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Ao verificar os sentidos que o programa adquiriu para os educadores, ou seja, professor e gestores da escola percebe-se de imediato uma inclinação pessoal de identificação com a proposta pedagógica da TESE. Percebe-se nas entrevistas, assim como nas observações, que em geral os profissionais atuantes na escola reproduzem o discurso da corresponsabilidade, assim como ligam a sua prática na instituição como uma missão.

Todos os profissionais da instituição passam obrigatoriamente por uma seleção na qual o curso de formação é uma etapa decisiva. Nela, cada candidato deve mostrar seu nível de comprometimento com os ideários da Tecnologia educacional socioempresarial – TESE.

Para tanto é preciso discutir melhor este ideário, sua origem e seus pressupostos. A tecnologia empresarial socioeducacional foi concebida com base nas quatro aprendizagens fundamentais de acordo com as prescrições do Relatório Jaques Delors: aprender a conhecer, a prender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser. Estes são os pressupostos fundamentais dessa prática pedagógica.

Porém o próprio manual operacional da TESE (ver documento em anexo I) trata a mesma como sendo mais uma consciência (ideologia) do que uma teoria ou método de gestão. O que leva crer que ela se baseia num conjunto de ideias e pressupostos que atuam como mecanismos motivadores na tentativa de conceder ao grupo sinergia, ou seja um discurso único.

Em seus princípios fundamentais a TESE defende que a escola deve ser enxergada como um negócio. Os educadores em geral desempenham papeis de líderes e motivam os seus educandos através do exemplo e da “pedagogia da presença”. Dessa forma as atividades desenvolvidas dentro da instituição são delegadas a partir do grupo gestor, educando e formando pela pratica do trabalho os professores, que por sua vez fazem o mesmo com seus alunos.

A TESE concebe ainda que esse mecanismo de comunicação entre seus sujeitos deva ser inspirado na ideia de ciclo virtuoso, onde a partir da visão e do exemplo do líder todos os outros sujeitos entendidos como parceiros (comunidade, professores, alunos, investidor social) relacionem-se de forma a gerar resultados positivos para a escola na forma de liquidez, eficiência, eficácia e efetividade.

Vista tal qual uma empresa a escola teria a função de produzir estes resultados na medida em que seus parceiros sejam membros atuantes dessa dinâmica. Dessa forma a responsabilidade pelos resultados da escola é descentralizada. Os resultados seriam

basicamente: 1) melhores resultados nas avaliações externas; 2) satisfação da comunidade atendida vista como cliente; 3) continuidade do investimento pelo investidor maior que é o Estado; 4) permanência da escola enquanto instituição, ou seja, ela efetivaria a sua prática, tendo em vista que como se inspira numa empresa a escola passa a ser também interpretada como uma instituição intermitente, que em tese pode vir a não existir mais (falência) em decorrência de resultados ruins. Sua existência fica assim circunscrita ao seu sucesso ou fracasso no alcance das metas estabelecidas.

Basicamente seguindo estes princípios a escola teria a missão de formar os alunos com base ainda num currículo dito “integral” pois articularia a Base Comum (Português, Matemática, Geografia, Historia, Biologia, Física, Química, Artes, Filosofia, Sociologia, Língua estrangeira e Educação Física) com a Base Técnica (diferenciada para cada curso). Esta articulação se daria através de um processo chamado Integração Curricular, onde a distribuição e temporalidade das disciplinas da Base Comum estariam condicionadas às exigências do currículo da base técnica, como um dos entrevistados exemplifica:

A gente chega num ponto em que eu tenho cargas horárias diferentes, pra História: História no curso de Hospedagem ela tem uma hora a mais, isso e Geografia porque é contributiva. Só que o nosso...pronto, Biologia pra Enfermagem tem uma hora a mais, e o conteúdo que eles vêm segue outra lógica, ele muda, eu trago pro primeiro ano uma coisa do terceiro que eu preciso pro técnico ali no primeiro, aí mais uma vez é o técnico que determina, é o técnico que vai dizer quando ele vai precisar.

