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A intertextualidade entre Coraline e o mundo secreto e o mito de Orfeu

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Academic year: 2017

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Universidade Presbiteriana Mackenzie

Programa de Pós-Graduação em Letras

Mestrado em Letras

NAHINÃ DE ALMEIDA ROSA BARBOSA

A INTERTEXTUALIDADE ENTRE CORALINE E O MUNDO SECRETOE O MITO DE ORFEU

São Paulo

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NAHINÃ DE ALMEIDA ROSA BARBOSA

INTERTEXTUALIDADE ENTRE CORALINE E O MUNDO SECRETOE O MITO DE ORFEU

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Letras

Orientadora: Profª. Drª Lilian Lopondo

São Paulo

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B238i Barbosa, Nahinã de Almeida Rosa.

A intertextualidade entre Coraline e o Mundo Secretoe o

mito de Orfeu / Nahinã de Almeida Rosa Barbosa - 2012.

110 f. : il. ; 30 cm.

Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade

Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2012.

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NAHINÃ DE ALMEIDA ROSA BARBOSA

INTERTEXTUALIDADE ENTRE CORALINE E O MUNDO SECRETOE O MITO DE ORFEU

Aprovada em: _____/______/_____

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________________________ Profª. Drª Lilian Lopondo – Orientadora

Universidade Presbiteriana Mackenzie

_______________________________________________________________ Profª Drª Elaine C. Prado dos Santos

Universidade Presbiteriana Mackenzie

_______________________________________________________________ Profª Drª Maria Luíza Guarnier Atik - suplente

Universidade Presbiteriana Mackenzie

_______________________________________________________________ Profª Drª Raquel de Sousa Ribeiro

Universidade de São Paulo

_______________________________________________________________ Profª Drª Angela Sivalli Ignatti - suplente

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AGRADECIMENTOS

A Deus, por ter concedido a graça da minha vida, força para não desistir no meio do caminho e persistência para prosseguir com meus objetivos.

À minha mãe, por ser meu exemplo de coragem, por me incentivar em todas as minhas decisões, estando ao meu lado em todos os momentos e por conviver comigo todos os dias, independente de serem feitos de momentos felizes, tristes ou por surtos de desespero e estresse.

À Profª Drª Lilian Lopondo, pela orientação e pela paciência de corrigir os meus textos, sempre apontando sábias sugestões e me incentivando a concluir esta empreitada.

À Profª Drª Elaine C. Prado dos Santos e à Profª Drª Raquel de Sousa Ribeiro, por terem aceitado participar da comissão organizadora desta Dissertação, e pelos valiosos apontamentos feitos no exame de qualificação.

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Apenas o Adão mítico que chegou com a primeira palavra num mundo virgem, ainda não desacreditado,

somente este Adão podia realmente evitar por completo

esta mútua orientação dialógica do discurso alheio para o

objeto. Para o discurso humano, concreto e histórico, isso

não é possível: só em certa medida e convencionalmente

é que pode dela se afastar.” (BAKHTIN, 1988, apud

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RESUMO

A presente dissertação tem como objetivo examinar a atualização que o mito de Orfeu sofreu no filme “Coraline e o Mundo Secreto” - uma adaptação do romance “Coraline” (2003), do britânico Neil Gaiman -, por meio da análise comparativa e dialógica, de acordo com os conceitos bakhtinianos de dialogismo, carnavalização e grotesco, entre o mito original e o seu rebaixamento na obra fílmica.

A proposta de um estudo dialógico entre o mito de Orfeu e o filme ocorre não somente pela dessacralização que o mito sofreu, mas também pela presença, em comum, do tema da catábase, já que Coraline e Orfeu a realizaram para resgatarem algo que lhes foi tomado, seja a amada ou o reconhecimento de valores próprios e familiares. A partir desta análise, baseada nos estudos de Mircea Eliade, Pierre Brunel e João Batista de Brito, elencou-se o duplo como um acréscimo que o mito sofreu nessa atualização e elucidou-se a razão pela qual houve a manifestação do duplo nesta obra.

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ABSTRACT

This thesis aims to examine the update that the myth of Orpheus has suffered in the movie "Coraline" – an adaptation of theBritish Neil Gaiman’s novel "Coraline"(2003) –, through a comparative and dialogic analysis, based on Bakhtin’s concepts of dialogism, carnivalization and grotesque, between the original myth and its degradation in the film work.

The proposal of a dialogic study between the myth of Orpheus and the movie happens not only because of the dessacralization that the myth has suffered, but also for the common theme of the katabasis, since Coraline and Orpheu made it to rescue something that was taken from them, whether it was the loved one or the recognition of the family and own values. After this analysis, based on Mircea Eliade’s, Pierre Brunel’s and João Batista de Brito’s studies, the double was shown as an increase that the myth has suffered on this update and the reason why there was the manifestation of the double in this work was elucidated.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Mãe real p. 43

Figura 2 Outra mãe p. 43

Figura 3 Processo de transformação da outra mãe(1) p. 43

Figura 4 Processo de transformação da outra mãe(2) p. 43

Figura 5 Processo de transformação da outra mãe– estágio final p. 44

Figura 6 Ilustração da outra mãe(p. 28) p. 44

Figura 7 Ilustração da outra mãe(p. 68) p. 44

Figura 8 Apresentação do casarão e do Mr. Bobinsky p. 52

Figura 9 Apresentação da Ms. Spink p. 52

Figura 10 Apresentação do Gato p. 53

Figura 11 Apresentação de Coraline p. 53

Figura 12 Apresentação dos elementos que cercam o casarão: p. 54 antiga estufa, folhas secas, árvores mortas, portão grande

antigo e jardim abandonado

Figura 13 Treliça quebrada p. 55

Figura 14 Aspecto de casa abandonada p. 55

Figura 15 Árvore morta, folhas secas, grande portão antigo p. 56

Figura 16 Jardim abandonado p. 56

Figura 17 Cozinha mal cuidada, com caixas da mudança p. 57

Figura 18 Escritório mal cuidado, com caixas da mudança, lixos pelo chão p. 58

Figura 19 Sala de visitas escura p. 58

Figura 20 Quarto de Coraline: escuro e sem graça p. 59

Figura 21 Jantar p. 59

Figura 22 Mãe mal humorada p. 60

Figura 23 Pai desleixado p. 60

Figura 24 Mr Bobinsky p. 60

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Figura 26 Apartamento do Mr Bobinsky p. 61

Figura 27 Apartamento das vizinhas p. 62

Figura 28 O casarão, no outro mundo p. 63

Figura 29 Jardim do outro mundo p. 64

Figura 30 Cozinha do outro mundo p. 64

Figura 31 Escritório do outro mundo p. 65

Figura 32 Sala do outro mundo p. 65

Figura 33 Quarto de Coraline no outro mundo p. 66

Figura 34 Um jantar no outro mundo p. 66

Figura 35 A outra mãe p. 67

Figura 36 O outro pai p. 67

Figura 37 O outro Mr Bobinsky p. 68

Figura 38 A outra Ms Spink p. 68

Figura 39 A outra Ms Forcible p. 69

Figura 40 Apartamento das vizinhas no outro mundo p. 69

Figura 41 Apartamento do Mr Bobinsky no outro mundo p. 70

Figura 42 O outro mundose destruindo p. 71

Figura 43 O mundo real tornando-se mais atraente à menina p. 71

Figura 44 O túnel, nas primeiras idas ao outro mundo p. 74

Figura 45 O túnel já se destruindo p. 74

Figura 46 Outra mãetecendo a boneca p. 77

Figura 47 Outra mãetransformada em aranha p. 77

Figura 48 Ooutro mundotransformando-se em teia p. 78

Figura 49 Aoutra mãe p. 79

Figura 50 A outra mãe-aranha p. 80

Figura 51 A mão da outra mãe p. 81

Figura 52 “Little Me” p. 92

Figura 53 Bilhete deixado por Wybie: “Ei, Jones! Olha só o que eu p. 93

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Figura 54 Coraline e sua boneca p. 93

