• Nenhum resultado encontrado

Quando a palavra “mito” é pronunciada, nem sempre seu real significado vem à mente de quem a ouve, já que muitas vezes acaba sendo assimilado de uma forma deturpada. Nas sociedades primitivas, “mito” significava sacralidade, importância, imponência. Atualmente, refere-se a um tema antigo, a uma aventura de algum indivíduo que passou a ser chamado de “herói”, ou até mesmo a um tema estigmado e não verdadeiro. Independente das várias significações a ele atribuídas, o conceito de “mito” ainda não apresenta “(...) a possibilidade de definição rigorosa ou absoluta (...)” (FERRAZ, 2008, p. 4).

Segundo Jabouille, citado na dissertação de Roberta Ferraz,

O conceito de mito é tão vasto que nele se pode incluir praticamente toda a expressão cultural humana – é o tudo – ou tão restrito que se limita a um ‘corpus’ específico e limitado, a um momento pontual e singular. É o ‘nada’ que é ‘tudo’. Se, para o homem comum, ele pode apresentar-se como um conteúdo deturpado, a verdade é que, ao longo dos séculos, o mito tem servido de ponto de partida , de meio, de objectivo ou de respostas para atitudes da Humanidade. Mesmo sem uma concepção nítida ou valorizada, ninguém nega a existência do mito, a sua presença em contextos diversos das várias sociedades. (1986, p. 15 apud FERRAZ, 2008, p. 4)

Como vimos ao longo dos quatro capítulos dessa dissertação, o mito de Orfeu, em sua reatualização no filme Coraline e o Mundo Secreto, não foi adaptado exatamente como na narrativa de Vergílio. Essa adaptação do mito para o filme ocorreu com uma série de modificações que foram trabalhadas no capítulo 3, como as adições, as reduções, as transformações e os deslocamentos. Juntamente com essas modificações, temos a presença do grotesco e da carnavalização, que foram capazes de dar ao mito uma nova feição que subtraiu todo o caráter sagrado e mítico que acompanhava Orfeu, gerando uma adaptação permeada pelo riso.

A carnavalização é um conceito proposto por Bakhtin (1987), que a estudou analisando os carnavais populares da Idade Média, por meio das obras de Rabelais. Os carnavais dessa época aconteciam por ser uma passagem religiosa, que celebrava a quaresma com missas e procissões. Fora

a religiosidade e a seriedade que lhe cabia, sobravam ao carnaval os festejos cômicos, que caracterizaram o período do carnaval como “o mundo às avessas”, uma vez que nessas festas a ordem social era invertida: os menos afortunados assumiam o papel dos mais ricos, e, assim, algumas figuras populares eram escolhidas para representarem reis, cardeais, duques, entre outros, havendo uma fuga da vida oficial, controlada, hierárquica. O carnaval era, portanto, o rito do mito da vida, no qual, por meio da encenação de uma vida livre da opressão do poder dos governantes e da religião, recriava-se a essência de uma vida ideal, sem rédeas, como uma forma de tentar estender a liberdade que adquiriam nesse período a todos os outros do ano.

A troca de papéis acontecia de uma forma paródica acompanhada pelo riso, pois “tudo era visto numa relatividade alegre” (FIORIN, 2006, p. 90). Com as obras de Rabelais, o riso passou a ter papel fundamental na carnavalização pois, além de estar presente em todas as manifestações carnavalescas, levava todos a viver este período festivo de uma forma livre, alegre. No carnaval, as pessoas apresentavam-se da forma como viam a si mesmos ou como gostariam que sua vida fosse fora dessa época, ignorando, mesmo que por alguns dias, a vida regrada e de aparências que possuíam na sociedade:

As leis, proibições e restrições, que determinavam o sistema e a ordem da vida comum (....), revogam-se durante o carnaval: revogam-se antes de tudo o sistema hierárquico e todas as formas conexas de medo, reverência, devoção, etiqueta, etc., ou seja, tudo o que é determinado pela desigualdade social hierárquica e por qualquer outra espécie de desigualdade (...) entre os homens. Elimina-se toda a distância entre os homens e entra em vigor uma categoria carnavalesca específica: o livre

contato familiar entre os homens. (BAKHTIN, 2010, p. 140)

Antes da criação do Estado e da hierarquia de poder, o riso era “(...) igualmente sagrado e igualmente, poderíamos dizer, ‘oficial’” (BAKHTIN, 1897, p. 5), sendo importante assim como o respeito perante as figuras que ocupam uma camada elevada na pirâmide hierárquica e visto como um ritual, que fazia parte das celebrações oficiais. Com a criação do Estado, o riso deixou de ter uma importância oficial e passou a não ser bem visto perante essas sociedades. O carnaval, portanto, tornou-se o festejo principal para a celebração do riso, pois é nesse festejo que o riso volta a ter, momentaneamente, seu caráter oficial.

