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Não haveremos demolido tudo se não demolirmos inclusive os escombros. E não vejo outro procedimento para fazê-lo a não ser levantar com eles formosas estruturas bem ordenadas. Alfred Jarry, apud Roberto Fernández

A partir das margens tudo é – ou deveria ser – projeto. Marina Waisman

As epígrafes acima parecem dizer muito da construção da América em geral e da América Latina em particular, tema central do presente estudo. A frase de Alfred Jarry citada por Roberto Fernández no livro El Laboratorio Americano reflete bastante bem a estratégia adotada pelos colonizadores ibéricos – notadamente os espanhóis – para ocupação dos territórios conquistados na América: eliminar os traços da cultura pré-existente e com seus destroços construir estruturas representativas da cultura externa imposta por eles, de modo que com o passar do tempo sua permanência levasse à naturalização e incorporação de tais elementos, até que fossem tidos como próprios. Já a frase tomada de empréstimo de Marina Waisman diz da situação que ainda hoje vivemos e que coloca-se como permanente desafio: o projeto e construção das culturas, arquitetura e cidades latino-americanas. Tendo em vista as várias perdas de referencial que caracterizam historicamente a formação dos países da região, a busca de definições claras acerca de suas identidades culturais segue vigente. Tidas ainda hoje como culturas marginais ou periféricas, tal busca relaciona-se profundamente com a busca contínua de uma maneira coerente de projetar e construir o entorno que nos cerca e nos define (ou deveria definir): nossas cidades e nossa arquitetura.

Vimos ao longo do presente trabalho um panorama que tem como objetivo clarear as bases gerais de formação das cidades, da arquitetura e, porque não, da sociedade e da cultura urbana na América Latina. Tarefa pretensiosa, não pretende no entanto encontrar respostas mas, acima de tudo, levantar perguntas, e se possível instigar a curiosidade daqueles que venham a dedicar um pouco de seu tempo à leitura dessas linhas. A opção por estruturar o trabalho tendo como base três momentos históricos nos quais as mudanças e rupturas ocorridas parecem determinantes na formação de nossa realidade atual partiu em grande parte das dúvidas e desconhecimento do próprio autor com relação a períodos de tamanha importância que, não obstante, são relativamente pouco abordados ao longo da formação em arquitetura e quando o são, o são de modo pouco coeso e fragmentado.

Para proceder à abordagem de tais questões, fez-se necessário estabelecer inicialmente as principais bases conceituais empregadas ao longo do trabalho. São assim apresentados no Capítulo 2 algumas reflexões que buscam estabelecer tais bases. Inicia-se por um questionamento da construção historiográfica correntemente adotada em arquitetura, na qual uma dezena de livros canônicos são adotados como bases da formação em arquitetura em grande parte do mundo. Embora obviamente a leitura de tais livros não deva ser descartada, procura-se apontar porque que ela não abarca a totalidade dos fatores que envolvem a realidade arquitetônica e urbanística dos países latino-americanos, reforçando a necessidade de buscar outras fontes para um entendimento mais amplo da realidade

regional. Vimos ao longo do texto que não apenas outra proposição teórica acerca da origem mesma das cidades é possível, como sugerido por Jane Jacobs em The Economy of

Cities, mas sobretudo que outra construção historiográfica e crítica pertinentes à nossa

realidade encontra-se ainda em processo, do qual fazemos parte os pequisadores dedicados ao tema. O desdobramento do mesmo capítulo busca também desmistificar questão recorrente quando se trata do pensamento e produção de arquitetura e cidade na periferia do mundo: o controverso tema da influência. Como trata-se aqui do continente americano e particularmente do tramo latino deste imenso continente, fez-se necessária a breve identificação das diferenças primordiais – de formação, cultura, clima etc – entre as principais zonas da América, e que possuem características bastante distintas: norte, centro e sul. Por fim, em tratando-se a América de um território moderno por excelência, ao menos desde sua invasão e modificação pelos colonizadores europeus, considerou-se importante a definição mais clara de alguns termos e conceitos envolvendo a questão da modernidade, não devendo tais conceitos serem delimitados pelo período do chamado Movimento Moderno, mas em termos mais amplos, como sugerido por Cox:

Esta nossa condição de permanente “atraso relativo” na modernização e sobretudo na modernidade, que nos converte em tão dependentes do efeito demonstração, torna particularmente importante que não confundamos o desafio genérico das respostas peculiares de tal ou qual modernidade pioneira, que embora possam adquirir caráter emblemático, não são interpretadas como o que de fato são – emblemas do desafio – mas vistas como receita unívoca, congelada e dogmática, “da modernidade”, sendo assim metahistoricamente mal entendida. (…) Esta grande confusão é filha de uma redução do anímico-cultural-peculiar ao racional-civilizatório-universal, reforçado ainda pelo eurocentrismo do século XIX, quando os acontecimentos europeus se percebiam como sendo “A História Universal”. (COX: 1991, p. 29)