Figura 55 O jardim do mundo real, agora colorido e com flores p. 98

Figura 56 O jardim do outro mundo perdendo suas cores p. 98

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SUMÁRIO

Introdução p. 12

Capítulo 1 – O mito p. 17

1.1 A origem do mito p. 17

1.2 O que é mito? p. 20

1.3 O mito de Orfeu p. 23

1.3.1 O episódio de Aristeu p. 26

1.3.2 O mito de Perséfone e sua ligação com o

Hades, Cérbero e Caronte p. 28

1.3.3 O mito de Hades p. 29

Capítulo 2 -Coraline e o Mundo Secreto p. 31

2.1 Adaptação do livro Coraline p. 35

2.1.1 Reduções p. 36

2.2.2 Adições p. 39

2.2.3 Deslocamentos e Transformações p. 44

Capítulo 3 - Orfeu e Coraline p. 51

3.1 Adições p. 51

3.2 Transformações e deslocamentos p. 82

Capítulo 4 - A duplicação da vida de Coraline p. 85

4.1 O duplo p. 87

4.2 O duplo, de Otto Rank p. 88

4.3 O Estranho, de Sigmund Freud p. 90

4.4 O duplo em Coraline e o Mundo Secreto p. 92

Considerações Finais p. 100

Referências Bibliográficas p. 105

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INTRODUÇÃO

A presente dissertação teve como objetivo examinar, durante seus quatro capítulos, a atualização que o mito de Orfeu sofreu no filme

Coraline e o Mundo Secreto1, por meio da análise comparativa e intertextual

entre o mito primitivo e o seu rebaixamento na obra fílmica. Baseando-se nesta análise, também foi possível explicitar o duplo como um acréscimo que o mito sofreu nessa atualização.

Ainda há estudiosos, como Denis de Rougemont e Claude Lévi-Strauss2, que não acreditam em um possível diálogo entre a Literatura e o mito,

já que creem que a Literatura pode depreciar a sacralidade do mito, mas há outros, como Virgínia Celeste de Carvalho, que atestam que este diálogo ocorre desde os primórdios da Literatura, pois

se pensarmos na literatura ocidental de forma diacrônica, e chegarmos à grega, perceberemos o quanto ela estava ligada aos Mitos organizadores da cultura helênica. A literatura, nesse momento, era uma espécie de redoma que asseguraria a conservação de determinados valores e moral. Entretanto essa redoma logo deixou de ser um estanque repositório que apenas catalogava mitos: ela crescia e as novas inserções reorganizavam sua estrutura. O mito literário, então, tornou-se complexo e se desvencilhou do mito religioso-cultural. (2009) 3

O dialogismo entre Literatura e mito tornou-se possível não quando houve a reflexão sobre a função e a importância de cada um, separadamente, mas sim quando pensou-se que ambos interagiram entre si, já que o mito dependeu da narrativa, que é um elemento literário, para existir. Pierre Brunel expressou claramente esta sincronia entre Literatura e mito ao sustentar que “(...) o mito é uma narrativa. (...) Caso a narrativa seja eliminada, só restará uma imagem, quer pintada num vaso grego, quer inserida em um

1 Toda vez que o filme for citado, estaremos nos referindo às seguintes informações:

CORALINE E O MUNDO SECRETO, Produzido por Claire Jennings e Mary Sandell, com direção e roteirização de Henry Selick. Estados Unidos: Focus Features/Universal Pictures, 2009. DVD (101 min.): DVD, NTSC, son., color.

2Autores citados por Brunel no Dicionário de Mitos Literários, 2005, p.xvii.

3“A Reescritura dos Mitos Literários”. Disponível em:

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texto literário.” (2005, p. xvi), levando-nos a deixar de ver o mito como um

corpus singular, único, sagrado e intocável, para vê-lo como um mito literário,

agregado, então, à Literatura, pois (...) a literatura é o verdadeiro conservatório dos mitos, [e] (...) o mito nos chega envolto em literatura e já é, queiramos ou não, literário. Resulta daí que a análise literária encontra o mito em um momento ou em outro (BRUNEL, 2005,p. XVII).

Além da narrativa, mito e Literatura também colaboram devido ao “tema” em comum que podem apresentar, embora o tratando de formas diferentes. O mito considera um “tema” como sagrado, expondo sua origem e sua atemporalidade, uma vez que por ser um “tema” relativo ao Universo, responde questões existentes em toda a Humanidade, independente da época. Assim, “(...) o mito narra um acontecimento; mas, além disso, o mito dá respostas às questões que a razão humana não pode compreender. (...) o tratamento mítico de um tema pressupõe, portanto, sempre um conflito existencial. (...)” (MONFARDINI, 2005, p. 54).4 A Literatura, por sua vez,

trabalharia este tema tratando apenas de sua ocorrência na vida humana e de possíveis resoluções e questionamento acerca deste, agregando-o a um microcosmo, representante da Humanidade. Ao tratarmos, então, de um mito literário, inserimos a reatualização do mito no microcosmo, onde “(...) instaura-se, (...) na tentativa de apreender, pela escrita, os questionamentos humanos e criar um universo próprio que lhes responda” (CARVALHO, 2009).

Considerando que o mito é a explicação do inexplicável, por ser criado para que o Homem compreendesse aquilo que não tinha uma explicação concreta, sua presença na Literatura Fantástica é mais frequente, já que este gênero literário “(...) apela para soluções transcendentais ou sobrenaturais de problemas que a consciência humana não consegue resolver (...)” (MONFARDINI, 2005, p. 55). Com estas afirmações, foi proposto, aqui, um estudo da intertextualidade presente entre o mito de Orfeu e o filme5, não

somente pela dessacralização que o mito sofreu, mas também por

4 MONFARDINI, Adriana.

O Mito e a Literatura. Disponível em: http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa/g_pdf/vol5/v5_4.pdf - Acesso em 23/04/2011 às 13:32h.

5 O filme Coraline e o Mundo Secreto é uma adaptação do livro “Coraline” (2006), de Neil

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apresentarem o tema da catábase 6 em comum. Ambas as personagens a

realizaram para resgatar algo que lhes foi tomado: Orfeu desceu ao Hades movido pela perda sua Eurídice e pela esperança de poder resgatá-la; Coraline foi ao outro mundo movida, primeiramente, pela sua curiosidade e, posteriormente, regressou por ter tido seus pais reféns da outra mãe, o que a fez readquirir os valores familiares que foram, por ela, esquecidos.

Por intertextualidade entendemos “(...) a presença de um texto em outro texto (...)” (SAMOYAULT, 2008, p. 9), no qual um depende do outro para que haja a sua existência. Está contida, principalmente, na Literatura, que

se escreve certamente numa relação com o mundo, mas também apresenta-se numa relação consigo mesma, com sua história, a história de suas produções, [como] uma árvore com galhos numerosos, com um rizoma mais do que com uma raiz única, onde as filiações se dispersam e cujas evoluções são tanto horizontais quanto verticais. (SAMOYAULT, 2008, p. 9)

Influenciada pelos estudos de Bakhtin acerca do Dialogismo, Julia Kristeva introduziu primeiramente, na década de 60, o termo Intertextualidade, e utilizou-se dele para afirmar que um texto nunca foi puro, pois sempre apresentou vozes explícitas ou implícitas, representando as relações estabelecidas entre os mais variados textos. Explicitou, também, que uma das vozes mais importantes presentes no texto era a do próprio autor, que, ao escrever, colocou ali sua intenção e sua opinião sobre determinado assunto. A interação entre a voz do autor (enunciador) e a do leitor (enunciatário) gerou a Intertextualidade.

Desta forma, vemos que o texto não é só composto por palavras, frases e parágrafos, mas também pelo o que seu leitor acrescentou nele de seu próprio conhecimento de mundo, contribuindo com experiências e fazendo com que o texto tivesse uma leitura infinita, pois adicionou conceitos e ideias já vistos. Toda essa retomada de informações, seja do leitor ou do próprio texto, acabou por coloca-lo em movimento, já que não se trata somente do que está preso em suas linhas, mas sim da interação, da movimentação de ideias e parágrafos (através da leitura transversal e intratextual) contidas em suas linhas e entrelinhas, assim como nos afirma Kristeva: “(...) todo texto se

6 Por catábase entende-se a descida ao Inferno estimulada pela busca de uma verdade, de

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constrói como um mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto” (1969, p. 145, apud SAMOYAULT, 2008, p. 16).

