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5.1. Contexto

5.2.1. CIAM e a debacle Soviética

Nas primeiras décadas do século XX, a articulação entre setores urbanos, circulações e unidades de moradia são pautas centrais dos primeiros Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna, os CIAM, âmbito no qual originam-se as proposições urbanas iniciais dos chamados pioneiros da arquitetura moderna, destacando-se Walter Gropius como expoente da corrente alemã e Le Corbusier como seu mais inquieto participante. Sigfried Giedion, nomeado secretário-geral dos CIAM, aponta que agrupamento semelhante já havia sido tentado sem sucesso por arquitetos alemães em 1927, por ocasião da inauguração da exposição de Weissenhof em Stuttgart.

Figura 5.2.1.: Participantes do I CIAM (Congresso Internacional de Arquitetura Moderna), em La Sarraz, Suíça, 1928 (esq.) e do IV CIAM, realizado em viagem de Marselha a Atenas (foto) , em 1934.

Iniciados em 1928, os congressos tem sua primeira edição no castelo de La Sarraz, na Suíça, a convite de sua abastada proprietária, a Mme Hélène de Mandrot, entusiasta das vanguardas arquitetônicas e que se tornaria cliente de Le Corbusier. As discussões do I CIAM teriam como fruto o Manifesto de La Sarraz, uma “plataforma comum estabelecida na crença que as construções e o planejamento poderiam ser melhorados em grande medida,

diante das adversidades a serem superadas”24. Estabeleceu-se também nesse encontro que

a partir da edição seguinte, os estudos apresentados pelos participantes deveriam adotar a mesma escala nos desenhos, bem como técnicas padronizadas de apresentação, de modo a auxiliar na análise comparativa das diversas postulações.

O segundo congresso, promovido por Ernst May, acontece em Frankfurt em 1929, debatendo o tema das unidades habitacionais mínimas. Seu conteúdo foi publicado em Stuttgart no volume Die Wohnung für Existenzminimum (traduzido como Habitação de Baixa Renda por Giedion), no ano de 1930.

O terceiro congresso é realizado em 1930, em Bruxelas, na Bélgica, com o auxílio do arquiteto Victor Bourgeois. As discussões desta edição eram “centradas em torno da questão dos modos possíveis de organização de habitações em unidades de vizinhança de modo que as necessidades humanas pudessem ser devidamente atendidas”. Como ponto complementar, coloca-se a questão de quais seriam “as mudanças necessárias em termos de legislação para permitir a viabilização de tais soluções”25. Giedion menciona que no

encontro foram proferidas palestras de Le Corbusier, Walter Gropius, Richard Neutra e outros. O material gráfico resultante do encontro fora publicado também em Stuttgart sob o título Rationelle Bebauungsweisen (divisão racional de terrenos), em 1931. Ressalta ainda que “cidade e planejamento regional, que a princípio haviam sido considerados indispensáveis para qualquer solução real de problemas arquitetônicos, tornaram-se agora o interesse central”26.

A quarta edição do congresso, programada para realizar-se em 1933 sob o tema A Cidade Funcional, acabaria sendo adiada a partir do surpreendente resultado do concurso para o Palácio dos Sovietes em Moscou, divulgado em 1932. Reunidos em Barcelona em um encontro preparatório para o 4o CIAM, alguns dos principais arquitetos modernos de então recebem a notícia que mudaria radicalmente o rumo que se esperava para a arquitetura moderna mundial:

A causa dessa reviravolta foi o anúncio que acabara de ser feito em Moscou dos resultados do concurso lançado em 1931 pela União Soviética para a construção do Palácio dos Sovietes. Acreditava-se na Europa – parecia evidente – que o Palácio dos Sovietes seria representativo da arquitetura de vanguarda que caracterizara as pesquisas dos anos vinte na URSS. [...]

24

Sigfried Giedion, introdução do livro Can our cities survive?, de 1942.

25 Idem 26

Assim, foi com estupefação geral que se descobriu que os três projetos aceitos eram os de B. Jofan, que parecia buscar sua inspiração na arquitetura babilônica, o de I. Joltovski, o 'Palladio russo e soviético' e o americano G. Hamilton, ilustre desconhecido no plano mundial, especializado em 'neogótico' à maneira do edifício Woolworth de New York. [...]

De 'progressista' a imagem [da URSS] passará a 'reacionária' e a pátria da arquitetura 'moderna' aparecerá repentinamente como sendo, na realidade, a do passadismo mais desgastado. (KOPP: 1990, p. 154)

Figura 5.2.2.: À esquerda, projeto “babilônico” de B. Jofan, vencedor do concurso para o Palácio dos Sovietes. À direita, piscina que acabou sendo edificada em seu lugar.