Bakhtin propõe, em seu livro Problemas da Poética de

Dostoiéviski (2010), que a carnavalização tem algumas características

próprias44, entre elas, a presença de um caráter ideológico nas narrativas. Unindo-se o gênero fantástico com a ideologia do “herói”, têm-se aventuras empreitadas a fim de buscar uma verdade: “(...) o fantástico assume um caráter de aventura, às vezes simbólico ou até místico-religioso (...), mas está subordinado à função puramente ideológica de provocar e experimentar a verdade” (p. 130). Juntamente com o gênero fantástico, temos uma forte presença do “naturalismo do submundo” (BAKHTIN, 2010, p. 131), e do rebaixamento, que são caracterizados “(...) com a expressão máxima do mal universal (...)” (BAKHTIN, 2010, p. 131) e com a inversão de alto e baixo. Em

Coraline e o Mundo Secreto, vimos que o outro mundo é o rebaixamento do

mundo real da personagem e também por meio da outra mãe, que se revelou ser uma figura extremamente má e sem caráter, foram proporcionadas à menina aventuras fantásticas e sombrias para que ela pudesse reconhecer o valor de sua família, pois sem empreitar essa catábase fantástica, não teria se identificado com sua família.

A ocorrência de sonhos inusitados e fantasiosos também está presente na carnavalização. Esses sonhos apresentam uma possibilidade de vida diferente da real, e podem ser “(...) proféticos, motivadores ou precautórios (...)” (BAKHTIN, 2010, p. 133). Na obra fílmica, Coraline tem sonhos constantes com o outro mundo e as personagens nele presentes. Primeiramente, sonhou com os ratinhos, que a guiaram até o túnel, e depois, sonhou com as almas das crianças, que a alertaram acerca do retorno da outra mãe, que a perseguiria até ter em seu poder a chave da porta que levava até o outro mundo.

Outra característica marcante é a presença de gêneros diferentes em uma só obra. Analisando os corpora, vimos que houve a intertextualidade entre o mito e a obra fílmica, “(...) com um grau variado de paródia (...)” (BAKHTIN, 2010, p. 135). Desta forma, a agregação de um mito na Literatura gera a intertextualidade entre esses diferentes gêneros, e pode ocorrer nas

44 Devido aos corpora dessa dissertação, foram, aqui, somente estudadas as características que se correlacionavam à proposta desse estudo.

mais diversas formas 45, entre elas, a paródia. Quando recorremos a dicionários não teóricos, temos uma conceituação unilateral de “paródia”, já que é somente relacionada a uma imitação cômica, a uma zombaria: “(...) obra literária, teatral musica, etc. que imita outra obra, ou os procedimentos de uma corrente artística (...) com o objetivo jocoso ou satírico (...)” (HOUAISS, 2001, p. 2137).

Por ter o lado satírico mais predominante expresso, principalmente na música, a prática da paródia nem sempre é bem vista, não só por seu caráter crítico – pois quem é parodiado teve sua obra analisada por quem o parodiou –, mas também por uma simbólica a apropriação da obra do outro, como se o parodiador não tivesse criatividade suficiente para criar a sua própria. Assim, o autor que evita a paródia, no mais errôneo de seus significados, tem uma atitude individualista e egoísta por cogitar a possibilidade de que sua obra será sempre e unicamente sua – quando, na verdade, transforma-se do domínio de todos a partir do momento em que se torna pública.

