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“Não vamos, portanto, tratar aqui do sofrimento e da morte dos grandes heróis e mártires, mas dos’ pequenos’ sacrifícios, e da ‘pequena’ morte da grande massa” (Viktor Frankl In. “Em busca de sentido: Um psicólogo no campo

de concentração”)

“A única finalidade da ciência é aliviar o sofrimento humano” (Brecht)

Quando o Banespa foi privatizado, em 20 de novembro de 2000, perguntei- me sobre quais os impactos que esse evento teria para a vida dos quase 21.000 funcionários do banco. Movido por essa pergunta, construí as narrativas biográficas de Nilton, Maria, Grozzi e Rita.

A construção das narrativas biográficas foi, estruturalmente, marcadas por esses impactos. As narrativas, das quais me detive aqui em duas delas, a de Nilton e a de Maria, possibilitou responder a minha pergunta inicial na medida em que, analiticamente, permitiram considerar três diferentes aspectos: i) a informação sobre do contexto em que elas se inserem; ii)a compreensão sobre a constituição das subjetividades nesse contexto; iii) a reflexão sobre a minha interação com os sujeitos pesquisados. Por tudo isso, as narrativas possibilitaram construir uma outra, uma narrativa teórica, a partir do sentido da experiência no mundo do trabalho. Consideremos cada um desses aspectos.

Primeiramente, as narrativas referem-se à forma como ocorreu a mudança de uma empresa pública para uma outra em que opera a lógica de uma empresa privada, sobretudo o que isso implicou na perda das condições de trabalho herdadas historicamente pelos trabalhadores do Banespa. A privatização insere essa empresa rapidamente na lógica do contexto de transformações do sistema financeiro mundial e da reestruturação do trabalho bancário, em curso desde a última década, caracterizada por um processo de precarização do trabalho.

Especificamente, as narrativas indicam a forma abrupta e autoritária como se

técnico-produtivo, atrelado à lógica do capital, que não considerou a lógica cultural construída historicamente pelos funcionários do Banespa ao longo de suas trajetórias na empresa.

A implementação rápida dessas mudanças pela nova gestão do Santander resultou na quebra de valores que, simbolicamente, eram essenciais nas relações de trabalho, sendo que não houve a preocupação da nova empresa em agregar novos valores ancorados na tradição do Banespa. Disso resultou na perda do sentido de pertencimento em relação à empresa, da identidade banespiana, emergindo conflitos entre o público e o privado, e entre o nacional e o estrangeiro. Sobre esse último conflito, cabe ressaltar que a privatização, ao levar à desnacionalização do banco, evidenciou o modo como se operam as desigualdades no processo de mundialização do capital, notadamente o financeiro (Chesnais, 1996, 1999).

Vamos ao segundo aspecto. A forma como Nilton e Maria constituíram-se como sujeitos distintos em suas narrativas permite considerar outros elementos para a análise uma vez que isso indica como eles foram evocando, subjetivamente, essas mudanças e os seus impactos a partir de suas histórias de vida.

As narrativas possibilitaram que eles se posicionassem como sujeitos em tempos e espaços próprios no contexto das mudanças. Nesse sentido, construíram uma historicidade particular, entre lembranças e esquecimentos, e também um itinerário próprio que situa seus lugares entre o trabalho no Banespa e outros espaços de suas sociabilidades. Na verdade, eles foram constituindo a si nesses lugares entre o trabalho, o universo familiar, mas também entre suas afiliações religiosas e valores morais e nacionais.

As relações de trabalho construídas historicamente pelo Banespa, ao menos na percepção contemporânea desses dois sujeitos, vincula-se à identidade banespiana que era permeada por afetos e sentimentos, tal como os que existem na família, nas relações de parentesco e de amizade. As relações de trabalho no Banespa permitiam a formação dessas redes de sociabilidades entre seus funcionários, o que resultava, como contrapartida, no empenho e comprometimento no trabalho, como contam Nilton e Maria, na medida em que se sentiam tributários ao que a empresa oferecia-lhes, mesmo considerando que, no passado, as relações de trabalho no Banespa foram marcadas pelas contradições de uma estrutura burocrática e paternalista, apontadas por Romanelli (1978).

As mudanças no Banespa, sobretudo decorrentes da privatização, resultaram nos seus desligamentos do Banespa e na ruptura com esses vínculos identitários. Mas, Nilton e

Maria não eram apenas os funcionários de um banco, pois se constituíram como pessoas no Banespa. As mudanças colocaram em xeque também, para eles, a forma como essa construção social, a de pessoa, no sentido maussiano, deu-se ao longo do tempo em suas vidas. Nilton e Maria não perderam apenas o trabalho no Banespa. Perderam, naquele momento, algumas referências de valores que norteavam para cada um o sentido de suas vidas, como homem e mulher, trabalhador e trabalhadora, pai e mãe, cidadão e cidadã de uma nação.