Antigamente, os primeiros textos eram vistos como um bloco único de palavras, sem espaçamento entre elas, representando uma metáfora na qual o texto permitia ao leitor ter somente uma interpretação de seu sentido, como se a interpretação, assim como seu todo, fosse única. Posteriormente, o texto foi desmembrado, com os espaços entre palavras, parágrafos e capítulos, fazendo com que se tornasse passível de várias interpretações, como se cada divisão fosse uma visão diferente da outra.

O conceito proposto Kristeva pode ser confirmado em nossa própria leitura, pois quando lemos um texto, sempre relacionamos algo que já aprendemos ou já lemos (nosso conhecimento de mundo e nossa vivência) às ideias trazidas por ele, seja explanando, explicando ou exemplificando-as.

Assim, por meio do estudo intertextual e comparativo entre

Coraline e o Mundo Secreto e o mito de Orfeu, verificou-se que um mito pode

ser reatualizado, já que mesmo sendo sagrado e relacionado com a origem e/ou importância de algo (no caso, o mito de Orfeu expressou a celebração da imortalidade da música), pode ser transportado para a atualidade por meio de sua reatualização em uma obra contemporânea, favorecendo, assim, o exame dos mitos através da intertextualidade e do dialogismo.

A fim de que a análise da reatualização do mito de Orfeu fosse possível, foi feito um levantamento do conceito de mito e das questões referentes a ele, como tempo, espaço, sacralidade, atualizações, etc., segundo Mircea Eliade em seu livro “Mito e Realidade” (1972), Joseph Campbell em “As

transformações do mito através do tempo” (1990) e Roland Barthes em

Mitologias” (2001). Com esse levantamento, comparou-se a ida de Coraline ao

outro mundocom a descida de Orfeu ao Hades, baseando-nos no conceito de rebaixamento, proposto por Mikhael Bakhtin, em seu livro “A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais”. Após a

análise comparativa, foi analisado o duplo – conceitos de Carla Cunha, Otto Rank (”O Duplo”), e de Freud (“O Estranho”), como um acréscimo presente na

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Foi abordado, no primeiro capítulo, o conceito de mito, sua importância e os elementos que o compõe, como tempo, espaço, sacralidade, atualizações e personagens. Neste mesmo capítulo houve o levantamento da fábula do mito de Orfeu e dos mitos e episódios que podem ser encontrados dentro da narrativa principal, baseado nos estudos dos autores Elaine C. P. dos Santos, em “O IV Canto das Geórgicas”, de outros autores organizados por

Pierre Brunel em “Dicionário de Mitos Literários” e Junito Brandão em

Mitologia Grega” – Volumes 1, 2 e 3.

No segundo capítulo, foi feita uma síntese do filme “Coraline e o

Mundo Secreto” e um levantamento dos acréscimos, supressões,

animalizações, deslocamentos e inversões que a narrativa sofreu na sua adaptação para o cinema.

O terceiro capítulo trouxe a análise comparativa entre o mito de Orfeu e o filme, dando ênfase na relação entre a catábase empreendida por Orfeu e a sofrida por Coraline. Nessa relação foram elencadas, além dos conceitos de rebaixamento, de dessacralização e de reatualização, as visões de mundo apresentadas pelo mito e pelo filme.

O quarto capítulo abordou a questão do duplo como um acréscimo, do mito para a obra fílmica, e o motivo principal pelo qual esta manifestação ocorreu.

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CAPÍTULO 1 – O mito

1.1 A origem do mito

Assim como muitas ocorrências em nossas vidas, não podemos especificar exatamente o surgimento do mito. De acordo com Campbell, o mito originou-se por volta de 200000 a. C. com a expansão do cérebro do Homem de Neandertal, pois assim que “o cérebro atingiu certo tamanho, [houve] uma transformação da consciência e é nesse período que aparecem os primeiros indícios indiscutíveis de um pensamento mitológico” (1990, p. 12). Esses indícios são baseados em fósseis encontrados, que mostram que os homens de Neandertal já exibiam comportamentos míticos, como o sepultamento com oferendas animais, corpos enterrados em posições fetais, e “(...) a adoração de crânios de ursos das cavernas” (CAMPBELL, 1990, p. 16), pois foram

encontrados crânios com oferendas à sua volta.

Desconsiderando que, atualmente, a palavra “mito” é empregada para referir-se a uma pessoa ou fato ilustres, grandiosos, ainda há duas visões, acerca do mito: uma o vê como uma “(...) fábula, lenda, invenção ou ficção (...)” (BRANDÃO, 1992, p. 35) que narra façanhas de personagens históricos, e outra o entende como um mito “vivo” por ser uma narrativa sagrada, verdadeira e possuidora de uma carga muito significativa, seja para seus estudiosos ou para

...as sociedades onde o mito é – ou foi, até recentemente – “vivo” no sentido de que fornece os modelos para a conduta humana, conferindo, por isso mesmo, significação e valor à existência. (ELIADE, 2004, p.8)

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Para nossos contemporâneos, essas duas visões são misturadas, já que ao caracterizar uma pessoa como “mito”, seja por seus atos, história, entre outros, dá-se a este ser os créditos de bravura, modelo, assim como o “mito” que, em si, representa um exemplo a ser seguido. Para eles, toda a carga religiosa, o ritual de representação e a sacralidade foram rebaixados por não serem mais importantes, pois, além de passar a ser somente uma narrativa que supria a curiosidade dos povos antigos, o mito teve seus personagens, os entes sobrenaturais, transformados em meros seres humanos, cuja atuação histórica tem alguma relevância. Desta forma, os homens modernos acreditam que é por meio dos feitos dos “atuais seres míticos” que sua vida desenvolveu-se para tornar-desenvolveu-se como é hoje.

De acordo com a segunda perspectiva, o mito tem grande importância nas sociedades arcaicas que o viam como “vivo” por explicar a origem desconhecida de determinados fenômenos que não dependiam da ação humana para acontecer7, como a criação e a destruição do mundo – conhecidos como cosmogonia e escatologia –, a renovação, e a origem de determinados sentimentos, fenômenos naturais, etc. Além de satisfazer a curiosidade humana, o mito também é visto como um modelo de conduta a ser seguido por essas civilizações, assim como os mulçumanos seguem o Alcorão e os católicos, a Bíblia, por, juntamente com “(...) as crenças, os costumes, as leis, as obras de arte, o conhecimento científico, os esportes, as festas (...)” (BRANDÃO, 1992, p. 9), ser grande responsável pela formação da identidade cultural e da “Consciência Coletiva”8 de uma sociedade. Além de definir costumes a serem seguidos, o mito é capaz de constituir toda a riqueza cultural de uma sociedade, que pode, “(...) a qualquer momento, voltar para realimentar-se (...)” (BRANDÃO, 1992, p.10) e instruir-se sobre a história traçada por esta civilização.

Os atos realizados pelos homens dessas civilizações, sejam eles bons ou ruins, são justificados pelas tramas dos mitos, uma vez que os homens os representavam fielmente a fim de recriá-los e, talvez, alcançarem os

7“(...) o mito pretende explicar o mundo e o homem, isto é, a complexidade do real (...)” (2004

, p. 36)

8 Termo de C. G. Jung, utilizado pelo Dr. Carlos Byington in: BRANDÃO, Junito de Souza.

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mesmos feitos obtidos pelas “personagens” 9, e relacionados diretamente com a cultura desses povos, que consideravam essas representações como um meio sagrado de estarem em contato com seu passado. Segundo Brandão, os mitos

(...) delineiam padrões para a caminhada existencial através da dimensão imaginária. (...) Até mesmo os mitos hediondos e cruéis são da maior utilidade, pois nos ensinam através da tragédia os grandes perigos do processo existencial. (p.9) (...) Por isso, os mitos, além de gerarem padrões de comportamento humano (...), permanecem através da história como marcos referenciais através dos quais a Consciência pode voltar às suas raízes para se revigorar (1992, p. 10)

As antigas civilizações possuem sua tradição oral, já que os mitos eram recitados, levando grandes estudiosos a os transcreverem por serem importantes relatos da vida dessas sociedades, pois determinavam os costumes dos homens antigos. Ao compararmos os mitos de cada civilização, vemos que o mesmo tema mítico pode ser encontrado em diferentes religiões, porém, para cada uma, sofreu algumas modificações, que ocorreram não só pela transcrição do mito oral para escrito, mas também, por se tratar de um modelo a ser seguido, foi “manipulado” para adequar-se à época e à sociedade em que estava presente, fazendo com que os mitos fossem “(...) transformados e enriquecidos no curso dos séculos, sob a influência de outras culturas (...)” (ELIADE, 2004, p. 10). Embora, nas antigas civilizações, essas alterações tenham ocorrido, nas sociedades arcaicas o mito ainda era preservado como primitivo10, mantendo, assim, sua forma “original”, sem transformações. Vemos essas modificações, principalmente, nos mitos cosmogônicos, onde cada Mitologia vê a criação do mundo de uma forma diferente, como os chineses, que acreditam que o mundo originou-se de um grande ovo, e os gregos, com o

9 A palavra “personagem” veio destacada pois veremos, posteriormente que as personagens

dos mitos eram conhecidas como entes sobrenaturais, e tratadas como divindades nas sociedades em que o mito estava “vivo”.