Excluindo esta visão deturpada, temos que “(...) a paródia é, pois, na sua irônica ‘transcontextualização’ e inversão, repetição com diferença. [Nela] está implícita uma distanciação crítica entre texto em fundo a ser parodiado e a nova obra que incorpora (...)” (HUTCHEON, 1985, p. 48), ou seja, quando um texto é parodiado, incorporado em outro, vemos seus traços presentes no produto final da paródia, assim como acontece com os corpora deste trabalho, no qual é possível perceber alguns traços do mito de Orfeu na obra fílmica, por meio de uma “(...) derivação na qual o texto anterior [Orfeu] é, de uma maneira ou de outra, reconhecível” (SAMOYAULT, 2008, p. 53)

O conceito teórico de paródia, que a vê como uma “(...) repetição com distância crítica, que marca a diferença em vez da semelhança” (HUTCHEON, 1985, p. 17), propõe que para haver sua manifestação textual, não se faz necessária a presença da sátira, mas de um paralelismo entre os textos. Desta forma, estabelece-se uma relação entre o texto que foi colocado como base, fundo, com o texto que o parodia. Juntamente com o paralelismo há a inversão irônica, que se trata da inversão de alguns elementos presentes

no texto parodiado no momento em que se estabelece a paródia; essa inversão pode ser explicitado com os corpora: no texto de fundo – mito – temos uma narrativa sagrada e com uma personagem principal masculina, na paródia – filme –, uma obra fílmica com personagem principal feminina. Ainda exemplificando, o paralelismo também pode ser correlacionado entre as personagens e suas catábases – como visto no capítulo 3 –, e foi constituído não só pela relação entre mito e filme, mas também pelo rebaixamento sofrido pela narrativa mítica em sua reatualização para Coraline e o Mundo Secreto.

A inversão irônica também é característica de outros gêneros, como a pastiche e a imitação, mas o que difere a paródia desses gêneros é a transcontextualização paródica, que caracteriza a mudança de contexto de uma obra para outra, uma adaptação de um gênero para outro, de uma forma de linguagem para outra.

Assim, por meio do riso carnavalesco e da paródia, o diálogo entre mito e Literatura ocorre de uma forma harmoniosa, não só pela transformação do mito primitivo a um mito literário, mas também pelas contribuições que o mito pode trazer a uma obra literária. Essa transformação que o mito sofre faz com que sua fábula se conserve e perdure por toda a história da Humanidade.

Entre muitos pesquisadores que estudam esse diálogo, temos Raul Fiker (1983) que, em sua tese, afirmou que há duas modalidades nas quais o mito se agrega à Literatura: a ornamental e a temática. Por modalidade ornamental46 entende-se a presença de deuses ou elementos míticos no texto literário, como meros “figurantes” ou, até mesmo, figuras com a função de ilustrar algumas passagens desse texto, já que não estão estritamente relacionadas com a narrativa, como “(...) vestígios desgarrados que aderem aleatoriamente a contextos aleatórios (...)” (p. 50), ocorrendo, assim uma “desmitologização” 47; e por modalidade temática, a incorporação – total ou subjacente – do enredo do mito, suas personagens ou elementos míticos como foco da obra literária, “(...) através de todo um processo de romanceamento de

46 A esta modalidade não será dada ênfase pois não se aplica à intertextualidade presente entre os corpora deste estudo.

um mito (...)” (FIKER, 1983, p. 53), assim como acontece nos corpora, onde o enredo mítico de Orfeu aparece como fundo da narrativa de Coraline.

Por meio deste diálogo, temos a reatualização dos textos antigos, que são muito frequentemente parodiados em obras ou por autores modernos, tornando-os conhecidos pela contemporaneidade. A paródia, assim como a Intertextualidade, depende do conhecimento que o leitor tem para ser identificada; portanto, cabe ao autor conhecer o conhecimento de mundo de seu leitor para que as correlações entre os textos possam ser feitas e estabelecidas. Em Coraline e o Mundo Secreto, por exemplo, somente quem já conhecia o mito de Orfeu foi capaz de identifica-lo como “pano de fundo” da obra fílmica. Assim, a correlação entre o mito de Orfeu e Coraline e o Mundo

Secreto é válida não somente por meio da Intertextualidade, mas também pela

paródia transcontextual, que adaptou a narrativa mítica, que tem como função representar os primórdios do ser humano, em uma obra fílmica, com função didática e edificante, já que ensina seu espectador a aceitar sua vida e sua família.

Documentos relacionados