• Nenhum resultado encontrado

5.1. Contexto

5.2.4. Le Corbusier e a “escola” da Rue de Sèvres

A passagem de Le Corbusier pela Argentina agitou a polêmica, mas não deixou a mesma 'capacidade instalada' que no Brasil, levou isso sim, dois arquitetos argentinos, Juan Kurchan y Jorge Ferrari Hardoy, com quem completou em 1941 seu plano urbano para Buenos Aires. (GUTIÉRREZ: 1983, p. 596)

Em sua viagem à América do Sul de 1929, Le Corbusier parece haver percebido que o mundo novo que se lhe apresentava trazia questões urbanas, espaciais e humanas que entravam em contradição com várias de suas proposições até o momento. Como o próprio arquiteto descreve em seu Précisions, as vivências que tivera em tal viagem trariam mudanças definitivas em sua visão de mundo e na forma abordar os trabalhos que viria desenvolver a partir deste momento. Se bem a América do Sul ensejou mudanças no pensamento de Corbusier, a recíproca também é verdadeira. Não apenas a relação estabelecida por Corbusier com os países da região a partir desta primeira viagem, como também os diversos arquitetos que foram posteriormente trabalhar com o mestre em seu atelier em Paris, contribuíram em grande medida no estabelecimento não somente de uma arquitetura autenticamente moderna na América Latina, mas principalmente de uma arquitetura moderna autenticamente latino-americana.

Figura 5.2.10.: Duas fotos do atelier da Rue de Sèvres nos tempos mais movimentados.

O caso acima observado por Ramón Gutiérrez, da ida de Ferrari e Kurchan para trabalhar com Le Corbusier em Paris, está longe de ser um caso isolado. Muitos foram os arquitetos, não apenas latino-americanos, mas de todo o mundo, que fizeram sua passagem pelo número 35 da Rue de Sèvres. O caso dos latino-americanos é especialmente marcante pois, coincidência ou não, muitos dos que ali estiveram deixaram obras de imensa relevância quando de seu retorno aos países de origem, tornando-se algumas vezes o principal e mais prestigiado arquiteto destes países. A lista dos colaboradores latino- americanos de Corbusier é extensa e impressiona, sendo prováveis aqui algumas omissões. Não obstante, muitos daqueles que vieram a destacar-se como arquitetos em meados do século passado estiveram de algum modo em contato com ele.

Da Venezuela, Augusto Tobito trabalhou com Corbusier tendo, conjuntamente com Iannis Xénakis, André Maisonnier, Vladimir Bodiansky e André Wogensky chegado a dirigir o atelier em algumas ocasiões.

Da argentina, trabalharam no atelier de Corbusier os já mencionados Juan Kurchan e Jorge Ferrari Hardoy, onde conhecem o catalão Antoni Bonet Castellana, que seguira a Paris logo após sua graduação em 1936 para trabalhar na rua de Sèvres. Após estourar a guerra espanhola, Bonet decide retornar com os colegas a Buenos Aires, onde tornariam-se sócios. Os três são fundadores do Grupo Austral, criado a partir da base do espanhol GATEPAC - Grupo de Arquitectos y Técnicos Españoles para el Progreso de la Arquitectura

Contemporánea, tendo participado também do CIAM e do CIRPAC - Comité International pour la Résolution des Problèmes de l’Architecture Contemporaine. Além de seu trabalho

cadeira BKF, popular em todo o mundo e poucas vezes identificada com as iniciais de Bonet, Kurchan e Ferrari. São de Bonet os projetos não executados para Bajo Belgrano e para o Barrio Sur de Buenos Aires, este último despertando atenção para o esquecido bairro de San Telmo, que passaria a partir de então a ser objeto de atenção e preservação. Colaboração distinta seria feita com Amancio Williams, a quem Corbusier nomearia para coordenar a construção da Casa do Dr. Curutchet na cidade de La Plata, projetada por Corbusier em 1949.

Figura 5.2.11.: À esquerda, cadeira BKF, de Bonet, Kurchan e Ferrari Hardoy. À direita, o edificio de ateliers na esquina das ruas Paraguay e Suipacha, em Buenos Aires, projeto de Antoni Bonet.