Dessa forma a ideia de integralização dos currículos não envolve a dualidade teoria e prática, mas sim o reordenamento e a quantificação de certas disciplinas e conteúdos em função do currículo do curso técnico. Acredito que a integração dita existir nesse programa não esteja tão relacionada ao binômio teoria/prática por que os pontos de estrangulamento do mesmo tais como o incipiente abastecimento de materiais didáticos para formação dos alunos, o incipiente acompanhamento nos estágios, a incerta inserção posterior no mercado de trabalho na respectiva área de formação e, finalmente, as acomodações físicas ainda distantes da ideal, dificultem a realização da práxis de uma forma plena, crítica, e fundamentada em princípios de intervenção e mudança da realidade.

Dessa forma os sujeitos do programa são intimados a comprar a ideia da corresponsabilidade e sentirem-se sujeitos de transformação das contradições que não foram geradas no bojo da própria escola mas sim no âmago da sociedade capitalista.

Relembro aqui que a escola é um resultado das contradições socioeconômicas e que não pode a partir de si mesma superá-las sem que haja verdadeiramente mudanças

significativas no modelo econômico, na forma de financiamento, acompanhamento, avaliação e manutenção da educação.

Quanto à ideia de corresponsabilidade ela está intrinsecamente articulada aos fundamentos da Teoria do Capital Humano. Quando os atores da escola são convidados a assumir as responsabilidades pelo sucesso escolar (ou seja, atingir as metas estabelecidas pela secretaria de educação, e atingir nível de excelência na sua formação individual) também são convidados a assumir responsabilidade sobre os inúmeros problemas estruturais do ensino médio público e do ensino profissional tais como o abandono, a evasão, o não aprendizado de conteúdos básicos, a dualidade estrutural entre formação geral e técnica, a carência de estrutura física apropriada e a carência de materiais adequados.

Sem dar conta destes problemas os sujeitos são direcionados a pensar individualmente em função de adquirir o máximo de competências possíveis afim de desenvolver sua própria empregabilidade, numa tentativa de se encaixar nos arranjos produtivos da sociedade capitalista e de suprindo suas necessidades básicas, acabam compactuando com o ideal de desenvolvimento econômico pautado no investimento individual em educação, reproduzindo a ideia de que é por meio do sistema educacional que a classe que vive do trabalho pode realizar a mobilidade social.

A ideia de capital humano assim, apresenta-se então mais como uma estratégia econômica para aumentar a concentração de riqueza revestida de um discurso de valorização da mão de obra. As leituras e os relatos colhidos até aqui evidenciaram que através da teoria do credenciamento e da sinalização o investimento em capital humano muitas vezes não passa de mero mecanismo de seleção e desqualificação do proletariado. Não é o investimento em formação individual que garantirá maiores remunerações nem a inserção efetiva no trabalho, mas sim um efeito contrário, onde a exigência do mercado se eleva à níveis cada vez mais altos, ocasionando a continuidade do desemprego estrutural e a consequente exclusão da classe trabalhadora.

9. Conclusão

Compreendemos com isso que a política educacional de formação profissional em voga no Ceará não segue uma trajetória linear, ela se diferencia em cada escola onde o projeto é implantado, ela ocupa dimensões políticas, ideológicas, econômicas e sociais que deflagram contradições visíveis no âmbito do interior das escolas e da realidade que as circunda. Cada experiência de formação nesse contexto tem a capacidade de ser resinificada na medida em

que os atores políticos são ouvidos e inseridos de forma critica na construção e delineamento desta.

Ao aumentar o prisma analítico e qualificar a avaliação do programa pelo método experiencial nos aproximamos mais de uma avaliação em profundidade e nos afastamos de uma avaliação superficial. Nenhum resultado é então definitivo e nenhuma conclusão tem o poder de deter a verdade sobre o programa. As respostas e perguntas encontradas no caminho da pesquisa, logo, servem como instrumento valioso de retroalimentação positiva do programa. As transmutações no programa constituem-se como processos. Suas ramificações e caminhos, muitas vezes antagônicos expressos nas experiências relatadas coexistem com o seu texto institucional e deflagram contradições históricas.

