cena testemunhal é característicamente traumática, posto que a testemunha vivencia uma violência histórica que é temida mais do que a própria morte. O testemunho revela em suas imagens da dor que, quando o espírito se prepara para desaparecer, boa parte daquilo que o constitui já foi esfacelada. Assim, todo aquele que se reporta às cenas passa a ser aportado pelo estremecimento, em que é invocado a “reviver” no plano

mimésico-imaginativo a desfiguração humana da corporeidade como palco do

sofrimento. Com efeito, esse “estremecimento” ou “calafrio estético” auxilia a denunciar, sobretudo, uma ordem preposta do mundo que justifique direta ou indiretamente a exploração humana como uma das condições do progresso material da sociedade.

Outro elemento fundamental numa estética do testemunho refere-se ao tempo. A dimensão da temporalidade na perspectiva da testemunha no quadro da

obra narrativa, deslumbra uma sensação de tempo estacionário de um absoluto presente continuum o qual se direciona para fragmentos de memória situados no passado, como se fossem imagens da redenção. Não raro, o que se apresenta com certa frequência de intensidade estético-afetiva são imagens circunscritas a momentos da infância. Esse fenômeno aparece muitas vezes como alento de vida para a testemunha manter-se cônscia frente à percepção de uma temporalidade sem futuro, que só é remontada aos poucos numa fase pós-traumática. Esse tipo de afetação invoca o leitor a reconsiderar seus ciclos de vida e o desenho de sua própria existência em face das dores do mundo e da possibilidade de passar a pensar com mais profundidade sobre o que é perene e substancial no mundo contemporâneo para a construção da vida boa em termos mais justos no seu nicho imediato de atuação cotidiana.

A representação sensível presente na linguagem do testemunho fomenta no contemplador uma nova Aisthesis, uma outra faculdade de sentir, porque é desenvolvida uma capacidade de sensibilizar-se pelas injustiças antes mesmo de pensar racionalmente a respeito delas. Então o testemunho entendido também como uma expressão trágico e estética de um tempo pós-traumático, encontra na literatura a emancipação da angústia e das dores em face da totalidade esmagadora. Por isso, em seu tom estético “a escrita do testemunho tem a ver com essa voz-em- situação (BOSI, 1995, p. 311). Seria, por conseguinte, nessa “Aparição” (apparition) em que a figura trágico-testemunhal convence o estado de coisas existentes na realidade social da sua absurdidade, posto que esse estado de coisas em jogo mantém vivas as causas e as condições para que o mal se repita.

Portanto, a função ético e estético-formativa do testemunho se cumpre naquele “Mais” (ADORNO, 1970), corporificado substancialmente como aparição que fica em suspenso para o contemplador, e está aguardando reflexões, situado entre a fronteiras da negação do existente e a projeção de novas condições existenciais de vida no tempo histórico.