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3 METODOLOGIA

3.3 Violência de gênero

Para ser compreendida em toda sua complexidade, a violência contra as mulheres deve ser entendida como violência de gênero e sua análise deve ser feita não apenas em termos de atos individuais, porque ela é antes de tudo “reflexo de uma desigualdade social, econômica e política que é perpetuada pelos aparatos sociais que reforçam ideologias sexistas, racistas e classistas” (7).

Dito de outra forma, a violência de gênero designa a violência ocorrida em um contexto de desigualdades de gênero, sustentada numa matriz hegemônica de gênero, onde as concepções dominantes de feminilidade e masculinidade se configuram a partir de disputas simbólicas e materiais processadas nos diversos espaços sociais como a família, a escola, a igreja, os meios de comunicação e outros

(4, 59).

A desigualdade de gênero se reproduz e se naturaliza a partir da violência simbólica, que:

se institui por intermédio da adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao dominante (e, portanto, à dominação) quando ele não dispõe, para pensá-la e para se pensar, ou melhor, para pensar a relação com ele, mais que instrumentos de conhecimento que ambos têm em comum e que não sendo mais que a forma incorporada da relação de dominação, fazem esta relação ser vista como natural; ou, em outros termos, quando os esquemas que ele põe em ação para se ver e se avaliar, ou para ver e avaliar os dominantes [...] resultam de incorporação de classificações assim naturalizadas, de que seu ser social é produto(60).

A dominação simbólica funciona quando os dominados incorporam as estruturas segundo as quais os dominantes os percebem e também quando a submissão não é um ato consciente, que pode ser compreendido dentro de uma lógica das limitações ou dentro da lógica do consentimento (61).

E é precisamente a violência simbólica que, ao naturalizar diversas desigualdades entre homens e mulheres, possibilita, entre outras violências, a de

gênero. Esta constitui uma “estratégia hegemônica no reposicionamento de seres humanos aos lugares socialmente instituídos” Só se torna possível a partir da naturalização de desigualdades e de densas relações de poder. Este processo é facilitado “pela dinâmica de se apreenderem/compreenderem/reproduzirem” interações entre seres sociais que reatualizam desigualdades de classe, gênero e étnico-raciais” (62).

A dimensão simbólica fornece a base legitimadora para as ações e relações de força presentes na violência física, psicológica, sexual. Nas relações íntimas, a dimensão simbólica da violência de gênero é “potenciada, por ser o problema circunscrito a um espaço fechado, ambíguo e fortemente estruturado no campo axiológico e moral, no qual as categorias de conhecimento e reconhecimento do mundo contêm maior peso emocional que cognitivo”, onde a razão se mescla com sentimentos de medo, dor, culpa vergonha, raiva, indignação e afeto, dificultando a análise do problema e a busca de possíveis saídas (4).

A violência de gênero quase sempre é referida nas pesquisas acadêmicas, nas formulações de políticas e práticas sociais como violência contra a mulher, violência doméstica, violência intrafamiliar, demonstrando que existem sobreposições e especificidades entre estas categorias que devem ser esclarecidas para que se possa abordar o problema em toda a sua complexidade (4-59-62).

A violência doméstica é realizada no espaço privado, do lar, e independente do sujeito, do objeto ou do vetor da ação. Pode ser facilmente confundida com o disciplinamento, especialmente quando cometida contra crianças. Uma de suas características é ser um fenômeno de longa duração que ocorre rotineiramente, atingindo a autoestima das suas vítimas, na maioria das vezes, mulheres, crianças e idosos (4, 59, 63).

A violência intrafamiliar envolve membros de uma mesma família extensa ou nuclear, levando em conta a consanguinidade e a afinidade. Pode ocorrer no domicílio ou fora dele. Semelhante à violência doméstica, o sujeito e o objeto da ação não são determinados na estrutura de poder familiar e o vetor da ação é diluído

(62-63).

As categorias violência doméstica e violência intrafamiliar, ainda que apenas descritivas, possibilitam a “desmistificação do caráter sacrossanto da família e da

intocabilidade do espaço privado”, mostrando que, mesmo que exista o afeto, a família pode ser uma instituição violenta (4, 59, 63).

A categoria violência contra a mulher enfatiza a quem a violência é dirigida, sugerindo que a violência só tem um alvo. Por um lado, tem vantagem de explicitar a situação de violência a qual as mulheres são submetidas, mas, por outro, mantém a mulher na condição de vítima, o que dificulta a apreensão do seu posicionamento como sujeito (4, 59, 63).

A categoria violência de gênero é mais geral e possibilita situar o vetor da ação em qualquer um dos pólos, ou seja, a violência de gênero pode ser praticada por homens ou mulheres em suas relações. É grande o debate sobre as possibilidades analíticas da categoria violência de gênero que, se por um lado deixa em aberto a possibilidade do vetor dominação-exploração, por outro, pode conter certa neutralidade, deixando “intocados os fundamentos da dominação patriarcal, contribuindo para o desaparecimento da análise das relações de poder entre os sexos”

(4, 63, 64).