Ao abordar o período inicial da colonização da América Latina, datado aqui pelo ano de 1492, procurou-se ir além da mentalidade corrente, que tem início com a falácia do “descobrimento”, buscando demonstrar como não há nada mais distante da realidade que acreditar que em tão imenso continente nada havia de importante antes da chegada dos europeus. Superar os enganos construídos historicamente ao longo do tempo é um primeiro passo, mas há que reconhecer que a autonomia perdida pelos povos que habitavam a América antes do século XV não foi ainda hoje plenamente recuperada. Se, como bem colocado por Marshall Berman, a partir de 1492 o mundo americano que parecia sólido desmanchou-se – ao ponto que buscar hoje informações acerca da cultura e tradições construtivas e urbanas daquelas sociedades tornou-se questão de arqueologia – a reconstrução de nossa autonomia e auto-determinação em termos plenos deveria ser tomada como objetivo coletivo e político almejado por todos, como cidadãos. Como o

confirma Roberto Fernández, um maior entendimento do período colonial americano é apenas o primeiro passo para se compreender os fatores e particularidades que envolvem nossa realidade atual:

Desde cedo, o cenário americano, enquanto território preferencial de experimentação do laboratório moderno, será um espaço produtivo caracterizado por uma certa internacionalidade, que advém da correlação entre centros ou metrópoles colonizadoras e áreas culturalmente periféricas. As estéticas da Colônia – como manifestações peculiares de arte renascentista e, posteriormente, contra-reformistas –, as buscas neoclássicas e academicistas do período constitutivo das repúblicas e o ingresso nas formas periféricas da modernidade no século XX, explicam uma tendência à articulação de linguagens de importação e performances mais ou menos adaptadas às necessidades regionais e locais, nas quais não parecem existir grandes inovações no plano das formulações estéticas, mas sim declinações epigonais em torno dos discursos centrais originários. No entanto, a precoce coexistência das dimensões elitistas e populares – e, mais recentemente, massivas – impõe tensões peculiares que tendem a caracterizar o compnente híbrido das linguagens das culturas americanas. A isso se superpõe a história sócio-cultural que mescla componentes aborígenes com formas mestiças – as diversas situações de criolagem – a explosão de massas migrantes exógenas – que compõem o mundo dos gringos – e a dialética campo/cidade, engrandecida pelas circunstâncias peculiares da paisagem natural.

O específico ou regional é, assim, toda essa justaposição e dinâmica histórica de componentes diversos que conduzem a uma situação de hibridização, que [...] é por sua vez, distinta da condição de outros continentes colonizados, como os casos das culturas orientais ou africanas. A principal diferença reside [...] na relativa modernidade da cultura híbrida americana, na marcada vocação para a anulação dos elementos indígenas anteriores e no persistente projeto de encarnar as prefigurações utópicas europeias. Estes traços são eminentemente europeus e manifestaram uma densidade refundadora completamente distintas das outras experiências colonizadoras. (FERNÁNDEZ: 1998, pp. 285-286)

Tratando a seguir do período que envolve a Revolução Industrial, e no qual a América já se encontrava inevitavelmente englobada pela realidade e acontecimentos do chamado “Mundo Ocidental” procurou-se ir além da suposta neutralidade de tal processo, visando à compreensão mais abrangente dos fatores envolvidos e buscando identificar seus reflexos deste lado do Atlântico. Por volta de 1880, data aproximada da consolidação dos desdobramentos da Revolução Industrial europeia, houve na América o primeiro vislumbre de uma possível abertura para um caminho republicano e democrático, mas que acabou por resultar apenas na substituição de um domínio por outro, haja visto o poderio adquirido pela Inglaterra ao longo de sua industrialização pioneira. Busca-se nesta parte identificar de que modo as relações existentes entre a industrialização, a Revolução Francesa, a Independência dos Estados Unidos e as revoluções de independência dos países latino-

americanos viram-se refletidas na conformação e crescimento das cidades do continente. A relativa modernização de valores e costumes que ocorre a partir daí, viriam uma vez mais modificar as realidades locais e nacionais no âmbito da América Latina mas, além disso, alterar globalmente a relação até então existente entre natureza, cidade, habitação e trabalho, de modo definitivo. Intensificam-se enormemente a partir desse momento os trânsitos de ideias, conhecimentos e também de pessoas, cuja circulação na América seria determinante para o estabelecimento das feições urbanas de um território que, considerado

tabula rasa por excelência, seria submetido, ao longo de cinco séculos, a praticamente

todas as ideias em discussão no mundo ocidental:

Desta forma, desde o horror vacuii barroco até a vontade classificatória iluminista e a análise cientificista moderna, todas as técnicas ou procedimentos discursivos do grande arco de modernidade iniciado no século XV, parecem inserir-se comodamente, no trabalho cultural gerado na América, em um marco de intelectualidade erudizante e colecionística que se exemplifica desde Sarmiento ou Sierra até Paz ou Borges. (FERNÁNDEZ: 1998, p. 287)

