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A violência contra a mulher é um problema complexo, de difícil abordagem, cuja solução passa pela implementação de políticas públicas intersetoriais que estejam baseada na concepção dos direitos humanos das mulheres. Nos últimos anos têm sido alvo de várias propostas políticas no âmbito do judiciário, da segurança pública, da educação e da saúde, dentre outros setores.

Alguns avanços na implementação das políticas de enfrentamento das questões de violência de gênero já podem ser percebidos, como no caso da legislação em vigor, a Lei Maria da Penha. Entretanto, pode-se considerar que ainda há um longo caminho a ser percorrido para que as políticas públicas desenvolvidas reflitam as concepções de direitos humanos, nas quais estão pautadas, traduzindo-se em visibilização, enfrentamento e redução dos casos de violência contra as mulheres.

Esta pesquisa evidencia, além de outras, questões de segurança e saúde das mulheres que vivenciam a violência produzida na relação interpessoal. Entretanto, isto não significa que deva ser abordada como “questões da ordem do privado”. O fato de ser produzida na esfera privada não minimiza as conseqüências na esfera pública. A violência doméstica contra as mulheres, assim como outras agressões interpessoais e discriminações raciais culturalmente naturalizadas são “potencializadoras da violência social difusa e ampla e se alimentam dela”(2). Isto indica que a violência doméstica contra as mulheres, assim como outras praticadas nas relações interpessoais, deve ser assumida pelas diversas instituições sociais para ser enfrentada em toda a sua complexidade.

Nesse sentido, é importante a constituição de redes institucionais interdisciplinares, que se articulem com as organizações de mulheres e a rede social, num processo contínuo de busca de estratégias de enfrentamento das desigualdades e assimetrias que afetam as mulheres.

Entretanto, há que se considerar que este processo não pode ser tratado apenas como uma questão do mundo feminino. A violência de gênero deve ser vista como um problema que se articula a outras desigualdades sociais como as de classe, raça/etnia, geração, região e outras. É necessário que se amplie o olhar na abordagem

destas questões, que se busquem não apenas relações pessoais mais simétricas, mas também a cidadania no amplo sentido.

O setor saúde, como uma das instâncias da rede de enfrentamento da violência contra as mulheres, tem um papel fundamental na detecção dos casos e na sua problematização com as mulheres. Este é o desafio que se coloca para os profissionais de saúde, demandando mudanças na prática cotidiana e nos paradigmas que a sustentam.

Uma das mudanças possíveis diz respeito à abertura para ouvir e respeitar as mulheres em situação de violência. Durante a realização da Oficina foi evidenciada a dificuldade de escuta e de apreensão da violência pelos profissionais de saúde. Esta dificuldade é semelhante à apresentada pelas mulheres entrevistadas, bem como por toda a sociedade, não constituindo uma exclusividade dos serviços de saúde.

Por que esta dificuldade em ver as situações de violência contra as mulheres? Os estudos indicam que talvez seja porque a violência contra as mulheres se naturaliza nas relações de gênero (63, 86). As micro-violências cotidianas, como as descritas pelas mulheres nesta pesquisa só passam a ser identificadas quando deixam marcas visíveis. Mulheres agredidas e profissionais de saúde percebem a violência numa mesma lógica, que possibilita o silenciamento e o não enfrentamento do problema.

A construção de alternativas para a abordagem da violência doméstica deve ter como premissa a capacidade do ser humano de superar as situações adversas e reconstruir a própria vida. Neste sentido, a validação das estratégias adotadas pelas mulheres constitui condição básica para que se busque efetivamente enfrentar o problema da violência doméstica contra as mulheres.

Esta pesquisa mostrou que não existe uma regra, uma norma, para este enfrentamento e que cada mulher, individualmente e amparada em sua rede social, encontrou a estratégia própria para enfrentar a situação. Porém, validar as estratégias das mulheres não significa encerrar o enfrentamento da violência doméstica no espaço privado, do lar. Significa considerar-las como possibilidades que devem ser articuladas àquelas desenvolvidas pelos profissionais e instituições. Validar e articular as estratégias das mulheres à rede assistencial pode transformar a situação de violência que vivenciam, contribuindo para o seu empoderamento.

Outro aspecto que deve ser levado em conta na construção de alternativas para a abordagem da violência doméstica é o envolvimento dos homens nas atividades desenvolvidas nas diversas instituições com vistas a uma reflexão aprofundada sobre o tema. Esta pesquisa mostrou que a violência doméstica, como violência de gênero, é relacional e, portanto não é fecundo abordar o problema apenas em um dos pólos da relação. O envolvimento dos homens neste processo não é tarefa fácil uma vez que a concepção predominante é de que a violência de gênero é um problema de mulheres. Iniciativas como a “Campanha do Laço Branco”, um movimento de homens trabalhando no enfrentamento das várias formas de violência contra as mulheres, são exemplos de que se pode trabalhar nesse sentido.

A validação das estratégias das mulheres e o envolvimento dos homens no processo de enfrentamento da violência doméstica pressupõem que sejam estabelecidas relações simétricas e dialógicas entre os sujeitos. Isto exige uma postura profissional aberta ao diálogo e à utilização de uma metodologia que possibilite uma prática emancipadora. Neste sentido, a Oficina de trabalho, ao estimular a construção conjunta de conhecimentos e uma ação transformadora sobre a realidade, constitui uma alternativa adequada no enfrentamento da violência doméstica contra a mulher.

A esperança não reside, pois, num princípio geral que providencia um futuro geral. Reside antes na possibilidade de criar campos de experimentação social onde seja possível resistir localmente às evidências da inevitabilidade, promovendo com êxito, alternativas que parecem utópicas em todos os tempos e lugares excepto naqueles em que ocorrem efetivamente. É este realismo utópico que preside às iniciativas dos grupos oprimidos que, num mundo onde parece ter desaparecido a alternativa, vão construindo, um pouco por toda a parte, alternativas locais que tornam possível uma vida digna e decente. (Boaventura de Souza Santos)