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CAPÍTULO V À PROCURA DA NOVA ANTÍGONA: POR UMA

5.1 O testemunho como figuração da nova Antígona

O Processo27 de Kafka (1963) é icônico ao mostrar a imagem do trágico expressa no silêncio. Isso se consolida no momento de aniquilação da figura de Joseph K. O silêncio denota um outro sentido do trágico na dificuldade de representação. O drama da vida é colocado assim em suspensão, pois ela é elevada a um nível de compreensão que se coloca acima dos conceitos. Salvas as diferenças contextuais, nem de longe Joseph K. poderia ser comparado a Antígona, pois ele não sabe contra quem luta. A sentença sumária de sua morte não era esperada e nem justificada. A obra termina inesperadamente com o fim de seu personagem central. Ela se encerra no silêncio com o término da angústia, rodeada por uma série de dúvidas. Há castigo, mas não é revelada a existência de crime. A busca desesperada ao longo do desfecho da história para saber qual é a acusação em jogo revela, ao mesmo tempo, a falta e a procura de sentido, portanto, também expõe a miséria do trágico e a sua transformação na vida moderna: contra quê é preciso lutar? Assim pode também ser definida a época moderna, pós-heróica, fragilizada e impotente de autodeterminação frente às forças injustas e repressivas. Ao mesmo tempo em que não há um inimigo concreto como Creonte, há um inimigo maior espargido em toda parte na condição de sistema. Daí que a tão aclamada autodeterminação kantiana, como selo de uma modernidade de tempos esclarecidos, já se corporifica na espécie de uma figura trágica, dadas as peripécias com que se debaterá, vindas das ideologias interpostas à emancipação do sujeito para contrapor injustiças humanas.

O Processo é profético do ponto de vista histórico como um prenúncio do

nazi-fascismo. Depois da indescritível experiência dos campos de concentração, do mesmo modo que a obra do escritor tcheco, também

os poemas de Celan querem exprimir o horror extremo através do silêncio. O seu próprio conteúdo de verdade torna-se negativo. Imitam uma linguagem aquém da linguagem impotente dos homens, e até de toda

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Conta a história de como a vida pacata do funcionário de um banco é transformada quando recai sobre ele uma acusação inexplicada. Seu cotidiano passa a ser acometido de uma série de acontecimentos em virtude da procura por saber qual a natureza do processo. Um estranho tribunal se interpõe na sua vida e pessoas inusitadas aparecem no desfecho desse processo. O “fantasioso” e o “inesperado” ocorrem a todo momento, se encerrando na sentença de morte de Joseph K., sem justificativa fundada. Resta para o leitor um grande silêncio permeado de muitas dúvidas. A idéia de “fantástico” e “inacreditável” presente nessa obra acaba por jogar o sentido do trágico num aspecto mais realista e menos idealizado. Isso se expressa também na fala de Lukacs quando foi detido na Romênia, disse ele, diante daquela situação específica: que sabia agora que Kafka era um escritor realista.

linguagem orgânica, a linguagem do que está morta nas pedras e nas estrelas” (ADORNO, 1970, p. 54).

Por isso, aqueles que vivenciaram experiências de extrema violência resguardam algo no silêncio, seja os que morreram ou os que se veem impossibilitados de narrar totalmente o terror. E a tentativa do sobrevivente de narrar as faces do desespero sempre se debaterá no limite de encontro com esse silêncio, porque, segundo Primo Levi (1990), aqueles que de fato encararam o terror integralmente face a face não retornaram para narrar. Eles silenciaram no limite da existência. Com efeito, o sentido do trágico também se corporifica no mundo do pós- guerra como o permanente embate na tentativa de expressar a dor. Então, o

testemunho, aquele que também fala por quem foi apagado pela catástrofe, é por

assim dizer, a Antígona dos tempos atuais, dado que “testemunhar (bear witness) é aguentar (bear) a solidão de uma responsabilidade, e aguentar (bear) a responsabilidade precisamente dessa solidão” (FELMAN, 2000, p. 15). Daí por que o testemunho28, assim como a lição formativa da tragédia sofoclesdiana, tem muito a nos oferecer em termos de formação, evidentemente com outro conteúdo formativo. Não seria por outro motivo também que Karel Kosik (1995), ao tematizar a possibilidade ou impossibilidade do trágico no contemporâneo – levando adiante a transformação dessa categoria, iniciada por Kierkgaard e Hegel – coloca o destino de Milena Jensenska29, num campo de concentração nazista, como uma espécie de testemunho, que poderia representar a “Antígona dos tempos modernos”. Novamente o trágico ressurge com novo condimento formativo, cujo referencial é “a verdade do sujeito testemunhal compreendido como sujeito coletivo. Essa „verdade do sujeito‟ é a „sua voz‟ (uma espécie de versão da bela alma rousseauniana que nas suas Confissões pretendia expressar sua alma por inteiro através de sua „voz‟)” (SELIGMANN SILVA, 2003, p. 36). Assim, a tematização da degradação da humanidade do outro é o plasma com o qual a estética do testemunho nos recobre de fruição e estremecimento diante do mundo. Em virtude disso o testemunho é

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Assim, na lógica de discussão deste trabalho, ao jogarmos com a maleabilidade do conceito trágico (Eagleton, 2003), queremos destacar a transformação do sentido do trágico presente na tragédia antiga, passando pela catástrofe moderna na história. Desse modo buscamos uma aproximação teórico conceitual entre a força educativa da tragédia e o potencial formativo presente no testemunho, no sentido de recuperar a dimensão formativa do trágico na formação humana dentro do contexto contemporâneo, especialmente na docência.

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sempre referencialmente exemplar do sofrimento humano, a ponto de colocar em suspensão certezas existenciais a respeito das condições e formas de vida. Com efeito, o destino de Jesenska nos afeta como um mártir testemunhal.

O „animar-se‟ a dar testemunho tem a sua origem ou sua própria história na história etimológica do termo; etimologia que é também a história do testemunho. Originalmente „testemunho‟ vem do grego „mártir‟, „aquele que dá fé de algo‟ e supõe o fato de se haver vivido ou presenciado um determinado fato. Entre os gregos, de fato, o uso de mártir conota sofrimento ou sacrifício e atende basicamente ao fato de ser fonte de primeira mão. Ao passar ao latim, e sobretudo com o advento da Era cristã, mártir adquire o significado hoje vigente daquele que dá testemunho de sua fé e sofre ou morre por isso. Aqui é, pois, quando o termo adquire o sentido de conduta exemplar. A vida do mártir é oferecida em narração biográfica como um exemplo a respeitar e eventualmente a seguir; quer dizer, a narração de sua vida é oferecida como uma conduta moral exemplar e exemplarizante (ACHUGAR, 1992, p. 59).

Assim, o testemunho congrega em si o chamado caráter de exemplaridade, ou seja, a sua importância não se restringe ao aspecto de uma vida singular, para além disso ela é representativa das dores de muitas e variadas pessoas, de toda uma comunidade de excluídos, oprimidos e subjugados. O testemunho nesse sentido é a voz de uma história abafada por conta da violência do opressor. Ele é sempre o exemplo do sofrimento de muitos.