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Ao considerarmos crianças, adolescentes, jovens e velhos como pessoas com potencial criador, partimos de um paradigma que compreende os espaços e lógicas de produção e manifestação cultural como lugares de criação. Muitas são as propostas de atuação com crianças e jovens que se propõem a trabalhar na área artística e cultural. Em várias dessas propostas percebemos a necessidade de os participantes avançarem no sentido de suas produções, de se constituírem e se perceberem como capazes em suas criações.

Os programas/propostas/instituições/ONGs/fundações nem sempre têm essa concepção. Em geral, ao observarmos as “atividades” artísticas propos-tas e realizadas, percebemos certo reprodutivismo, que ainda mantêm a escola como modelo, oferecendo aulas de música, teatro, dança, capoeira, entre ou-tras, mantendo o modelo de professor escolar como referência. Defendemos que as propostas sejam concebidas com o propósito de propiciar situações que provoquem criações e ambientes criativos, tanto ao considerarmos os “produ-tos” como também ao considerarmos os participantes das propostas.

Os adolescentes e jovens, assim como adultos e velhos, necessitam ex-perienciar ações criadoras, “não querem apenas consumir modelos, querem produzir e, nessa produção com qualidade, se sentirem capazes de criação e, através disso, se constituírem como seres capazes” (GARCIA, 2001, p. 155).

A educação não formal, por meio de estrutura própria, permite aberturas em vários sentidos, favorecendo a criação. Pode produzir atividade educativa mais aberta, em constante construção, permitindo certa irreverência ao lidar com as-pectos do contexto educacional. O espaço para o surgimento de dúvidas, contra-dições e críticas é importante e propicia o processo de criação. É interessante que a educação não formal em suas propostas saiba lidar e provocar esse processo.

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O processo criativo não é tradicional e comportado. Deleuze & Guattari (1992) compreendem três instâncias de criação que têm esse status por sabe-rem como lidar com o caos. Os autores defendem a tese de que a arte, a ciência e a filosofia não se constroem sobre as bases da opinião e, portanto, não tentam escapar ao caos. Essas três áreas têm a pretensão de efetuar cortes no caos, possibilitando conviver com ele, sem pretender vencê-lo, mas aproveitando o potencial criativo do caos. A filosofia, a arte e a ciência mergulham no caos e criam a partir dele. Para Deleuze & Guattari (1992),

o que define o pensamento, as três grandes formas do pensamento, a arte, a ciência e a filosofia, é sempre enfrentar o caos, traçar um plano, esboçar um plano sobre o caos [...]. A arte quer criar um finito que restitua o infinito: traça um plano de composição que carrega por sua vez monumentos ou sensações compostas, sob a ação de figuras estéticas. [...] As três vias são específicas, tão diretas umas como as outras, e se distinguem pela natureza do plano e daquilo que o ocupa. Pensar é pensar por conceitos, ou então por funções, ou ainda por sensações, e um desses pensamentos não é melhor que um outro, ou mais plenamente, mais completamente, mais sinteticamente ‘pensado’ [...].

Os três pensamentos se cruzam, se entrelaçam, mas sem síntese nem identi-ficação. A filosofia faz surgir acontecimentos com seus conceitos, a arte ergue monumentos com suas sensações, a ciência constrói estados de coisas com suas funções (DELEUZE & GUATTARI, 1992, p. 253-254).

A educação precisa aprender a lidar com a irreverência para favorecer a criação. A educação precisa dar espaços para outras relações de troca, mais livres, sem preconceitos do que pode ser permitido no ambiente educacional e o que não pode, assim como saber contar com o imprevisto. E, para ser criação, não pode haver limites, a não ser os impostos pelo seu próprio criador.

Uma das possibilidades presentes em um processo de educação não formal é o entendimento da maneira como se dá a construção das relações.

Compreendendo os envolvidos no processo educacional como seres que poten-cialmente carregam em si e colocam nas relações educacionais a intenção da criação, pode-se trazer para essa discussão a função e o sentido do conceito de amigo na sociedade grega, apresentados pelos autores Deleuze & Guattari (1992) quando tratam do nascimento da filosofia, sendo os filósofos “os amigos da sabedoria, aqueles que procuram a sabedoria, mas não a possuem formal-mente” (DELEUZE & GUATTARI, 1992, p. 10).

O amigo é aquele que tem, em potência, o seu objeto de desejo, pelo seu envolvimento com esse objeto, ele se mistura com ele. “Amigo designa uma cer-ta intimidade competente, uma espécie de gosto material e uma potencialidade”

(DELEUZE & GUATTARI, 1992, p. 11).

O amigo grego traz em si tanto o pretendente ao objeto do desejo como o seu rival, ambos incorporados à sua compreensão, sendo este o processo do

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é que permite e facilita as “idas e vindas”, as digressões e construções para o desenvolvimento do pensamento.

O amigo seria, pois, também o pretendente, e aquele de que ele se diria o amigo seria a Coisa que é alvo da pretensão, mas não o terceiro, que se tornaria ao contrário um rival? A amizade comportaria tanto desconfiança competitiva com relação ao rival, quanto tensão amorosa em direção do ob-jeto do desejo (DELEUZE & GUATTARI, 1992, p. 11-12).

O diálogo com o outro, com o que é diferente, com aquele que muitas ve-zes é encarado inicialmente como opositor, faz parte do processo de criação da filosofia e é fundamental para a criação de conceitos.

Considerando as instituições e as propostas de atuação com crianças, jo-vens, adultos e velhos no campo da educação não formal, processos que favo-reçam a criação são importantes e necessários quando se pensa em ações que priorizam a transformação. Podemos dizer que os envolvidos nesse processo, para terem em si a potência de transformação, necessitam vivenciar o processo criativo e reflexivo.

Para que essa postura seja compreendida, ela tem que ser aceita como legítima nos espaços de educação não formal, ou seja, as pessoas, os educa-dores que atuam nesses espaços necessitam tanto da compreensão da impor-tância dessa prática como também da vivência dela no seu espaço de trabalho, para que saibam e tenham abertura para possibilitar essa atitude junto às crian-ças, jovens, adultos e velhos com os quais trabalham.

Dessa forma, trazer o amigo grego para o contexto da educação não formal significa valorizar e encarar o diálogo na perspectiva deleuziana de construção do pensamento, como uma das bases do trabalho dessa especificidade de edu-cação. Enfatizando, mais uma vez, que o termo amizade para os gregos traz em si o sentido de rivalidade como disputa e a concepção de que há um debate per-manente, no qual o outro contribui significativamente para a evolução do diálogo e para a construção das ideias. O amigo, nesse contexto, sabe conviver com a rivalidade, encarando o outro como diferente, mas como aquele que, apesar de estrangeiro, pode ensinar. Pois a intenção não deve ser a busca pelo consenso, uma vez que o diálogo não é compreendido como tentativa de convencimento do outro, e que é por meio do debate que há a criação de conceitos.

Essa atitude filosófica da educação não formal pode fazer com que algu-mas de suas práticas se apresentem como possíveis propostas de educação inovadora e transformadora, que busca, a partir das relações vividas no cotidia-no, da valorização de pontos não considerados em outros campos educacionais,

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fazer emergir as bases de uma relação educacional diferenciada, que propõe a construção de um ser humano criador e criativo.