10 Entende-se, como mito primitivo, aquele que não sofreu nenhuma modificação em sua

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Caos, que originou a Gaia (Terra), o Tártaro (submundo embaixo da Terra), o Érebo (as trevas), a Nix (a noite)...

1.2 O que é o mito?

A tentativa da conceituação de “mito” é uma tarefa árdua, já que cada área – Psicologia, Sociologia, Filosofia, entre muitas outras – formulará um conceito mais próximo ao seu objeto de estudo. Na Literatura também há essa dificuldade, pois cada pesquisador que estuda o “mito”, acaba por criar uma nova conceituação ou por adaptar uma já existente. Segundo Barthes, em seu livro “Mitologias”, qualquer objeto mundano, quando dotado de uma

existência aberta, é capaz de ser relacionado com a história de determinada sociedade, obtendo, assim, uma significação, e podendo tornar-se um mito; para ele, portanto, “o mito é uma fala, (...) um sistema de comunicação, é uma mensagem” (2001, p. 131). Desse modo, e devido aos fins acadêmicos deste estudo, as conceituações propostas por Mircea Eliade, em seu livro “Mito e Realidade” (2004), e por Junito de Souza Brandão, em “Mitologia Grega –

volume I” (1987), são selecionadas como as mais adequadas, pois vem que

“(...) o mito é o relato de um acontecimento ocorrido no tempo primordial, mediante a intervenção de entes sobrenaturais” (BRANDÃO, 1992, p. 35), e que

o mito conta uma história sagrada; ele relada um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do ‘princípio’. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entres Sobrenaturais, uma realidade passou a existir. (ELIADE, 2004,p. 11)

Dois elementos fundamentais do mito são o tempo primordial e a presença dos entes sobrenaturais, já que dão a ele toda a carga sagrada que carregam. O tempo primordial é o tempo sagrado, das origens, no qual o mito se desenrolou. Ao contrário de qualquer narrativa, o mito é atemporal por não apresentar marcas de tempo, sendo, assim, capaz de romper as barreiras do tempo e perdurar por toda a eternidade. Brandão explica que

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segurança de que ele é capaz de abolir o passado, de recomeçar sua vida e recriar seu mundo. O profano é o tempo da vida; o sagrado, o ‘tempo’ da eternidade. (1992, p. 40)

Os entes sobrenaturais, como dito anteriormente, são as personagens dos mitos que, seja por meio de sua inteligência, astúcia, sabedoria, ou por intermédio dos deuses, fizeram possível que o homem vivesse no mundo como ele era; foram os atos dos entes sobrenaturais que determinaram como o homem da sociedade arcaica deveria agir. Segundo Eliade,

(...) o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do ‘princípio’. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos entes sobrenaturais, uma realidade passou a existir. (...) Os personagens dos mitos são os entes sobrenaturais. Eles são conhecidos sobretudo pelo que fizeram no tempo prestigioso dos ‘primórdios’. (1992, p.11)

Por carregarem um caráter sagrado, os mitos não podiam ser entoados por qualquer pessoa e em qualquer situação; para tal, existiam os rituais, celebrações onde pessoas instruídas e com conhecimento religioso reproduziam os mitos para os iniciados, os únicos permitidos a ouvi-los, pois se acreditava que

rememorando os mitos, reatualizando-os, renovando-os por meio de certos rituais, o homem torna-se apto a repetir o que os deuses e os heróis fizeram ‘nas origens’, porque conhecer os mitos é aprender o segredo da origem das coisas (...) (BRANDÃO, 1992, p. 39).

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“encenação” do mito ocorria não só para manter vivas as crenças de uma sociedade – função esta, talvez, inconsciente –, mas também porque acreditava-se que, por meio da narração do mito, seria possível alcançar os mesmos feitos obtidos pelos entes sobrenaturais, uma vez que “(...) conhecer a origem de um objeto, de um animal ou planta, equivale a adquirir sobre eles um poder mágico, graças ao qual é possível dominá-los, multiplicá-los ou reproduzi-los à vontade” (BRANDÃO, 1992, p. 19).

Ainda no que diz respeito ao conceito de mito, há duas nomenclaturas muito usadas para dividi-los: literários e primitivos. Segundo André Dabezieis11, a modernidade faz mau uso da palavra “mito”, associando-a a qualquer fato que é julgado importante, ou até mesmo a uma estória cuja moral seja considerável por seus leitores; e, até o século XVIII, tudo o que fugia da realidade cristã pregada pela Bíblia era visto como um mito, retomando, assim, a questão “pagão x cristão”.

Os mitos primitivos, conforme explicado anteriormente, são os mitos em sua essência, possuidores de carga mítica-religiosa e regentes dos costumes das sociedades arcaicas, “(...) eram de preferência estáticos, impunham-se ao homem, e ao mesmo tempo o tranquilizavam em face de um universo no seio do qual ele se encontrava como que imerso” (BRUNEL, 2005, p. 733).

Os mitos literários, por sua vez, são formados pela incorporação do mito primitivo na Literatura. O tema, presente nos mitos primitivos, assim como seu enredo, são utilizados nas obras literárias, não como são apresentados em sua essência, mas sim adaptados à contemporaneidade, sofrendo, desta forma, um rebaixamento, já que perdem o teor sagrado que continham. Para Dabezieis, não basta considerarmos a atualização do mito em uma obra literária, mas também toda a intenção de fazê-la:

É preciso que se parta de uma espécie de escala dos níveis de interpretação de uma obra: primeiro, o que o autor quis fazer da sua versão do mito, ou seja, em que e por que ele inova; em seguida, o que a época e a mentalidade coletiva expressam através de suas intenções (ou de seu inconsciente); por fim, o que, do esquema permanente do mito, passa através da ‘atualização’ representada pelo novo texto. (In: BRUNEL, 2005,

p. 735)

11DABEZIEIS, André. Mitos primitivos a mitos literários. In: BRUNEL, Pierre (org). Dicionário de

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Assim, a origem do mito literário acaba sendo justificada pelo fato de o mito, em si, ser uma narrativa, e nada mais adequado do que a Literatura para retratá-lo e mantê-lo “vivo” mediante suas atualizações.

1.3 O mito de Orfeu12

Orfeu, que teve sua origem atribuída à Trácia, era filho do rei Eagro13 com uma das nove musas, Calíope, cujo nome, em grego, significa “(...) a que tem ‘uma bela voz’” (BRANDÃO, 1992, p.178), estando, portanto, relacionada à música e a poesia, como o filho. Em algumas versões, como a proposta por Genest, em seu livro “As mais belas lendas da Mitologia” (2005),

Orfeu tinha um irmão, chamado Lino, filho de Apolo com a musa da dança, Terpsícore, considerado o inventor dos versos líricos e das canções, e o responsável por dar a noção de ritmo e melodia ao irmão, Orfeu. Músico nato, tocador da lira, Orfeu tinha o poder de encantar a todos e a tudo com sua música e, devido a esse dom musical, diz-se que foi Orfeu quem aumentou para nove o número das cordas da cítara, como uma homenagem às nove musas, senão ele quem foi o próprio criador deste instrumento musical, possibilitando que, em algumas versões do mito, Orfeu tocasse a cítara ao invés da lira, como se pode ver no IV canto das Geórgicas, “(...) Orfeu,

aliviando seu doloroso amor com sua lira côncava (...)” (SANTOS, 2007, p. 106), e no Dicionário mítico-etimológico da Mitologia Grega, “sua maestria na

cítara e a suavidade de sua voz (...)” (BRANDÃO, 1992, p. 196). Participou da expedição dos Argonautas e nela teve papel muito importante, pois, por meio da música, foi capaz de encantar as árvores para que se sacrificassem e

12 Para este corpus, foi escolhida a versão do mito de Orfeu presente no “IV Canto das

Geórgicas”, pois a voz vergiliana retrata poeticamente o mito, e traz as questões da catábase e

anábase, tão importantes para a análise dos corpora.

