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O duplo em Coraline e o Mundo Secreto

Capítulo 4 – A duplicação da vida de Coraline

4.4 O duplo em Coraline e o Mundo Secreto

Durante toda a obra fílmica, houve muitas cenas onde a presença do duplo se manifestou; e a primeira delas ocorreu logo no início, quando a outra mãe elaborou e costurou a boneca “Little Me” (figura 52). O espectador só se tornou capaz de identificar a semelhança entre a boneca e a personagem principal quando Wybie deu a boneca à menina, já que até mesmo Coraline ficou intrigada com a similaridade que o brinquedo apresentava de si própria (figuras 53 e 54).

Figura 53: Bilhete deixado por Wybie: “Ei, Jones! Olha só o que eu encontrei no baú da minha vó. Parece familiar? Wybie” (tradução nossa)

Essa primeira manifestação do duplo foi homogênea, com uma aceitação amistosa, uma vez que a menina passou a brincar com a boneca e até a carregá-la a todos os lugares. Além de representar os olhos da outra mãe na vida de Coraline, o elemento “boneca” não podia ter sido melhor escolhido por estar relacionado ao duplo, pois Freud, em sua supracitada obra, afirma que o estranho é despertado quando algo que não tem vida é muito semelhante a um ser vivo, assim como acontece com as crianças, que criam uma forte identificação com bonecas, tratando-as como seres vivos por se assemelharem a bebês ou a outras crianças, estabelecendo, assim, um processo de identificação. No momento em que ganhou o brinquedo de seu vizinho, Coraline estranhou a semelhança, mas assim que conheceu o outro mundo, entendeu que aquela boneca representava seu futuro naquele lugar: caso costurasse em si própria os botões, se tornaria um joguete nas mãos da outra mãe, tendo que fazer tudo o que ela pedisse.

Ao solicitar à menina que costurasse, no lugar de seus olhos, os botões, a obra fílmica nos remete a duas questões: a “cegueira física” e a “cegueira psicológica” de Coraline.

É através dos olhos que vemos e percebemos o mundo e tudo o que o compõe. Os olhos, o olhar, identificam uma pessoa, e retratam sentimentos e pensamentos que não foram exteriorizados por palavras. São tão importantes que encontram destaque na Literatura, como os “olhos de ressaca”, de Capitu43 e a cegueira branca, que tomou todo o mundo em Ensaio

sobre a cegueira, de José Saramago. Ficar cego, portanto, não significa

somente deixar de ver, mas também fechar-se para si, como se ninguém mais pudesse ver a si mesmo, como uma forma de interiorização. Freud atesta que “(...) o medo de ferir ou perder os olhos é um dos mais terríveis temores das crianças. Muitos adultos conservam uma preensão nesse aspecto, e nenhum outro dano físico é mais temido por esses adultos do que um ferimento nos olhos” (1986, p. 289). Além de Coraline ser criança e já apresentar esse temor, ao costurar os botões e perder os olhos, estaria, também, perdendo sua vida e a convivência com seus pais reais, e, finalmente, sucumbindo às maldades e

vontades da outra mãe, ignorando a si própria e fechando-se dentro do outro mundo.

Outra manifestação do duplo é o outro mundo e as outras personagens. Como vimos no capítulo três, houve duas seleções de cores contrastantes, uma para representar para o mundo real e outra para o outro mundo. Essas cores serviram não somente para mostrar ao espectador a diferença entre um mundo e outro, mas também para expressar o sentimento de Coraline em relação a esses dois ambientes: como a menina estava cansada de seu mundo, ele foi apresentado com cores frias, escuras, tristes; já o outro mundo, considerado um espaço melhor, mais interessante, engraçado, continha cores chamativas, fortes e vibrantes, exteriorizando, assim, as emoções da menina.

Esse duplo heterogêneo também se manifestou nas personagens. As do mundo real estavam sempre mal humoradas, ocupadas com suas tarefas rotineiras, vestiam roupas comuns e nunca tinham tempo para dar atenção a Coraline. As do outro mundo, em contrapartida, viviam sorridentes, fazendo coisas instigantes e interessantes aos olhos de uma criança (como aprender a tocar piano com luvas de robô, atuar em um teatro cuja plateia era constituída por cães, comandar um circo de ratos saltadores).