É consenso entre as estudiosas que a categoria violência de gênero permite entendê-la no quadro das desigualdades de gênero que integram o conjunto das desigualdades sociais estruturais. Estas se “expressam no processo de produção e reprodução das relações de classe, étnico raciais, geracionais e de gênero”. Neste sentido, possui maiores possibilidades analíticas do que as categorias violência contra a mulher e violência doméstica, devido à sua dupla dimensão categorial, analítica e histórica (4).

A violência de gênero é um conceito amplo que abrange vítimas como mulheres, crianças e adolescentes de ambos os sexos e como categoria analítica ultrapassa o caráter apenas descritivo das categorias violência doméstica e violência contra a mulher. Pode-se afirmar que, sendo uma categoria mais geral, a violência de gênero se sobrepõe a estas duas categorias possibilitando a análise de ambas.

Em suas modalidades familiar e doméstica, a violência de gênero não ocorre aleatoriamente, mas deriva de uma organização social de gênero que privilegia o masculino, permitindo com que os homens exerçam poder, quase sempre de forma violenta, contra suas mulheres e crianças. Isto significa que:

no exercício da função patriarcal, os homens detêm o poder de determinar a conduta das categorias sociais nomeadas, recebendo autorização ou, pelo menos, tolerância da sociedade para punir o que se lhe apresenta como desvio. Ainda que não haja nenhuma tentativa por parte das vítimas potenciais de trilhar caminhos diversos do prescrito pelas normas sociais, a execução do projeto de dominação-exploração da categoria social homens exige que sua capacidade de mando seja auxiliada pela violência. Com efeito, a ideologia de gênero é insuficiente para garantir a obediência das vítimas potenciais aos ditames do patriarca, tendo este necessidade de fazer uso da violência (63) .

As mulheres também podem cometer a violência de gênero contra homens, contra outras mulheres e crianças sendo, porém, mais raro que isto ocorra. Isto porque como categoria social, as mulheres não possuem um projeto de dominação- exploração dos homens, entretanto, não há impedimento para que elas exerçam a violência ao desempenhar, por delegação, a função patriarcal contra crianças e adolescentes (63).

Algumas teóricas do movimento feminista consideram tabu a violência das mulheres, tendo dificuldades para admiti-la. Quase sempre é mencionada como uma “contraviolência”, de pequeno significado estatístico, ocorrendo apenas em casos raros, como uma atitude de defesa da mulher. É possível que esta dificuldade para admitir a violência praticada pelas mulheres não se deva apenas a razões militantes – “a violência talvez não tenha sexo” - mas ocorra também porque põe em perigo a “visão angelical das mulheres que serve também de justificativa para a demonização dos homens” (63, 65).

O fenômeno da violência feminina deve ser contextualizado, sendo imprescindível reconhecer que as omissões e o silêncio sobre esta violência dificultam o seu entendimento. Entretanto, reconhecer a violência feminina não significa negar ou deixar de valorizar a violência masculina contra as mulheres e a necessidade urgente de contê-la (65).

As raízes da violência nas relações de gênero se situam nas próprias relações entre homens e mulheres, sendo a violência um aspecto perverso destas relações, na medida em que anula a relação entre dois sujeitos e reduz um dos pólos da relação à condição de objeto. Assim, muitas vezes, as questões de gênero e violência são convergentes, sendo tratadas como uma mesma definição conceitual (13).

A violência de gênero objetiva-se nas relações entre sujeitos que se inserem desigualmente na estrutura familiar e societal. A despeito de poder ser exercida por homens e mulheres, estudos mostram que a violência de gênero produz exponencialmente vítimas mulheres e crianças (13, 63, 65).

A família e o espaço doméstico, onde a ordem simbólica favorece o exercício da dominação-exploração, são espaços propícios para a reprodução da violência de gênero. Esta, ao se instalar no seio das relações familiares, “tende a se reproduzir de forma ampliada sob o olhar complacente da sociedade, do poder público e dos técnicos envolvidos, prescindindo de justificativas para seu exercício cotidiano contra as vítimas preferenciais”. É neste contexto que situações de abuso sexual de crianças, privações, humilhações, ameaças, agressões verbais, psicológicas, físicas, homicídios e outras formas de abuso de poder e violência se perpetuam nas relações sociais (4, 63, 64).

A violência doméstica não é incompatível com o desejo de manutenção da família o que, de certa forma, contribui para manter intocada a sua imagem como um lugar seguro. Vários estudos sobre violência, em especial aqueles que tratam da violência doméstica e intrafamiliar mostram a família como o local de agressões graves que são mantidas sob forte sigilo, preservando assim uma imagem idealizada

(66, 67, 68).