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123 pertencente àquela comunidade e tendo, dentro dela, um papel, um significado

e importância.

Tais reflexões nos permitem pensar em como essa manifestação cultural tão espontânea que é uma roda de samba ressignifica o conhecimento por meio da participação das pessoas nesses momentos de produção e troca coletiva de saberes, tendo a possibilidade de refletir não somente sobre o conteúdo que ali se apresenta, mas sobre a forma como cada participante reelabora tal con-teúdo. Relações dicotômicas oriundas de um modelo de conhecimento pautado em hábitos disciplinares de uma cultura colonizadora como a nossa são, nessa direção, colocadas à prova, pois o coabitar espaços de livre manifestação e ex-pressão como as proporcionadas por uma roda de samba nos mostra como o conhecimento, quando desenvolvido em uma relação horizontal de troca entre os participantes, ganha força, memória e sentido.

A roda de samba se contrapõe às lógicas do espetáculo e do consumo dis-seminadas pela sociedade do capital. Esse espaço de convivência e produção cultural constituído pela roda de samba se baseia em outra lógica, como nos diz Moura (2004) nesta passagem:

Num certo sentido, a roda de samba é o antiespetáculo. As noções de tradi-ção e autenticidade sobrepõem-se à busca do sucesso ou da consagratradi-ção pública. A cultura de massa confunde cotidianamente os conceitos de espe-táculo e evento. A roda de samba é um evento, mas está longe de ser um espetáculo, de pretender ser espetáculo (MOURA, 2004, p. 112).

A lógica que prevalece numa roda de samba, portanto, se baseia em outros valores que desembocam em outro tipo de produção cultural. O conhecimento produzido numa roda de samba pode até futuramente ser incorporado numa produção nos moldes comerciais, como um CD ou até um DVD gravado ao vivo em algum botequim da moda. Porém, o espírito cultivado na maioria das rodas de samba que conheço é outro, muito mais voltado para a troca do que para o comércio. Muito mais para o convívio e a festa do que para o show. Muito mais para a celebração coletiva do que para o sucesso individual.

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depende dos espaços formais institucionalizados para sobreviver ou se difundir.

Os saberes produzidos numa roda de samba são um patrimônio construído du-rante décadas por homens e mulheres – boa parte deles pertencente às classes menos favorecidas da sociedade – que têm nesses espaços a possibilidade de se expressar e manifestar livremente.

Nesse sentido, é sim um “privilégio” fazer parte de um grupo social que cria seus próprios mecanismos de transmissão dos saberes que julgam necessários serem apropriados por seus membros. Um grupo social que valoriza seu pas-sado e a memória de seus ancestrais e que busca construir seu presente e seu futuro com base em relações de solidariedade, espírito comunitário e autonomia dos sujeitos. Numa roda de samba ninguém manda em ninguém, todos são res-ponsáveis pelo que constroem coletivamente, cotidianamente.

O espaço não formal de produção e troca de conhecimento constituído por uma roda de samba é tão importante quanto qualquer espaço formal de edu-cação representado por uma escola ou uma universidade. Pelo menos deveria ser assim. Porém, ainda vivemos numa sociedade preconceituosa, a qual não admite que os saberes e fazeres populares sejam tratados num mesmo pata-mar de importância que os saberes acadêmico-científicos, sem hierarquias ou discriminações.

A luta pelo reconhecimento desses saberes, desses sujeitos e desses es-paços é uma tarefa que cabe a todos aqueles que têm o compromisso com a construção de uma sociedade brasileira menos preconceituosa e mais dispos-ta a lidar com suas diferenças e sua diversidade cultural. Uma sociedade que possa perceber a riqueza dessa diversidade e o quanto isso pode apontar para um caminho de superação de tantas mazelas históricas, responsáveis por tanto sofrimento do qual o povo simples desse país foi vítima.

Uma sociedade que possa reconhecer o valor dos saberes populares que vêm das pessoas simples – dos mestres e mestras de nossa cultura popular, representados por sambistas, capoeiristas, mães e pais de santo, rezadeiras, artesãos, repentistas, cordelistas, quituteiras, bonequeiros, contadores de his-tórias, brincantes, entre tantos outros –, as quais, com dignidade e um profundo sentido de solidariedade e generosidade, vêm oferecendo seus conhecimentos acumulados por tantas gerações a todos aqueles que têm consciência sobre a riqueza e a humanidade que essas lições têm a nos ensinar.

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CAPítULO 8

samba de roda: uma matriz estética brasileira