Consideremos mais um aspecto: o da interação entre os sujeitos e o pesquisador. Quando propus que narrassem suas histórias foi nesse contexto das mudanças do Banespa que os sujeitos construíram suas narrativas. Contudo, elas compõem um relato em que, por oposição ao processo recente que viveram, rearfirmaram a si como sujeitos sociais. Assim, por meio dos relatos, era como se reconstruíssem um novo sentido para suas vidas, rememorando e re-elaborando, subjetivamente, as experiências que viveram a partir do trabalho no Banespa.

Com tudo isso, eu pude construir uma narrativa teórica ao enfocar a noção de experiência, entendendo que essa encerra um processo de aprendizagem e uma dimensão intersubjetiva e autobiográfica presentes nas narrativas. Nesse sentido, é que pude entender que as narrativas são pedagogias da experiência no mundo do trabalho.

Cabe perguntar quais as especificidades do conhecimento que eu pude construir com as narrativas biográficas. O que pretendi, ao considerar diferentes aspectos das narrativas, foi demonstrar que esses se complementam e que não se excluem, e que também podem ser postos em relação nas narrativas biográficas.

Assim, posso considerar o que aqui foi realizado tal como Bertaux (1980) que entende que não se podem separar tipos de objetos sociológicos distintos para o estudo na abordagem biográfica, ou seja, o estudo da estrutura social do estudo da ação do sujeito, “donc

s’efforcer de réunifier la pensée du structurel et celle dy symbolique, et de les dépasser pour parvenir à une pensée de la práxis.” (Bertaux, 1980:205). A abordagem biográfica torna-se estratégica, para Bertaux, porque ela permite “révéler la qualité sociologique de l’expérience

humaine, et finalement la qualité humaine de l’expérience socio-historique” (p. 219). De forma análoga, considero também como Kofes (1984) que argumenta que “...as histórias de vida

continuam sendo instrumentos fundamentais para a compreensão e análise de relações sociais, de processos culturais e do jogo sempre combinado entre atores individuais e experiências sociais, entre objetividade e subjetividade” (Kofes, 1984:140).

Acrescento, contudo, que a abordagem biográfica coloca também possibilidades para pensar a própria narrativa, aproximando-a da interpretação hermenêutica. É que ela apresenta a lógica intrínseca de um texto, que é o resultado do ato dialógico entre o Outro, o biografado, e o seu autor. Portanto, a narrativa biográfica recoloca algumas possibilidades interpretativas, trazendo à tona as questões da autoria (e da autoridade do autor), da elaboração da escrita, do encontro etnográfico e dos limites da compreensão da própria cientificidade (Cardoso de Oliveira, 1998).

Portanto, as narrativas biográficas possibilitam a “suspeição da razão”, na significativa expressão lembrada por Cardoso de Oliveira (1998) para se referir à hermenêutica, ainda que eu entenda que o que pretendi aqui foi articular a compreensão hermenêutica e a explicação monológica - ligada a um paradigma racionalista – como considera Cardoso de Oliveira (1998): “A explicação, inscrita programaticamente nos paradigmas ‘da ordem’ não

colide com compreensão constitutiva da hermenêutica” (Cardoso de Oliveira, 1998:71). Assim posto, as narrativas biográficas explicam e nos dão a compreensão do mundo do trabalho.

Consideremos mais o sentido da experiência nas narrativas para refletir acerca do mundo do trabalho naquilo que foi contado por Nilton e por Maria.

As críticas que Benjamin faz à modernidade vinculam o declínio da experiência ao fim da narrativa tradicional. Para esse autor, a dissolução da experiência na modernidade explica-se porque perdemos a capacidade de narrar – de dar e receber um conselho, apresentar uma “lição de vida” ou uma maneira de agir –, ou seja, de transmitir a experiência, o que está associado “aos valores individuais e privados que substituem cada vez mais a crença em certezas

coletivas, mesmo que estas não são fundamentalmente criticadas nem rejeitadas” (Gagnebin, 1994:67-68). Sobre isso, Benjamin (1995) refere-se:

“Sabia-se exatamente o significado da experiência: ela sempre fora comunicada aos jovens. De forma concisa, com a autoridade da velhice, em provérbios; ou de forma prolixa, com sua loquacidade, em histórias; ou ainda em narrativas de países longínquos, diante da lareira, contadas a pais e netos. Que foi feito de tudo isso? Quem ainda encontra pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado hoje por um provérbio oportuno? Quem tentará sequer lidar com a juventude invocando a experiência?” (Benjamin, 1995:114)

Eu encontrei em Nilton e em Maria (e em Grozzi e Rita) bons narradores e, contrariamente à dissolução da experiência entendida por Benjamin, sobretudo hoje imposta