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CONSIDERAÇÕES FINAIS

No documento carmemlucianunesdepaulacalheiros (páginas 107-110)

O homem latino-americano não dispensa uma boa dose de emoção e paixão em tudo o que faz. Brasileiro gosta de futebol e samba, é personalista, confunde o público com o particular, elege a família como o centro de seus afetos e de sua devoção. Ferroviário é apaixonado por trem e se considera uma grande família, vivendo em um mundo particular, cercado de lembranças. Da criança que brinca com o ferrorama até o suicida que busca a morte pelos trilhos, a sedução e o fascínio que essa atividade exerce sobre o homem merece respeito. A palavra “trem” que no mineirês ganha múltiplos significados e empregos distintos, para o ferroviário também é sinônimo de trabalho e paixão.

Em rápida pesquisa na internet, é possível encontrar centenas de vídeos com depoimentos de ferroviários e ex-ferroviários que vivem da nostalgia dos áureos tempos do passado do transporte sobre os trilhos. Também assistimos, nos últimos anos, aumentar o interesse da mídia pela atividade, seja pelo fato de a ferrovia brasileira ter sua faixa de domínio cercada por contingentes populacionais e isso provocar uma convivência nem sempre pacífica com o cotidiano das cidades, seja pela promessa de que o Brasil crescerá sobre os trilhos. O fato de ter sido uma das primeiras categorias de trabalhadores de homens livres e sobre a qual eram depositadas as expectativas de expansão e crescimento do país, faz os ferroviários conviverem, ainda nos dias de hoje, com duas realidades contraditórias: o apego ao status alcançado pela categoria no passado e a aposta permanente como agente de desenvolvimento para o futuro. A ferrovia é, desde os tempos (e ambições) do Barão de Mauá, a manifestação concreta da esperança desenvolvimentista, em termos logísticos, tanto no transporte de passageiros, como no transporte de cargas. Planos logísticos são lançados e relançados, governo após governo, inflamam discursos políticos e incitam reflexões da sociedade. A ferrovia segue no olho do furacão.

Nesse trabalho, descobrimos que os entraves ao desenvolvimento pleno da atividade ferroviária vão muito além dos interesses e do discurso desenvolvimentista dos governantes: são frutos de problemas de ordem física, técnica e estrutural de diferenciação de bitolas, somada à falta de investimentos que impede a integração das diversas malhas ferroviárias, existentes no país. A raiz do problema remonta o modelo de concessão adotado lá trás, ainda no Brasil Império, sendo reforçado pelo descaso e abandono quando outros interesses econômicos – o investimento no setor rodoviário – por exemplo, pareceram mais lucrativos aos olhos (e bolsos) dos governantes e investidores. Talvez, por esse descompasso do tempo, os ferroviários ainda vivem hoje presos às memórias do passado, acalentando sonhos e

apostas na redescoberta dos trilhos como opção mais viável aos problemas de ordem logística, num país de dimensões continentais como o nosso.

A memória afetiva que a própria categoria carrega é reforçada ainda hoje no seu cotidiano. Na MRS, por exemplo, são muitos (muitos mesmo), os exemplos de várias gerações de ferroviários trabalhando na empresa: avós, pais, tios, primos, filhos, sobrinhos, netos, maridos e esposas. Portanto, é comum para esse público, família ser assunto no trabalho e trabalho tornar-se assunto de família. Há uma máxima que circula nos corredores da empresa de que ferroviário quando se aposenta compra uma casa perto da linha, só para continuar a ouvir o apito do trem. Essa relação tão estreita e próxima causou estranhamento no período que convivi diariamente com a rotina dos empregados, por quase três anos. E foi essa inquietude em encontrar respostas para essa constatação, uma das motivações dessa pesquisa.