Do Chile, trabalharam com Corbusier Roberto Dávila, pouco mais de seis meses, após revalidar seu diploma na Academia de Belas Artes de Viena em 1932. Apresentaria o atelier ao hoje famoso pintor Roberto Matta Echaurren, mantendo este também curto contato com Le Corbusier. O seguinte seria Emilio Duhart, importante arquiteto chileno falecido em 2006, que trabalharia também com Walter Gropius nos EUA. Envolvido por alguns meses no atelier, encontrou grande afinidade com as ideias de Corbusier, como apontam seus projetos para a sede de Vitacura da CEPAL, braço das Nações Unidas no Chile, e no edifício de uso misto de habitações e comércio Plaza de Armas. Por fim, o mais longevo colaborador chileno foi o arquiteto Guillermo Jullian de la Fuente, que em 1956, recém-saído da Universidade Católica de Valparaíso, segue a Paris no intuito de visitar as obras de Corbusier. Sentindo-se pronto, escreve ao mestre solicitando trabalhar com ele. Graças à simpatia que Corbusier adquirira com os chilenos, Jullian é aceito e trabalha em Sèvres por vários anos, tendo colaborado em projetos como Centro de Artes Visuais

Carpenter em Massachusetts e no Palácio das Assembleias em Chandigarh. Com a morte de Corbusier em 1965, Jullian de la Fuente se encarregaria de outros projetos como o Hospital de Veneza e a Embaixada da França em Brasília, nenhum dos dois executado. A finais dos anos de 1970, havia construído boa reputação na Europa, embora pouco conhecido no Chile.

Figura 5.2.12.: O edifício da CEPAL e o edifício Plaza de Armas, ambos no Chile, projetos de Emilio Duhart.

Figura 5.2.13.: A Casa de Huéspedes Ilustres de Colombia em Cartagena e o edifício Torres del Parque, em Bogotá, projetos de Rogelio Salmona.

Da Colômbia, estiveram na rua de Sèvres Germán Samper Gnecco e Rogelio Salmona, ainda hoje o mais notável arquiteto colombiano. De volta à Colômbia em 1954, Samper desenvolveria um consistente trabalho e pesquisa na área de habitação coletiva, além de elaboratr diversos projetos relevantes em sua firma Esguerra, Sáenz y Samper como o da Biblioteca Luis Ángel Arango em 1957, do Museo del Oro em 1963 e do Edificio Avianca em 1968. O caso de Rogelio Salmona é particularmente marcante. Quando da

estada de Corbusier em Bogotá em 1947, fora recebê-lo e saudá-lo na Universidad Nacional

de Colombia junto a um grupo de estudantes. Percebendo a excitação de Salmona, seu pai

oferece um jantar em homenagem a Corbusier, que convida Rogelio a trabalhar com ele em Paris. Um ano depois, e desiludido frente às revoltas iniciadas em Bogotá em 9 de abril de 1948, decide abandonar o curso de arquitetura no segundo ano e seguir a Paris para aceitar o convite do mestre. Mas sua chegada não seria o que o jovem Salmona esperava:

Para sua surpresa, quando chegou a Paris, o mestre, que viajava frequentemente pelo mundo, não se lembrava nem de Rogelio Salmona nem de seu pai nem do jantar em Bogotá, menos ainda do convite ao jovem estudante para trabalhar em seu escritório. O arquiteto lhe disse que não havia trabalho para ele, no entanto, devido à persistência e ao interesse em fazê-lo no atelier do mestre, Salmona conseguiu seu posto de desenhista e aprendiz, embora sem nenhuma remuneração. O salário foi irrelevante, ao menos no começo, pois para Rogelio Salmona poder trabalhar no escritório do mestre era seu grande sonho, e ali permaneceu os seguintes oito anos de sua vida, desde 1948 até 1956. […] Quando Salmona chegou ao escritório, estavam terminando o projeto da Unidade de Habitação de Marselha e teve oportunidade de participar no desenho. […] Teodoro González de Léon, que já estava no escritório antes, foi a primeira pessoa com quem Salmona começou a trabalhar e, sem sabê-lo, quem o apoiou em sua iniciação como arquiteto. Trabalhou ali também com Germán Samper, arquiteto bogotano, com quem participou, de Paris, no plano urbanístico para Bogotá. […] Dois anos antes de regressar à Colômbia retirou-se do escritório de Le Corbusier, pois sentia a necessidade de viver a etapa construtiva da arquitetura, e foi trabalhar com Pier Luigi Nervi na construção de uma obra imensa: o Salão de Exposições de Paris, uma estrutura de 228 metros de vão. (ARISTIZÁBAL: 2006, pp. 40-45)

A despeito da admiração e respeito por Corbusier, com o tempo Salmona passara a discordar de alguns pontos do trabalho do mestre, que o inquietavam cada vez mais. Segundo Aristizábal, “Salmona sentia que para Corbusier a cidade era um problema teórico, e ainda com admiração por seu professor, não podia compartilhar esse conceito”.39 Havia

acompanhado algumas disciplinas na Sorbonne, mas não se graduou. De volta à Colômbia após dez anos de experiência na Europa, embora fosse arquiteto sem diploma, sua experiência logo o faria reconhecido como tal, tornando-se professor e logo retomando a prática arquitetônica que o consagraria, com projetos como a Casa de Huéspedes Ilustres

de Colombia, o edifício da Sociedad Central de Arquitectos e o conjunto residencial Torres

del Parque, dentre inúmeros outros.