Embora fosse realizado uma vez mais antes da Segunda Guerra Mundial, o IV CIAM marcaria o fim de uma fase. Quanto ao V CIAM e ao contexto de sua realização, Kopp descreve que:

Esse 5º congresso ocorrerá em Paris, durante o verão de 1937. Seu tema, 'Residência e Lazer', se inscreve na área de influência da Frente Popular que, graças à eleição de uma maioria de esquerda na França em 1936, chegara ao poder. Mas esse poder foi efêmero. Na abertura do 5o CIAM o governo constituído logo após as eleições de 1936 acaba de ser deposto. [...] Na Alemanha, Hitler está no poder desde janeiro de 1933; na Áustria, o movimento operário concentrado em Viena e entrincheirado nos grandes conjuntos residenciais [Höffe] que se constituem em fortalezas operárias, foi esmagado e em menos de um ano em março de 1938, a Áustria será anexada à Alemanha hitlerista. Enquanto isso a Espanha republicana, praticamente sem apoio exterior, vê o espaço que controla diminuir a cada semana sob a pressão dos exércitos de Franco ajudados pela Alemanha de Hitler e pela Itália de Mussolini. Em todos os países da Europa, é o avanço do fascismo e da reação. Nessas condições, quem ainda pode acreditar em um novo mundo para amanhã? (KOPP: 1990, p. 159.)

Os acontecimentos relatados acima são importantes para compreender, por um lado, o recrudescimento stalinista na URSS e seu afastamento das vanguardas artísticas na

década de 1930, e por outro, a situação de guerra que se instalara na Europa, levando parte considerável dos arquitetos à emigração, em busca de desenvolver suas teorias e seu trabalho alhures: nos EUA, na América Latina ou mesmo na própria URSS. Tal diáspora mudaria definitivamente os rumos da arquitetura mundial e nesse contexto, a América se apresentava como terreno fértil para o florescimento da arquitetura da era industrial e talvez como uma das únicas regiões possíveis naquele momento para o desenvolvimento da arquitetura moderna.

Em contraponto à visão de Anatole Kopp, Adrián Gorelik destaca a pertinência das ideias da corrente teórica denominada “crítica à ideologia”, defendida na virada dos anos de 1960-70 por um grupo de historiadores de Veneza e encabeçado por Manfredo Tafuri:

A crítica à ideologia mostrou as necessárias vinculações da arquitetura com o poder econômico e político e desmistificou o papel contestatório das vanguardas construtivas, trazendo à luz episódios que, justamente por não caberem naquela representação, tinham sido completamente enterrados pela historiografia e pela crítica modernistas: as vanguardas soviéticas e europeias, os modernismos não vanguardistas e, em geral, os processos de desenvolvimento do capital e o papel desempenhado em seu interior pelas disciplinas artísticas e arquitetônicas, apontando centralmente para os dois processos 'mais avançados', o da Europa do período do entre guerras (a social-democracia) e o dos Estados Unidos (o 'capitalismo real'). Desse modo, sustentou-se que a 'única vanguarda' efetiva no período de entre guerras tinha sido a vanguarda da reorganização produtiva do grande capital, reorganização que tem lugar na metrópole e para a qual os movimentos artísticos de vanguarda tinham sido, de qualquer forma, funcionais. (GORELIK: 2005, p. 21)

Com as mudanças na orientação política daquela que se afigurava como a terra prometida da arquitetura moderna a partir da chegada ao poder de Joseph Stalin e do endurecimento dos regimes nazifascistas na Europa a partir de meados da década de 1920, intensifica-se o trânsito de arquitetos europeus rumo à América, tanto em fuga dos regimes autocráticos quanto na busca de novas oportunidades de atuação. O mundo no qual as ideologias iniciais das vanguardas modernas haviam se formado não mais existia e, ao se depararem com as novas realidades encontradas no continente americano (em viagem ou de mudança), os pioneiros modernos se viam compelidos a questionar seus conceitos teóricos e a rever a prática projetual que vinham desenvolvendo até então. A América era para eles um mundo novo e bastante distinto do ambiente já saturado de história e significados que deixavam para trás, tanto dos pontos de vista social e político quanto propriamente na espacialidade urbana das cidades que aqui haviam.

Como hipótese, é possível identificar uma insuspeitada relação entre o resultado de tal concurso e os desdobramentos na arquitetura latino-americana em princípios do século XX. Tal acontecimento faria com que o 4o CIAM, a realizar-se em Moscou em 1933, fosse adiado em um ano, sendo realizado na já mítica viagem a bordo do Patris II de Marselha a Atenas e de volta, e ensejando a elaboração por Le Corbusier da Carta de Atenas. Caso tivéssemos assistido à URSS tornar-se a meca dos arquitetos de vanguarda, ao invés do recrudescimento stalinista que de fato ocorreu, quiçá hoje teríamos uma Carta de Moscou. Provavelmente o trânsito de arquitetos europeus nas Américas seria bem menor, alterando em muito a circulação de ideias que tamanha importância tomaria tanto na América Latina quanto nos Estados Unidos, de modos distintos: aqui, principalmente pelos intercâmbios estabelecidos com os pioneiros modernos e lá, através de atuação direta no ensino e na prática, em especial dos arquitetos da vanguarda alemã.