Mas a estrela principal dessa dissertação é a afetividade. Qual a sua influência? Era a pergunta feita antes de me embrenhar nessa pesquisa. Algumas respostas foram dadas e considero apropriadas para o momento (pelo menos acalmaram meu coração por um tempo), mas a investigação que aqui se inicia não se esgota, muito menos nessa mensagem de despedida. É o começo de um processo de entendimento mais amplo. Falta tanto ainda! Como as contribuições da psicanálise, por exemplo. Investigar o inconsciente para desvendar, além dos aspectos antropológicos e culturais, também os aspectos psicológicos que levam os indivíduos (sobretudo os povos colonizados por países ibero-americanos) à tamanha suscetibilidade quando o assunto é emoção – é matéria para muito mais pesquisa e estudos envolvendo esferas do pensamento complexo.

É certo que o “homem cordial” de Sérgio Buarque de Hollanda foi um presente para essa pesquisa e minha motivação para ela aumentou, consideravelmente, depois dele. Entender porque para o brasileiro é tão importante criar vínculos e intimidade com pessoas e ambientes, para se sentir “em família”, respondeu boa parte dos meus questionamentos (e sofrimentos) e ajudou a compreender a raiz do comportamento inclinado a sempre buscar um jeitinho – isso mesmo, com a terminação “inho” que tanto gostamos – para tudo. Malandragem? Esperteza? Criatividade para driblar as incoerências e a falta de respostas para problemas da existência? Responder com perguntas deve ser um hábito cultural do pesquisador brasileiro.

A neurociência também mereceu amplo destaque nessa pesquisa. Antônio Damásio um de seus principais expoentes, na atualidade, ganhou minha atenção, sobretudo pela coragem de buscar respostas para uma inquietude (que devia ser a dele) de questionar a

supremacia da razão sobre a emoção. Para quem é mais cordial (na definição de Hollanda, como eu), foi um alívio saber que as emoções são tão relevantes para o processo consciente e racional da tomada de decisão. Também foi possível compreender melhor porque a campanha de segurança da MRS alcançou tamanha repercussão entre os colaboradores ao ativar a memória afetiva das pessoas, sobretudo pela importância histórica da ferrovia presente no imaginário dos ferroviários: a imagem construída de uma grande família que se desenvolveu ao longo dos trilhos e aparatos ferroviários. Na prática, descobrimos que, de fato, isso ocorreu, com o surgimento de vilas e povoados inteiros destinados aos trabalhadores da indústria ferroviária e suas famílias. Também explica o fato de a atividade ter sido, pela proximidade (as crianças cresciam dentro das oficinas) passada entre gerações.

Considero que as questões relacionadas ao processo constitutivo das emoções no maquinário neural foram respondidas pelos estudos e avanços alcançados pela neurociência. Também entendo que as pesquisas sobre aspectos da identidade brasileira respondem aos questionamentos apresentados na introdução desse trabalho e ajudam a compreender o perfil de escolhas mais emocionais do brasileiro. A história do surgimento da ferrovia, a necessidade de regras e procedimentos que visam à proteção das pessoas no ambiente de trabalho, também são fatores bem assimilados na tarefa de compreender a relevância do tema segurança na rotina do trabalhador. Se aplicássemos, por exemplo, a Pirâmide de Maslow, à estrutura organizacional, a segurança poderia ser, a considerar outros fatores, uma de suas necessidades relevantes.

Entretanto, as questões diretamente relacionadas ao afeto e à comunicação ainda carecem de muito mais aprofundamento. O tal “lado obscuro”, conforme citação de Muniz Sodré, é pouco explorado pelas ciências sociais como potencial de transformação do humano. As estratégias sensíveis estão sendo usadas amplamente, mas na maioria das vezes, na visão restrita da manipulação dos afetos com objetivos mercadológicos e ideológicos. A complexidade do tema exige uma investigação ampliada, com uma abordagem multidisciplinar, envolvendo múltiplos saberes, levando-nos a rumos inovadores na construção do conhecimento: pelas partes e pelo todo. Sabendo que a emoção é fundamental para a tomada de decisão, não podemos continuar assistindo passivamente o discurso soberano da razão como condição para o pleno desenvolvimento das relações e faculdades humanas.

No documento carmemlucianunesdepaulacalheiros (páginas 107-110)

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