Do México, Teodoro González de Léon é a referência fundamental. Embora tenha trabalhado no atelier de Paris a partir de 1947 por apenas dezoito meses, esse período relativamente curto se refletiria em toda a sua prática projetual. De acordo com Miquel Adriá:

A referência a Le Corbusier é obrigatória na biografia de González de Léon. O acaso, que alegaria muitos anos depois, associou o desenlace do concurso para a Cidade Universitária [do México] à sua chegada às portas do número 35 da rue de Sèvres. O concurso entre professores da Escola de Arquitetura para a nova Cidade Universitária teve um efeito 'Cinderela', quando o respeitado José Villagrán incentivou ao juri que visse e tivesse em conta o projeto de uns estudantes: era a 'cidade radiante' de Teodoro González de Léon, Armando Franco e Enrique Molinar. O projeto caiu nas mãos de Enrique del Moral e Mario Pani (com quem trabalhava então), incorporando a suas propostas 'beaux-artianas' boa parte dos aportes de ditos estudantes. Este doloroso êxito desencadeou sua saída do México, com uma bolsa do governo francês debaixo do braço.

Nesses anos de pós-guerra, o escritório de Le Corbusier se nutria do entusiasmo de jovens arquitetos procedentes de todo o mundo, alentados pela efervescência do criador da cidade ideal. Há quem diga que o olhar atordoado de González de Léon, que conservaria por toda sua vida, provém desses estimulantes anos em que via o mundo com assombro. O que aprendeu, trouxe de volta e aplicou tão logo teve oportunidade de ir construindo, com a experiência de anos e obras, sua própria linguagem. (ADRIÁ: 2010, pp. 21-22)

Figura 5.2.14.: O edifício do MUAC, Museo Universitário de Arte Contemporânea, projeto recente de Teodoro González de Léon, na Cidade do México.

Deste modo, por um período considerável, o atelier de Le Corbusier no número 35 da Rue de Sèvres em Paris, além de simples espaço de projetar arquitetura, converteu-se em espaço de debates, trocas de ideias sobre inúmeros ramos da cultura e, efetivamente, a escola de muitos e muito bons arquitetos. Além dos latino-americanos, muitos passaram pela escola de Sèvres, e não poucos foram aqueles que balizaram sua prática pelo que aprenderam ali. Bom exemplo disso seria o trabalho do escritório de Josics, Candilis e Woods. Havendo os dois últimos trabalhado com Corbusier, ao estabeleceram sua prática independente buscaram, muitas vezes de forma bem sucedida, aprimorar a questão da habitação coletiva a partir dos passos iniciais dados pelo mestre.

Se por uma lado Corbusier tivera a abertura necessária a deixar-se influenciar pela cultura dos países da América Latina visitados a partir de 1929, a concretização nesses mesmos países de diversas obras decorrentes direta ou indiretamente de proposições corbusianas – muitas vezes em uma escala que nem mesmo ele conseguiu – reforçam o argumento de uma livre circulação de ideias e influências que caracterizam a própria natureza do trabalho e reflexão arquiteturais. Realizadas por arquitetos estimulados pela eloquência de suas ideias ou pelo contato direto com o mestre no atelier da Rue de Sèvres, tais obras deixariam um legado ainda hoje bastante vivo na paisagem latino-americana.

Mas, voltando a Le Corbusier, é engraçado que na rua de Sèvres ele recebeu gente de todos os continentes, de todos os países, ingleses, japoneses, alemães, mas nenhum brasileiro. […] Para trabalhar, estagiar, aquela coisa. Depois de algum tempo ele dava um papel dizendo que a pessoa tinha estagiado lá. Mas nenhum brasileiro foi estagiar com ele. E é engraçado porque afinal ele esteve aqui e a receptividade foi maior. Quer dizer, como que se inverteram os papéis, ele é que ficou estagiando aqui. (COSTA: 1987)40

Figura 5.2.15.: Urbanización 23 Enero, em Caracas, projeto de Carlos Raúl Villanueva e equipe, década de 1950.

40 Trecho de entrevista de Jorge Czajkowski, Maria Cristina Burlamaqui e Ronaldo Brito, publicada

originalmente na revista Arquitetura, em 1987 e reproduzida aqui a partir do livro Encontros | Lucio Costa, organizado por Ana Luiza Nobre em edição de 2010. pp 120-144.