As intervenções mostraram que a cultura de ação desenvolvida dentro da escola Marvin a partir dos pressupostos de uma educação empresarial voltada para a profissionalização dos sujeitos promove a interiorização de uma série de pressupostos, crenças e discursos acerca da função da instituição.

Primeiramente provoca uma mudança qualitativa na forma de como a escola passou a ser percebida no bairro pelo fato da implantação de um novo projeto. Esta visão se potencializou pela grande visibilidade que a política ganhou após as grandes cifras de financiamento obtidas para o estado.

Muitos dos sentidos e visões detectados refletem a absorção do discurso neoliberal que sustenta a teoria do capital humano como necessária à uma “reformulação” da escola pública agregando-lhe uma nova “eficiência” a sua função de educar. Essa nova função da escola visa produzir um novo tipo de indivíduo trabalhador, que esteja mais adequado às demandas do mundo empresarial:

(...) Agora precisam de um indivíduo capaz de contribuir para melhorar a qualidade do produto, um indivíduo que pense e tenha iniciativa própria, um individuo que seja capaz de mudar, com facilidade e precisão, de uma atividade para outra (...) (TEIXEIRA, 1996, P. 215)

Esta conclusão nos leva a crer que a educação ganha um patamar de política primordial e nela se depositam novas exigências no intuito de contornar os problemas sociais provocados pelo processo excludente de reestruturação do capital.

Esse novo tipo de escola ao passo que educa também responsabiliza os sujeitos que dela fazem parte: professores, alunos e gestores. Convoca-os a pensar e resolver os problemas de uma sociedade complexa e contraditória. Este convite à mudança é aceito muitas vezes de forma acrítica pela maioria dos sujeitos. Porém também é capaz de desencadear reações

bastante positivas à emancipação dos indivíduos, seja na forma de conhecer e reivindicar direitos ou seja na forma de compreender com mais profundidade os problemas que afetam a instituição e cobrar exatamente daqueles que deveriam ser os maiores responsáveis: os implementadores.

A histórica dualidade estrutural do ensino médio brasileiro é reproduzida neste programa intitulado integral. Isso se revela quando percebemos que mesmo indiretamente ele tende a promover a autovalorização do currículo profissional em detrimento do currículo geral ou da base comum. O fato de ter um turno estendido não significa que os currículos estejam integrados. Para tal essa integração deveria promover a articulação entre o saber teórico e pratico sem distorcer o sentido e a função primordial do trabalho humano.

Se os laboratórios não atendem satisfatoriamente os requisitos para as vivencias praticas e se os conteúdos da base geral são ao que tudo indica direcionados para as avaliações externas não há como promover essa real articulação. Além disso para ela se efetivar a dimensão sociopolítica não pode estar fora dessa equação.

Ao serem questionados sobre a relevância do ensino médio para suas vidas os alunos indicaram que é uma etapa onde os conteúdos não são novidades mas sim as formas como eles são trabalhados e cobradas. Para eles o ensino médio é uma etapa que tem como objetivo prepará-los para exames como o ENEM e o SPAECE, assim como para o ingresso imediato no mercado.

Fica evidente as disparidades provocadas pelo “efeito integral”. Todos os sujeitos concordaram que a escola supera qualitativamente as outras instituições regulares, o fato que mais pesa para isto é a convivência estendida entre educadores e educandos.

