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O Projeto Guri e a prática coletiva de música

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têm atuação determinante na definição desses parâmetros, embora não tenham controle total sobre as variadas maneiras de se tocar dos ritmistas.

O fazer musical dentro de um agrupamento grande apresenta especificida-des. O ritmo é constituído pela soma de dezenas de execuções individuais, e o conjunto da bateria é mais importante que a individualidade. Os parâmetros de uma boa performance musical se pautam pela coletividade, que, por sua vez, é formada por execuções individuais dos instrumentos. Dentre os cerca de 200 ritmistas matildenses, podemos encontrar alguns com uma performance insa-tisfatória, se observada individualmente. No entanto, suas deficiências técnicas não comprometem de forma determinante o conjunto da bateria. O mestre e os diretores precisam ter uma percepção do limite que permite ou impede um rit-mista de atuar no conjunto.

Na bateria o aprendizado se dá durante o fazer musical. De acordo com Arroyo (2000b), é na prática, com o ritmista atuando no conjunto, que ocorre a assimilação dos elementos dessa linguagem musical. Pelo tamanho do agru-pamento, o processo de aprendizagem é constante e contínuo, concretamente coletivo, já que durante o tempo todo há troca de informações entre os indiví-duos, seja em um ensaio, em uma apresentação da bateria ou mesmo no des-file carnavalesco. Um ritmista atua simultaneamente como aprendiz e instrutor, aluno e educador, “cria” sua interpretação a partir da execução de um colega ao mesmo tempo em que apoia a criatividade interpretativa alheia, dentro de parâmetros específicos, porém dinâmicos e mutáveis. Por isso, uma boa bateria necessariamente deve contar com uma maioria de integrantes proficientes que servirão de apoio tanto para a performance do grupo como para a formação de novos integrantes.

77 documento tem como um dos eixos fundamentais o modelo TECLA, criado por

Keith Swanwick (2003), que defende o desenvolvimento musical do aluno por meio de atividades de execução, composição8 e apreciação, amparadas por téc-nica e literatura9 – a sigla (T)EC(L)A vem dessas iniciais. Esse modelo, que dia-loga com outras abordagens pedagógicas musicais, incentiva um aprendizado iniciado pela prática. A missão dos Amigos do Guri é “promover, com excelência, a educação musical e a prática coletiva de música, tendo em vista o desenvol-vimento humano de gerações em formação” (PPP, 2010, p. 5). Está no cerne da missão a prática coletiva de música, que é uma característica fundamental do projeto. Ainda de acordo com o PPP, a arte é conhecimento como experiência, estruturação e ordenação de sentimento e percepção. Dessa forma, os polos do Projeto Guri, locais onde acontecem as aulas, são espaços de aprendiza-gem mais amplos, onde ocorrem a troca de experiências, a observação mútua entre os alunos e o apoio concedido aos colegas com maior dificuldade. Além disso, as diretrizes metodológicas do Guri propõem a prática antes da teoria, o que, torna o processo de aprendizagem mais musical e intuitivo. A proposta de atuação por meio da sistematização do ensino coletivo de música se baseia na solidariedade, na troca de experiências, no compartilhamento e na tolerância, o que fortalece a ideia de convivência, considerando as diversidades existentes.

O processo de ensino coletivo busca fomentar a cooperação e não apenas a colaboração. Em educação, o conceito de colaboração não é tão abrangente – os alunos estão sentados juntos, mas não estão estudando juntos de fato. Já a cooperação supõe trabalho conjunto, incentiva o desenvolvimento cognitivo e social; musicalmente falando, ocorre quando os alunos são incentivados a realmente ouvir uns aos outros (PPP, 2010, p. 8). Enfatiza-se o diálogo contínuo entre os integrantes, além de se permitir a mediação entre diferentes estilos e personalidades. “A prática musical usualmente requer algum tipo de interação, seja entre músicos, entre o músico e uma plateia […]. O sujeito que não pos-sui as habilidades interpessoais necessárias terá dificuldades em estabelecer e conviver com essas interações” (GOHN, 2003, p. 47). Alguns instrumentos naturalmente acentuam essa interação, incentivando a cooperação. É o caso da percussão, naipe presente na maior parte dos polos do Guri.