13

Há versões, como a Quarta Pítica, de Píndaro, e análises feitas por estudiosos, como Junito

Brandão, onde Orfeu não é filho do rei Eagro, e sim do deus Apolo, mestre da lira. Ao ser visto como filho de um deus, Orfeu “(...) designa a figura mítica do Poeta e do mestre do encantamento” (SANTOS, 2007, p. 57). Devido à intertextualidade que será analisada entre

este mito e o filme Coraline e o Mundo Secreto, escolheu-se a versão cuja descendência é

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tornassem-se material de construção do navio da expedição, os rochedos para que permitissem a passagem do navio, e as Sereias, para que estas não fossem capazes de encantar os marinheiros.

Assim que regressou da expedição, Orfeu casou-se com a ninfa Eurídice, mas teve pouco tempo para aproveitar o matrimônio, pois a noiva fora morta por uma picada de cobra, (...) no dia da cerimônia (...) (GENEST, 2005, p. 1226), quando fugia, pelos campos, do apicultor Aristeu, que desejava tê-la para si. Desolado com a notícia, Orfeu decidiu ir até os Infernos – Hades – para resgatar a amada. Sua jornada pelo resgate iniciou-se com o encontro com Caronte - o barqueiro – cuja função era conduzir as almas dos mortos ao Hades. Segundo Brandão, somente entravam no barco de Caronte as almas “(...) cujos corpos houvessem recebido sepultura (...), e mediante pagamento de um óbulo14(...)” (1992, p. 188), e que, “(...) em vida, ninguém penetrava em sua barca, a não ser que levasse (...) um ramo de ouro colhido na árvore sagrada de Core ou Perséfone” (BRANDÃO, 1992, p. 188), impossibilitando, portanto, o embarque e a condução de Orfeu. Almejando o reencontro com sua amada, Orfeu, munido de sua sabedoria e de sua música, encantou Caronte com sua lira, fazendo com que este o conduzisse até os Infernos.

Ao chegar aos portões do Hades, Orfeu deparou-se com o cão Cérbero, o monstro “(...) dotado de três cabeças, cauda de dragão, pescoço e dorso eriçados de serpentes” (BRANDÃO, 1992, p. 243) que guardava a entrada do Hades para que nenhuma alma viva o penetrasse e, se acaso o fizesse, não permitia sua saída. Novamente, utilizando-se de seus dons musicais, Orfeu conseguiu ultrapassar mais essa barreira, encantando o monstro. Além de Caronte e Cérbero, durante a jornada, Orfeu encantou outras personagens do mundo de Hades, como narrado no IV Canto das Geórgicas:

“(...) a roda de Ixião parou de girar, o rochedo de Sísifo deixou de rolar, Tântalo esqueceu a fome e a sede, e as Danaides deixaram o eterno trabalho de encher os tonéis sem fundo” (SANTOS, 2007, p. 58).

14Óbulo é o pagamento que deveria ser dado a Caronte, para que este levasse a alma até o

Hades. Este pagamento era feito por meio de uma moeda colocada na boca do sepultado, já

que, em grego, moeda significa “(...) o símbolo da imagem da alma, porque esta traz impressa

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Já diante de Plutão e Perséfone, deuses daquele reino, pediu para que devolvessem sua amada Eurídice. Tocados pela música encantadora de Orfeu e por seu sofrimento, esses deuses infernais permitiram que o músico voltasse ao reino dos vivos com sua amada, estabelecendo, contudo, uma condição: “(...) ele seguiria à frente e ela lhe acompanharia os passos, mas, enquanto caminhassem pelas trevas infernais, (...) Orfeu não poderia olhar para trás (...)” (BRANDÃO, 1992, p. 197) e, caso o fizesse, a perderia

novamente. Feliz com a oportunidade de ter sua Eurídice de volta, o músico aceitou a condição imposta por Hades e Perséfone, iniciando, assim, sua anábase. Durante a subida, quase alcançando o reino dos vivos, Orfeu, com medo de que sua amada não o estivesse seguindo e que tivesse sido enganado pelos deuses dos Infernos, não resistiu e olhou para trás, fazendo com que Eurídice dissesse:

Quem arruinou a mim, infeliz, e a ti, Orfeu? Que tão grande loucura? Eis que os cruéis destinos me chamam novamente para trás e o sono fecha meus olhos indecisos. E agora, adeus: sou levada rodeada por uma imensa noite (...). Não sou mais tua!’ Ela disse e, subitamente, sumiu-lhe dos olhos, como uma fumaça misturada no tênue ar. (IV Canto das Geórgicas

SANTOS, 2007, p. 107)

Quando se viu sem a amada pela segunda vez, e atormentado pela culpa de perda, Orfeu tentou retornar ao Hades, porém foi impedido por Caronte, o barqueiro, já que não conseguiu ludibriá-lo e encantá-lo com a sua música, como fizera outrora.

Nas reatualizações do mito, há várias versões que explicam o fim de Orfeu: em algumas ele foi bem sucedido, já que depois de ter conseguido resgatar sua amada com a permissão dos deuses infernais, não olhou para trás e a teve para sempre ao seu lado; em outras, Orfeu a perdeu e teve um final trágico. Dentre as versões funestas mais comuns, uma conta que, após retornar do Hades, o músico “(...) instituiu mistérios inteiramente vedados às mulheres. Os homens se reuniam com ele em uma casa fechada, deixando suas armas à porta” (BRANDÃO, 1992, p. 197); as Mênades15, enciumadas por

15Mênades: mulheres da Trácia, também conhecidas como

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não terem o amor de Orfeu, roubaram as armas dos homens e mataram a todos. E outra versão16 – e talvez a mais conhecida delas – Orfeu, depois de perder a amada novamente, “durante sete meses contínuos, chorou, só consigo mesmo, ao pé de uma grande rocha, nas margens do deserto Estrimão, e que contou estas desgraças sob as gélidas cavernas, amansando os tigres e atraindo os carvalhos com sua canção (...)” (SANTOS, 2007, p. 107). As Mênades, tomadas pelo encanto de Baco e sentindo-se desprezadas, esquartejaram Orfeu, despejando seus pedaços e sua cabeça no rio Hebro, e, “ao rolar da cabeça pelo rio abaixo, seus lábios chamavam por Eurídice e o nome da amada era repetido pelo eco nas duas margens do rio” (BRANDÃO, 1987, p. 143). Ainda nesta versão, “as musas, a quem Orfeu prestara tantos serviços, compadeceram-se dele e lhe deram uma sepultura ao pé do Olimpo. Recolheram sua cabeça e lira das águas e as conservaram na ilha de Lesbos” (GENEST, 2005, p. 227).

A presença de cada personagem no mito de Orfeu não é por acaso. Cada qual carrega sua história – seja por meio de seu próprio mito, da etimologia do nome, etc. –, e juntos contribuem para a construção do mito principal.

1.3.1 O episódio de Aristeu1718

Filho da ninfa Cirene com o deus Apolo, esse semideus é conhecido como “o apicultor” ou como “o pastor”, e seu nome significa, em grego, “muito bom”.

Depois de ter contribuído para a morte de Eurídice – já que era dele que ela fugia quando foi picada –, Aristeu teve todas as suas abelhas mortas “(...) por doença e por fome (...)” (SANTOS, 2007, p. 102). Desorientado ante a catástrofe, Aristeu decidiu procurar a mãe, que morava num rio,

16 Novamente, devido à análise que será realizada entre o mito e o filme, escolheu-se esta

versão para ser estudada.