Alcançando o período mais recente tratado na pesquisa, que inicia-se com o colapso da bolsa de valores de Nova York em 1929, o vislumbre de autonomia apontado pela ruptura dos laços neocoloniais não duraria sequer quinze anos pois, com o desvio do “centro do mundo” da Europa para os Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial, a América Latina caíria então sujeita aos ditames do poderoso vizinho ao norte do continente. Em meio às incertezas que passam a rondar o mundo após a Primeira Guerra Mundial, com a brutal destruição das cidades europeias, a consequente descrença no modelo capitalista até então adotado e a ascensão da União Soviética, muitos dos países latino-americanos encontram- se, por um período, indecisos entre o capitalismo em questionamento e o socialismo em crescimento. Se, como coloca Hobsbawm, “a Grande Depressão destruiu o liberalismo econômico por meio século e obrigou os governos ocidentais a dar às considerações sociais prioridade sobre as econômicas em suas políticas de Estado”1, não é de se estranhar que a

quebra da bolsa de Nova York, que levara consigo muitos dos países da região, abriu também a possibilidade de subida ao poder de governos militares e populistas do México à Argentina o que, como colocado por José Luís Romero, “unificou visivelmente o destino latino-americano”2. Se, como aponta Adrián Gorelik, “tinha chegado a hora em que os latino-

americanos substituíam importações, também na cultura”3, não seria ainda o momento da

sonhada autonomia, uma vez que tanto a dominação econômica inglesa quanto a influência cultural francesa ainda vigentes se veriam ambos substituídos pela presença dos EUA.

1

HOBSBAWM. Era dos Extremos, 2000, p. 229. (Ver 5.1.2.)

2 ROMERO. Las Ciudades y las ideas, 1976, p. 319. (Ver 5.1.2.) 3 GORELIK. Das Vanguardas a Brasília, 2005, p. 29. (Ver 5.1.4)

Vimos assim que as muitas das ideias e proposições urbanas que circularam pela América Latina ao longo dos últimos cinco séculos tenderam a frutificar. Construiu-se aqui o que Roberto Fernández tão bem denominou como o “laboratório americano”, espécie de campo de testes onde todas as ideias novas são geralmente recebidas de bom grado, haja visto que, com escassas excessões, a situação geral nunca esteve boa o suficiente para eliminar a expectativa de que pudesse melhorar, reforçando o mito dos “países do futuro”. Muito do que foi imaginado, às vezes utopicamente, aqui se testou, se realizou, se errou. Ideias mirabolantes, como por exemplo os viadutos habitáveis de Le Corbusier, se não executados em sua inteireza, foram no entanto realizados por partes e compõem hoje o imaginário arquitetônico-urbanístico da região e a paisagem brasileira e latino-americana.

Figura 6.1.: Acima, croquis de Corbusier para o Rio. No centro, plan Obus para Argel. Abaixo, Residencial Pedregulho, projeto de Affonso Eduardo Reidy e o viaduto do Joá, ambos no Rio de Janeiro. Ideias apropriadas, desmembradas e construídas com a liberdade característica do Brasil.

O forte pertencimento a uma situação de internacionalidade – já desde o debate mesmo da denominação e fundação dessa coisa, quase artificial, chamada América – é pois uma condição singular da história cultural americana, marcada por uma forte circulação do novo, entendido ao mesmo tempo como valor e fato inexorável, por uma certa estetização da interpretação do moderno (como facilidade de assimilar estilos e procedimentos mais que programas ou conteúdos: circunstância de inquietante semelhança com o discurso cultural da pós-modernidade) e por uma disponibilidade, por assim dizer, erudita, à manipulação da textualidade moderna, manifesta na tendência às citações, alusões, traduções, simulacros, transliterações etc. (FERNÁNDEZ: 1998, p. 286)

A livre apropriação da ideia dos viadutos habitáveis de Corbusier é apenas um exemplo, mas existem inúmeros outros, como algumas das imagens apresentadas ao longo do trabalho procuram indicar. Os anos recentes apontam com alguma clareza – ao menos no Brasil e alguns dos outros países da região – melhoras paulatinas no campo político e a gradual redução das desigualdades sociais, melhorias que infelizmente não vêm refletindo- se nas cidades e na arquitetura, as quais, via de regra, seguem entregues à especulação.

Se a América é mesmo o continente moderno por definição e, como sugere Fernández, até mesmo pioneiro inadvertido da pós-modernidade, talvez seja este o momento de realmente sermos originais, ou seja, dedicar um novo olhar às nossas origens. Com a atual e necessária revalorização do tema da sustentabilidade – ambiental, econômica e social – uma nova interpretação das sociedades pré-colombianas, por exemplo, parece pertinente e oportuna, pois os modos de vida urbana existentes na América há 500 anos parecem ter muito o que ensinar às nossas cidades atuais. Aprender com os acontecimentos passados é de suma importância e a reinterpretação contínua da história é uma das formas mais eficazes de fazê-lo, pois, conforme já apontado por Simón Bolívar, “um povo ignorante é o instrumento cego de sua própria destruição”.