O curso de percussão do projeto transita entre três áreas dessa família de instrumentos: percussão popular, percussão erudita e bateria, buscando a convergência entre elas, mas tendo a linguagem musical popular como eixo fundamental.

8 Por composição se entende processos criativos diversos, como a improvisação. Não se trata de uma composição musical tradicional, embora também o possa ser.

9 Por literatura se entende uma contextualização do conteúdo trabalhado, por exemplo, informações sobre o compositor de uma peça musical, o momento histórico em que se produziu determinada música, aspectos sociais e políticos relevantes etc.

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O instrumento de percussão é propício à mistura, ele pode entrar no campo popular, como no campo erudito, como no campo mais experimental [...]. A variedade instrumental é resultado desta mistura. Não se vê nenhum instru-mento com aspectos tão diversificados como os de percussão (BOUDLER, 1996 apud PAIVA, 2004, p. 27).

Dessa forma, o percussionista deve saber tocar diversos instrumentos, cada um com sua especificidade. O naipe da percussão desenvolve diferentes tipos de repertório; no entanto, na maioria dos casos está associado a outros naipes. Essa característica faz com que o percussionista esteja propenso a es-tabelecer relações de cooperação, pois constantemente estará t(r)ocando com outros músicos.

As turmas de percussão do Guri são formadas por nove alunos. O aluno ini-ciante começa sua aprendizagem na turma A (iniini-ciante) e a cada período, ge-ralmente de um semestre, tem possibilidade de avançar para as turmas B (in-termediário) e C (avançado). Em cada polo, os alunos da turma C integram um conjunto musical (prática de conjunto), sendo os mais comuns orquestra, banda e camerata. Nesse grupos, geralmente o naipe da percussão é responsável pela sustentação rítmica da música, uma função muito importante, que exige responsa-bilidade dos alunos percussionistas. A performance dos alunos do Guri faz parte do processo de aprendizagem e reflete o desenvolvimento musical em diferentes etapas. Desde a turma iniciante o aluno tem oportunidade de se apresentar em público, normalmente para os pais e comunidade da cidade. As turmas avançadas também representam o Guri em eventos de empresas patrocinadoras e apoiadoras do projeto, bem como em festivais e afins.

A enorme capilaridade do Projeto Guri, que atende municípios extrema-mente diversos, é responsável pela pluralidade de maneiras de se trabalhar a música, criando diferenças na abordagem e nos próprios conteúdos levados para a sala de aula. Em cada região do estado existem contextos culturais es-pecíficos que são considerados no processo de aprendizagem. A AAPG consi-dera que a música está relacionada com uma rede social, portanto, transcende uma linguagem “universal” por ter sotaque “local” e ser, de alguma forma, cul-turalmente autônoma (SWANWICK, 2003). Além disso, o Guri possui um corpo docente bastante heterogêneo, mesmo dentro de um mesmo naipe, como o da percussão, o que reflete em diferentes abordagens e conteúdos ensinados, tão variados quanto a formação e experiência musical pedagógica dos educado-res. As diretrizes pedagógicas da AAPG consideram essa heterogeneidade e buscam estratégias para lidar com ela. Nas aulas de percussão do Guri, em-bora o processo de transmissão de saberes geralmente parta de referenciais metodológicos específicos, o dia a dia da sala de aula é bastante dinâmico. O

79 educador e os alunos lidam com situações variadas, nas quais a prática coletiva

se mostra importante ferramenta no processo de aprendizagem. A diferença no nível de desenvolvimento de uma mesma turma naturalmente incita os alunos que já assimilaram determinado conteúdo a ajudarem os colegas que ainda não assimilaram. Isso ocorre motivado pelo pertencimento ao grupo, que depende de uma execução satisfatória de todos (ou pelo menos da maioria). Quando um aluno apresenta dificuldade na execução de um determinado trecho ou na as-similação de algum aspecto relevante para a música, seja em aula ou em uma apresentação, a observação e imitação dos colegas permitem uma fluência no fazer musical, e as dificuldades não impedem a expressão do aluno, que esta-rá amparado pelo grupo. O estudante com dificuldade não se sente incapaz, vivencia e pode compreender que faz parte de uma engrenagem, em que sua interpretação musical se integra a um contexto maior.