17 A análise deste episódio ocorre porque, na versão vergiliana, o episódio de Aristeu se

encontra no mito de Orfeu.

18Neste trabalho, serão estudados somente os mitos de Orfeu e Hades. O episódio de Aristeu

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questionando-a sobre os motivos de seus infortúnios. Uma das ninfas, que morava com Cirene, ouvindo as lamentações de Aristeu, comunicou à mãe o ocorrido. Esta ordenou que as águas do rio se abrissem, permitindo a passagem do filho. Já no interior da morada das ninfas, Aristeu, encantado com tudo o que via, observava atentamente cada cômodo, até chegar ao quarto principal, onde foi recebido pela mãe com um banquete servido pelas outras ninfas.

Após ouvir as lamúrias do filho, Cirene o aconselhou a procurar “(...) um adivinho, o azul Proteu, que percorre o grande mar com seu carro puxado por peixes com duas pernas equinas” (SANTOS, 2007, p. 104), e o

instruiu como proceder para obter sua resposta do adivinho: primeiro, deveria esperar o momento em que o adivinho estivesse deitado e dormindo, depois, deveria amarrá-lo, com muita força, pois ele não daria a resposta sem antes transformar-se no mais terrível dos monstros; Aristeu deveria manter Proteu preso até que retornasse à sua forma original e desse a resposta almejada. A ninfa, então, escondeu o filho próximo à morada do adivinho, e com ele permaneceu escondida por uma névoa, a fim de auxiliar Aristeu caso ele precisasse.

Aristeu agiu como a mãe havia lhe aconselhado, até que Proteu, vencido, contou ao apicultor que seu infortúnio fora causado pelas Ninfas que, tristes pelo fim de Eurídice, causaram a morte de suas abelhas; depois desta revelação, o velho desapareceu no mar. Cirene, que estava próxima e a tudo ouvia, aconselhou o filho novamente, dizendo-lhe: “(...) apresenta oferendas pedindo paz e venera as indulgentes Napéias, pois elas darão o perdão a teus votos e abrandarão sua ira. (...) Oferecerás a Orfeu as papoulas do Letes (...); venerarás com uma ovelha imolada Eurídice (...)” (SANTOS, 2007, p. 108).

Após nove dias, Aristeu retornou ao local das oferendas e viu, nos animais que haviam servido de sacrifício,

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1.3.2 O mito de Perséfone e sua ligação com o Hades, Cérbero e Caronte

Filha de Zeus com Deméter, a deusa da vegetação, também é conhecida por Core – “(...) a semente do trigo lançada no seio da Mãe-Terra (...)” (BRANDÃO, 1986, p. 73) e, na óptica da mitologia romana, apresenta o nome de Prosérpina e Cora. Sempre muito ligada à mãe, passaram a ser conhecidas como “As Deusas”.

Por ser uma deusa de beleza estonteante, despertou interesse em Hades, irmão de Zeus, que decidiu que a teria de qualquer forma. Com a permissão de seu irmão, Hades planejou raptar Perséfone, e, em um dia em que ela colhia flores19, implantou um “(...) narciso ou um lírio às bordas de um abismo” (BRANDÃO, 1986, p. 290); quando a jovem aproximou-se para

colhê-lo, “(...) a Terra se abriu, Hades (...) apareceu e a conduziu para o mundo ctônio” (BRANDÃO, 1986,p. 290).

Ao saber do ocorrido com a filha, Deméter pôs-se a procurá-la por todo o mundo, por nove dias, até que obteve ajuda do deus Hélio20, “(...) o SOL, que tudo vê e não perde a hora (...)” (BRANDÃO, 1986, p. 217), que

contou-lhe que sua filha havia sido raptada por Hades. Inconformada com os deuses, decidiu abandonar o Monte Olimpo, escolhendo por permanecer no meio dos mortais até que tivesse a filha de volta. Na Terra, escondeu sua identidade e foi trabalhar como ama do filho do rei Céleo. No reino deste, pediu que lhe fosse preparada uma bebida mágica e entorpecente para que fizesse do bebê um jovem imortal. Uma noite, enquanto realizava os ritos, a rainha entrou em seu aposento, viu o filho participando de um ritual de iniciação, e gritou, fazendo com que a deusa Deméter se revelasse e pedisse, antes de deixar o reino de Céleo, que um templo em sua homenagem fosse construído, para que houvesse um lugar em que pudesse ensinar “(...) seus ritos aos seres humanos” (BRANDÃO, 1986,p. 291).

19Em algumas versões, como a proposta por Émile Genest et al, no livro “

As mais belas lendas da Mitologia”(2005), Perséfone colhia, especificadamente, narcisos.

20Na versão trazida por Émile Genest, “Deméter encontrou uma fonte, Aretusa, que apesar de

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Consumida pela saudade da filha, Deméter causou uma grande seca, que assolou a Terra, chamando a atenção de Zeus, que enviou vários mensageiros pedindo para que ela retornasse ao Monte Olimpo, obtendo sempre a mesma resposta, “(...) não retornaria ao convívio dos Imortais e nem tampouco permitiria que a vegetação crescesse, enquanto não lhe entregassem a filha” (BRANDÃO, 1986, p. 291). Com medo de que mais

nenhum vegetal pudesse ser cultivado, Zeus pediu ao irmão que devolvesse Perséfone, mas Hades, perverso e mal-intencionado, omitiu que sua prisioneira não poderia comer nada no reino dos mortos, pois “quem aí comesse fosse o que fosse não mais poderia regressar ao mundo dos vivos” (BRANDÃO, 1986,

p. 305). Como Perséfone jejuava desde que havia sido raptada, encontrou uma semente de romã e acabou por comê-la, causando a permanência eterna de Perséfone no mundo dos Infernos. Já que a deusa havia comido a semente de romã sem saber o real significado deste ato, foi estipulado que ela poderia retornar ao mundo dos vivos uma vez por ano, durante oito meses, e voltaria ao Hades por quatro meses. Daí atribui-se a origem do ciclo das plantas: o período em que a deusa se encontrava no mundo inferior está relacionado à época em que as vegetações morrem, pois não estariam sendo guardadas pela deusa; e o período em que se encontrava no mundo dos vivos, à época em que as vegetações crescem, amadurecem, e são colhidas. Ainda que o rapto de Perséfone tenha sido resolvido de uma forma benéfica para ambos os lados, tornou-se claro o porquê de o deus Hades ter sido o escolhido para reinar o mundo dos Infernos.

1.3.3 O mito de Hades

Embora haja várias versões de uma única etimologia para o nome “Hades”, a mais comum o relaciona com “terrível”, do grego, ou, do latim, “(...)

cruel, terrível, violento (...)” (BRANDÃO, 1986, p.311). Por ter esta derivação, o nome é dificilmente pronunciado, sendo, então, substituído por Plutão – que é

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o odiado de todos, não podendo, com esse nome, receber as honras devidas de um deus” (BRANDÃO, 1986, p.312).

Após a divisão do Universo em três, coube ao Hades o reino dos Infernos21, local responsável por receber e abrigar a alma de todos os mortos que fossem sepultados de acordo com os costumes gregos. Além de governar esse reino, Hades era responsável por evitar a entrada e permanência lá de qualquer ser vivo; para tal, contava com a ajuda de Caronte e Cérbero. Caronte, como visto no mito de Orfeu, era o barqueiro encarregado de transportar as almas dos mortos “(...) para além dos quatro temíveis rios infernais, Aqueronte, Cocito, Estige e Piriflegetonte” (BRANDÃO, 1986,p. 318).

Cérbero, como visto no supracitado mito, era o cão de três cabeças responsável por vigiar a entrada e saída do Hades, embora fosse mais rigoroso com a saída de alguma alma do reino dos Infernos.