Ao ser dado mais tempo ao professor dentro da escola este é incitado a trabalhar mais em prol do projeto, incorporando o ideário contido na TESE. Como no processo toyotista de produção o sujeito é instigado a se auto-recriminar e se punir, se o seu trabalho não atingir um nível de excelência:

(P): eu acho que a principal comparação é... eu tenho mais tempo aqui ... e o ter mais tempo não é pra eu me acomodar ... mais pra eu fazer COISAS que eu faço aqui que eu não poderia na escola regular ... t

Outro dado relevante é descobrir que os alunos discutem muito o sentido das avaliações externas. Sobre o SPAECE ao que parece é tido como algo importante dentro da escola. Se fala abertamente com os alunos sobre as avaliações externas e eles demonstram pleno conhecimento sobre o funcionamento e a importância deste mecanismo para o

rankeamento da instituição, embora parte disso se deva pelo incentivo de premiação que a secretaria de educação oferta. Mesmo assim surgem reações críticas à este movimento:

C. [eu nunca liguei pra esse negocio de Spaece que eu não tinha paciência pra fazer essa prova não ... por que os fiscais agente tem que ficar seguindo o que os fiscais estão dizendo ai tem a questão dos blocos eu achava aquilo um saco eu não tinha paciência pra ficar respondendo ... ai o pessoal falava mas tu vai ganhar o notebook e eu que se exploda esse notebook

Outro fator que merece destaque é a mudança radical nos índices da escola após a implementação do programa. Tanto os dados de proficiência via SPAECE quando as taxas de reprovação e abandono evoluíram para melhor significativamente. Esta realidade faz questionar não somente a natureza do programa mas também a forma de acesso da população á ele visto que pelo número restrito de vagas são feitas seleções no processo de matricula o que já de imediato altera o perfil dos alunos que ingressam na escola profissional.

Apesar de reconhecerem ser essencial a prática empreendedora os alunos demonstraram nas falas que a maior contribuição veio na forma de um conhecimento básico sobre o funcionamento do mercado de trabalho e de como eles enquanto profissionais poderiam apresentar da melhor maneira possível para o mercado, em ultima instância, sua própria força de trabalho.

Embora a escola tenha uma proposta de profissionalização historicamente marcada pela dualidade entre a formação geral a uma formação especializada para o trabalho ela ensina os indivíduos a pensarem como patrões (visão empreendedora), ao passo que os mesmos são treinados para agir como empregados subordinados á uma lógica maior de exploração.

Esta variável revela o atual perfil de trabalhador exigido pela sociedade capitalista moderna, onde os imperativos da restruturação produtiva demandam um funcionário polivalente com a capacidade de dar e seguir ordens, assumir funções variadas dentro de um mesmo arranjo de produção e finalmente sentir-se responsável pelo sucesso ou fracasso da empresa, ou seja “vestir a camisa”. Essa demanda de formação passa a ser delegada à escola pública ressignificando a função do ensino médio como etapa da educação do individuo.

Em suma a tão debatida crise de identidade desta etapa de ensino na verdade é resultante de um processo maior da crise estrutural do sistema capitalista, onde o modelo de produção e concentração de riquezas experimenta constantemente alterações no seu perfil de acumulação.

Para além das questões macroestruturais que sem duvida são cruciais para o entendimento desta política é de suma importância discutir o papel que a Escola Marvim

assumiu pelo menos ao nível da comunidade do Cristo Redentor (Grande Pirambú) como instituição formadora de indivíduos para a vida em sociedade e inserção no mercado de trabalho, mesmo não existindo estudos que comprovem essa inserção dos egressos. Num horizonte de médio prazo não existem projetos ou estudos que caminhem nessa direção. A própria SEDUC não apresentou ainda estudos complexos avaliando o resultado das escolas profissionais em termos da inserção econômica dos jovens. Este fato revela uma defasagem considerável que precisa ser suprida na área de avaliação de politicas e programas de educação profissional.

Finalmente, acredito que deixar um pouco de lado as preconcepções tanto de professor como de gestor educacional fez-me tentar perceber com maior profundidade as nuances mais evidentes do cotidiano e da experiência dos sujeitos envolvidos nessa política educacional. Logo essa investigação constituiu-se numa forma de avaliação mais compreensiva, onde os pontos de vista dos envolvidos ganharam ênfase no processo. Indo além do olhar das avaliações externas de aprendizado e para além das avaliações institucionais esta pesquisa tentou dar voz a estes atores, esta foi a tentativa até aqui exposta. Nenhum resultado detém então a verdade, e, nenhum dado é por si só definitivo.