O grande questionamento proveniente da manifestação do duplo é a razão pelo qual ele surgiu na obra fílmica. Sabemos que os pais de Coraline sempre estavam muito ocupados em seus trabalhos, não dedicando tempo suficiente e necessário à filha. Dessa forma, carente de atenção, carinho e afeto, Coraline passou a ver a si própria como uma órfã. Berg, em sua tese, afirma que a orfandade ocorre com “(...) crianças privadas do convívio contínuo de, no mínimo, uma das figuras do conjunto parental (...)” (2007, p. 21). A falta de convívio com os pais levou a menina a criar, ou a encontrar, o outro mundo, e a nele transitar, como uma forma de preencher o vazio que sentia devido à falta dos pais. Berg também cita Corso e Corso, que afirmam que “(...) o medo é uma das sementes privilegiadas da fantasia e da invenção” (2006, p.21); desse modo, o medo que Coraline sentia de ficar sozinha lhe deu suporte suficiente para que conhecesse o outro mundo e até tendesse a nele permanecer; foi o medo de solidão que fez com que a menina visse nessa outra realidade um ambiente melhor.

Freud comenta que, em alguns casos de neurose, os pacientes também criam outra realidade (realidade psíquica), relacionada à fantasia, para saciarem suas necessidades internas, e muitas vezes fazem dessa outra realidade a sua própria, da mesma forma como ocorreu com Coraline, que creditou, no início, uma grande importância ao outro mundo:

(...) os sintomas neuróticos não estão diretamente relacionados com fatos reais, mas com fantasias impregnadas do desejo, e que, no tocante à neurose, a realidade psíquica era de maior importância que a realidade material. (1986, p. 48)

De acordo com Cunha, “a natureza do duplo (...) [ocorre] entre o reconhecimento e a negação do real” (2012), portanto, o outro mundo é criado pela outra mãe, com todas as suas características marcantes – cores chamativas, aventuras, companhia, amor parental –, para que a menina o encontrasse e não sentisse mais a falta de seus pais.

A partir do momento em que a menina permaneceu no outro mundo, a outra mãe lhe impôs a condição de costurar os botões e até trancou-a no espelho, onde pode conhecer a história horripilante das três crianças. Assim, podemos também dizer que o outro mundo passou a ser “desencontrado” para que Coraline pudesse restabelecer sua própria identidade e aceitar sua família. Após conhecer a verdade por trás da magia do mundo criado pela outra mãe, Coraline considerou que, perante a condição que lhe fora imposta e ao futuro que a aguardava, seus pais não eram figuras ruins, como ela havia os rotulado, e que eles só não estavam lhe dedicando tempo suficiente devido ao trabalho, que em breve seria terminado; essa aceitação foi tão grande que impulsionou a menina a resgatar seus pais do domínio da outra mãe.

Essa aceitação inferiu diretamente no desfecho da narrativa. Segundo as análises feitas por Bakhtin acerca das obras de Dostoiéviski (2010), a personagem não é só composta por seus traços externos e caracterização, mas também pela sua autoconsciência, seu ponto de vista sobre si mesma: “(...) não importa o que a sua personagem é no mundo mas, acima de tudo, o que o mundo é para a personagem e o que ela é para si mesma” (BAKHTIN, 2010, p. 52). Antes desta proposta de Dostoiéviski, a personagem era vista pela ótica do autor, com a imagem e pensamentos que ele exprimia sobre ela; nesta visão, o que era levado em conta era como o

mundo enxergava esta figura. Com Dostoiéviski, a forma como a personagem vê seu mundo, como este influi sobre ela e como ela enxerga a si mesma. Por conseguinte, o que passou a ter relevância

(...) não é o ser determinado da personagem, não é a sua imagem rígida, mas o resultado definitivo de sua consciência e autoconsciência, em suma, a última palavra da personagem sobre si mesma e sobre seu mundo (BAKHTIN, 2010, p. 53) Desta forma, o mundo em que a personagem vive e os elementos pertencentes a ele também interferem na construção de sua autoconsciência, assim como acontece em Coraline e o Mundo Secreto, no qual Coraline foi motivada a vencer a outra mãe não só pelo amor que sentia por seus pais, mas também pelos elementos externos, como as cores do mundo real e do outro mundo, as personagens do outro mundo e suas maravilhas, o Gato, entre outros, que a auxiliaram a reconhecer que sua família, independente dos problemas que pudesse apresentar, era ideal para si.

Com esse reconhecimento, o mundo real tornou-se mais colorido (figura 55), e o outro mundo se destruiu (figura 56, 57), perdendo suas cores alegres, revelando personagens más, acabando em pó, e pondo um fim ao duplo. À luz de Cunha, a manifestação do duplo tem seu fim com “(...) a morte, que vem aniquilar o Outro, o seu DUPLO (...) obrigando o ‘eu’ a anular metafisicamente o seu DUPLO (...) [levando-o à] sua não-existência” (2012). Com isso, não somente o duplo do mundo real e da família de Coraline teve um fim, mas também houve um amadurecimento da personagem, que deixou de ser sonhadora, utópica, para ser realista e aceitar seus pais.

Figura 55: O jardim do mundo real, agora colorido e com flores

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