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CAPÍTULO 2 –

Coraline e o Mundo Secreto

O filme Coraline e o Mundo Secreto (2009), dirigido por Henry

Selick, foi baseado no romance Coraline, escrito pelo autor britânico Neil

Gaiman em 2002. Temos como personagem principal do filme Coraline Jones, uma menina que acabou de se mudar com os pais para um novo apartamento localizado no Palácio Rosa, uma antiga grande casa que fora dividida em apartamentos para poder abrigar mais de uma família ao mesmo tempo. Assim que acabou de mudar-se, Coraline decidiu explorar o jardim da nova casa, onde conheceu Wybie, neto da dona do Palácio Rosa. Além de ser um menino com uma grande imaginação, Wybie foi o responsável por apresentar o Gato para a menina e por lhe dar de presente uma boneca encontrada no baú de sua avó, que curiosamente apresentava as mesmas características físicas de Coraline e as mesmas roupas usadas por ela, levando-a a ser, portanto, apelidada de “Coralininha” 22.

Entediada por não ter o que fazer, Coraline exigia a atenção dos pais, que trabalhavam em seus computadores para terminar o catálogo de Botânica que escreviam juntos. O pai decidiu, então, dar-lhe uma tarefa: explorar a nova casa, contando quantas portas, janelas e elementos azuis existiam ali. Em sua exploração, acompanhada por sua nova amiga, a boneca, encontrou 12 janelas que vazavam, 12 bichos nojentos e um aquecedor enferrujado. Ao entrar na sala de estar, viu um quadro que retratava um menino usando roupas azuis e encarando seu sorvete caído no chão, quatro janelas e nenhuma porta; porém, ao pegar sua boneca, que repousava em cima da mesa, Coraline descobriu uma porta pequena escondida atrás do papel de parede. Instigada pela curiosidade, a menina pediu para que a mãe abrisse a porta; vencida pela insistência da filha, destrancou a porta, que se abriu para uma parede de tijolos. A Sra. Jones lhe explicou que aquela porta havia sido trancada após a divisão do casarão em apartamentos, causando em Coraline uma grande decepção, já que esperava que a porta a levasse a algum lugar inexplorado.

22 No original, em Inglês, a boneca chama-se “Little Me”, que em Português corresponde a

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Quando Coraline adormeceu, sonhou com a portinha se abrindo, com pequenos ratinhos saindo de dentro dela, e ouviu um barulho vindo debaixo de sua cama. Ao acordar para descobrir o que era, viu o ratinho pulando e correndo, o que a levou a segui-lo até a sala de estar, onde ele entrou pela pequena porta. Coraline, então, a abriu e descobriu um comprido e escuro túnel azul e, mais uma vez, curiosa, engatinhou até o fim do túnel para descobrir até onde este a levaria.

Assim que atravessou o corredor, confusa, percebeu que estava em casa, embora ali houvesse algumas diferenças em relação à sua casa real, como, por exemplo, o quadro que antes tinha a gravura de um menino triste encarando a bola de sorvete no chão, agora apresentava o mesmo menino, feliz e tomando seu sorvete. Ao sentir o cheiro de comida, chegou à cozinha, onde viu sua mãe cantando e cozinhando. Quando lhe perguntou por que cozinhava tarde da noite, a mulher se virou e revelou ser sua outra mãe, já que se assemelhava fisicamente à mãe real da menina, com a diferença de ter grandes botões negros no lugar dos olhos. Além de outra mãe, Coraline tinha

outro pai e outros vizinhos, que faziam de tudo para agradá-la. Embora se divertisse no outro mundocom os supostos pais e com as maravilhas criadas pela outra mãe para encantá-la, Coraline percebeu o horror desse mundo quando lhe pediram para costurar em si própria botões no lugar de seus olhos; ao rejeitar o pedido, não conseguia mais voltar para sua vida real, ficando presa no outro mundo e de castigo dentro do espelho. Ali encontrou as almas de três outras crianças que cederam aos encantos do outro mundo e abandonaram suas vidas para viver com a outra mãe. Nesse episódio, as crianças contaram que era através dos olhos das bonecas, que estranhamente se assemelhavam a elas, que a outra mãeespionou suas vidas e foi capaz de recriá-las no outro mundo, melhorando os aspectos que não as agradavam, como falta de atenção dos pais, companhia, diversão; contaram, também, que a outra mãe roubou os corações, as vidas das crianças e depois as abandonou para poder procurar por novas vítimas. Felizes por terem visto que Coraline ainda não tinha botões, apelaram para que a menina, ao tentar derrotar a outra mãe, encontrasse seus olhos que estavam espalhados pelo

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Coraline só conseguiu sair do castigo e voltar para seu mundo com a ajuda do outro Wybie, que se rebelou contra a outra mãepor ela o ter proibido de contar qualquer coisa referente ao outro mundo à menina. Ao abrirem a portinha que levava ao mundo real, o túnel já não era mais o mesmo: sujo, com teias de aranha, objetos perdidos, assustador. Coraline insistiu para que o outro Wybie voltasse com ela para casa, mas este negou o pedido, revelando sua real essência: ser feito de areia, como todos os outros personagenseram feitos.

Já em casa, a menina não encontrou seus pais verdadeiros, e decidiu, então, procurá-los pelo casarão e pela vizinhança. Ao chegar à casa das vizinhas, elas lhe deram um presente que julgavam ser necessário para encontrar os pais desaparecidos: uma pedra triangular com um círculo no meio, que servia, segundo as atrizes, para a proteger de coisas ruins e para encontrar coisas perdidas. Triste, sozinha e chorando, Coraline adormeceu na cama dos pais até ser acordada pelo Gato, que a guiou até o espelho da sala, que refletia os bonecos de seus pais, com botões no lugar dos olhos, desvendando, assim, o paradeiro dos pais e seu sequestrador.

Enfurecida, pegou uma bolsa, onde colocou algumas ferramentas – como alicate, tesoura –, a pedra triangular, uma vela e se dirigiu para o outro mundo, acompanhada pelo Gato. No caminho, o animal a aconselhou a desafiar a outra mãe, como uma forma de talvez conseguir libertar os pais verdadeiros.

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teatro, os ratos do circo e os outros vizinhos, que agiam sob o comando da

outra mãe e a atacavam. Além de atrapalharem, esses empecilhos tentavam roubar a pedra triangular que Coraline carregava, pois era com seu auxílio que a menina via onde os olhos das crianças estavam escondidos23. Conforme conseguia resgatar os olhos, o outro mundo ia se autodestruindo, perdendo sua cor – tornando-se preto e branco –, e muitos de seus personagens se transformavam em grãos de areia, revelando serem bonecos comandados pela

outra mãe.

Mesmo já tendo encontrado os olhos, ainda faltava descobrir o paradeiro dos pais; então, a menina retornou à outra casaacompanhada pelo Gato, e viu a real aparência da outra mãe: magra, com o rosto cheio de veias, quatro pernas e com o corpo semelhante ao de uma aranha. Contando com sua astúcia e com a ajuda dos fantasmas das crianças, Coraline enganou a

outra mãe, dizendo que sabia que seus pais estavam escondidos no túnel que ligava os dois mundos. Enquanto a outra mãe procurava a chave para abrir o túnel, o Gato mostrou a menina que seus pais estavam escondidos no globo de neve que estava em cima da lareira. Enquanto isso, a outra mãe se dirigia à portinha para abri-la, impedindo a passagem e vangloriando-se por Coraline ter perdido o desafio, já que seus pais não estavam no túnel. Ao ver a agulha e os botões na mão da outra mãe, a menina arremessou o Gato nos olhos dela. O animal a arranhou e retirou seus botões, fazendo com que ela deixasse de enxergar e abrisse passagem para o túnel. Quando percebeu que Coraline fugia com os olhos das crianças e com o globo de neve, a outra mãe

transformou a sala onde estavam em uma teia de aranha e, graças a sua audição sensível, tentava perseguir a menina, em vão, pois ela conseguira fugir. No túnel, Coraline tentou fechar a porta, mas a outra mãe a impediu. Vendo-se acuada e sem forças, a menina pediu ajuda aos espíritos das crianças, que fecharam e trancaram a porta, prendendo a mão da outra mãe

para dentro do túnel e permitindo que Coraline e o Gato voltassem para o mundo real.

23 Ao olhar através do círculo da pedra triangular, o “outro mundo” tornou-se preto e branco,

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Já em casa, Coraline encontrou seus pais verdadeiros cobertos de neve, como se tivessem estado dentro de um globo de neve, e tentou contar sua aventura a eles, que não lhe deram muita atenção por estarem pensando nos preparativos de uma festa no jardim, como comemoração por terem conseguido terminar o catálogo de plantas. Na hora de dormir, Coraline colocou os olhos das crianças embaixo de seu travesseiro, e, em seu sonho, os espíritos das crianças a agradeceram e a alertaram que ainda corria perigo, uma vez que a outra mãevoltaria para roubar a chave da portinha. No meio da noite, elaborou um plano, no qual fingiria um piquenique, próximo ao poço, com suas bonecas, afim de atrair a outra mãe e tentar acabar com suas malvadezas. Com medo, dirigiu-se ao poço do jardim do casarão, e fora seguida pela mão da outra mãe, que conseguiu sair do túnel para resgatar a chave que estava pendurada no pescoço da menina. Quando Coraline estava prestes a atirar a chave no poço, a mão agarrou a chave e acabou por arrastar a menina para longe do poço, até que Wybie, em sua bicicleta, salvou Coraline. A mão, por sua vez, assustou o menino e fez com que ele caísse no poço, se segurando somente com uma mão, na borda. Coraline tentou, em vão, prender a mão da outra mãe com seu cobertor, e Wybie, que conseguira sair do poço, atirou uma pedra e a destruiu. A menina embrulhou a mão com o cobertor, amarrando-o com o cordão e a chave, atirou-a no poço e tampou-o.

O fim da aventura de Coraline aconteceu quando a menina, na festa de seus pais, decidiu narrar sua história para a avó de Wybie, dona do casarão, que teve sua irmã desaparecida na época em que eram crianças e moravam na casa.

2.1 A adaptação do livro Coraline

Como citado anteriormente, o filme Coraline e o Mundo Secreto é

uma adaptação do livro Coraline. Esse diálogo entre duas formas de linguagem

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Quando um livro é adaptado, torna-se comum ouvir comentários dizendo que a obra literária é melhor que o filme. Essa questão já vem sendo estudada há tempos, pois muito se discute acerca das adaptações que os livros sofrem para tornarem-se obras fílmicas, já que elementos presentes na narrativa são alterados, e até mesmo supridos, na nova versão, perdendo, assim, muito do “original”, e levando estudiosos de obras literárias e amantes da Literatura a questionarem-se quanto à viabilidade das adaptações. Essas modificações, que são os acréscimos, as reduções, as transformações e deslocamentos, ocorrem porque “(...) cada linguagem tem a sua especificidade semiótica (...)” (BRITO, 2006, p. 10) diferente; por exemplo, se um romance de 500 páginas fosse adaptado exatamente como é narrado pelo autor, o filme teria muitas horas de duração e um custo exorbitante, não sendo, assim, viável para quem o produz e cativante o suficiente para que o espectador o assista por muito tempo.

2.1.1 Reduções

A redução é o “(...) procedimento mais freqüente no processo adaptativo (...) porque a linguagem verbal é mais extensa, prolixa, analítica, que a icônica” (BRITO, 2006, p. 12). Assim aconteceu de Coraline para

Coraline e o Mundo Secreto. A redução mais comum é a relacionada com a

descrição do espaço da casa, já que no livro houve a descrição do Palácio Rosa (a casa) e a explicação que ele não era toda da família de Coraline, mas sim que ele fora dividido para abrigar várias famílias ao mesmo tempo, inclusive com a menção de haver outro apartamento24vazio, por ainda não ter sido alugado para outra família. Houve, também, a aparição dos outros moradores, que trocavam, a todo instante, o nome da menina – de Coraline para Caroline –: as vizinhas, Ms. Spink e Ms. Forcible, com seus cachorros, e o vizinho de baixo, Mr. Bobinsky, um louco que ensinava ratos a cantar. O jardim

24 Quando a mãe de Coraline destrancou a porta do “outro mundo” e revelou a parede de

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foi enfocado, mostrando uma quadra de tênis com cerca furada, um roseiral antigo com rosas murchas, uma pedreira e um “anel de fadas” (um círculo constituído por pedras e cogumelos marrons que cheiravam ruim se fossem pisados). Essa descrição, quando passada para a obra fílmica, não ocorreu, pois se iniciou com a mudança da menina e sua família para o Palácio Rosa; o jardim não foi enfatizado, mostrando somente seu aspecto de velho e sem vida (sem o roseiral, a quadra ou a pedreira), e as figuras dos vizinhos apareceram, mas não foram apresentados e nem houve ênfase na troca dos nomes. A supressão do quarto dos pais também ocorreu no filme, pois, no livro, foi no momento em que estava no quarto dos pais que Coraline ouviu o barulho do é ratinho e decidiu segui-lo até a porta.

Outro fato importante suprimido foi a aracnofobia de Coraline, que justificou o medo enorme que a menina sentia quando via a outra mãe

transformar-se em uma aranha. Logo após a ida ao quarto de seus pais, Coraline ouviu um barulho estranho e se questionou se o que ouviu não passava de um sonho, até algo – menos que uma sombra – correr corredor abaixo. Quando viu esta “sombra”, a menina esperou que não fosse uma aranha, devido ao medo que sente desses animais e, ao aproximar-se da sala, o barulho se transformou na sombra de uma mulher gigante e magra, saindo debaixo do sofá, deslizando pelo carpete e se dirigindo ao canto mais distante da sala. Com medo, Coraline acendeu a luz, mas não viu nada naquele canto, exceto a porta, que se encontrava aberta. Mais assustada e curiosa, pois tinha certeza que sua mãe havia trancado aquela porta, decidiu abri-la, mas deparou-se com uma parede de tijolos. Decepcionada, fechou a porta, apagou a luz e voltou a dormir. Em seu sonho viu, vindas de todos os lugares, sombras escuras, com olhos vermelhos e dentes amarelos afiados, que cantavam uma música assustadora para a menina. Em Coraline e o Mundo Secreto, a menina

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menina, se escondeu no sofá e, ao perceber que Coraline havia chegado à sala, entrou na porta.

Por ser um filme voltado para crianças, o elemento grotesco25 presente no romance foi amenizado. Assim, a descrição26 feita pelo narrador, da outra mãe, quando esta mostrou seus olhos de botões, despertou uma sensação de desconforto, pavor, choque e asco, revelando, então, a presença do grotesco na obra e causando, na imaginação do leitor, a formação de uma figura assustadora e estranha por apresentar características que não são comuns aos serem humanos. Na obra fílmica, toda a ambientação em que esta

outra mãese localizava, suas vestimentas e sua aparência amenizaram essas sensações; ela era mais bonita, mais engraçada, e transformou os defeitos da mãe real em qualidades, como, por exemplo, o fato da mãe real não saber cozinhar e não ter tempo para brincar com a filha, enquanto a outra mãe era capaz de fazer tudo isso. No livro, vemos que a outra mãe já era grotesca desde a primeira vez em que Coraline a viu, porém, no filme, essa transformação, de bela, atenciosa, para feia e amedrontadora, foi gradual, a fim de não assustar completamente o espectador.

Quando Coraline resolveu resgatar as almas, muito do horror e grotesco que foram enfatizados no romance se perderam na adaptação, devido à adequação que o filme sofreu para poder ser exibido para todas as faixas etárias. Um exemplo claro desta perda ocorreu quando a personagem principal foi instigada pela outra mãe a procurar uma das almas no apartamento vago que havia no casarão. A descrição deste apartamento situou o leitor em um ambiente sombrio, preparando-o para uma possível cena de horror:

Dentro, não havia móveis, apenas os lugares que os móveis haviam ocupado um dia. Não havia decoração sobre as paredes (...); Era tão grande o silêncio, que Coraline julgava poder ouvir as partículas de poeira flutuando no ar. Coraline percebeu que tinha muito medo que algo pulasse em cima dela e começou a assobiar. Pensou que assobiando seria mais difícil de as coisas pularem em cima dela. (GAIMAN, 2003, p. 105)

25Toda a parte teórica e a análise acerca do grotesco serão tratadas no capítulo três.

26“(...) exceto por sua pele ser branca como papel. Exceto por ela ser mais alta e mais magra.

Exceto por seus dedos serem muito compridos e eles nunca pararem de se mexer, e por suas

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