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As missas de Furio Franceschini revelaram a crença do compositor em um referencial sacro de composição. A eleição desse referencial seria a única solução possível para o impasse da música sacra diante da modernidade?

A Igreja, como um sistema autopoiético teorizado por Luhmann, fez escolhas entre as muitas possibilidades que o meio lhe apresentou ao longo do século XIX. Este é o ponto que melhor explica a música litúrgica do presente a partir do estudo das missas de Furio Franceschini: a Igreja teve diversas opções diante de si ao tempo do Concílio Vaticano II, desde a manutenção da situação até a radical modificação que se operou no Brasil com a leitura que a CNBB fez dos documentos do concílio.

Uma dessas possibilidades seria conciliar a afirmação de um caráter nacional e a elaboração artística das composições musicais. Exemplos disto foram as já mencionadas Missa Ferial de Osvaldo Lacerda, no Brasil e a Misa Criolla de Ramírez, na Argentina. Outra possibilidade seria a manutenção de um estilo universalista, mas adaptado à participação popular, como a Missa “Cristo Rei” de Furio Fraceschini. A cúpula da Igreja no Brasil optou, entretanto, por uma adaptação da música de mercado com algum sotaque regionalista. Esta opção não deve ser vista como uma posição “integrada” diante da “cultura de massa”, no sentido empregado por Umberto Eco (1993), ou seja, a Igreja não via novas possibilidades estéticas com a música de massa. O que ocorre é a total ausência de um juízo estético – ou a existência de uma “estética do desespero” – sobre a música litúrgica, de modo que ela apenas funcione como um chamariz de fiéis, principalmente daqueles que recorreram às religiões evangélicas de origem pentecostal, prova disto foi o fenômeno da inculturação, sobre o qual se discorreu no início do trabalho. Executar liturgicamente as missas de Franceschini hoje, ou mais especificamente, a Missa “Cristo Rei”, como o coral da Igreja de Santa Isabel da Arquidiocese de Campinas (FRANCESCHINI, 2010a), significa buscar suprir num passado relativamente distante – de quase quarenta anos – um hiato de composições corais em vernáculo.

Em suma, a cúpula da Igreja Católica no Brasil, a CNBB não vê na música uma dimensão formativa, como Furio Franceschini evidenciou em seu texto sobre a música pós-conciliar. Este é outro significado passível de atribuição às suas missas, o da preocupação com a formação do ouvido de quem canta e de quem escuta suas missas. Ele se desdobra em outro

fato: a acessibilidade das obras a grupos pequenos, tanto pelo fato de terem sido escritas a poucas vozes, quanto pela simplicidade da textura, na maioria das vezes, homofônica.

Não se pode ignorar o fato de que a acessibilidade das missas não só configurava uma expansão do pensamento ultramontano, como também tem um aspecto econômico: com mais coros que conseguiriam executar suas missas – à exceção da Missa Festiva –, maior certamente foi a quantidade de encomendas e de vendas de partituras. O lucro, entretanto, não parece ter sido o elemento propulsor da opção de Franceschini pela música sacra. Esta afirmação se baseia em um documento anexado à tese de José Luís de Aquino (2000), o recibo do último pagamento da aposentadoria de Franceschini. Nele há uma anotação de Manoel Antonio Franceschini constatando o fato de se tratar de menos de um salário mínimo – que há algum tempo era destinado às missões da filha religiosa de Furio, Ir. Irene.

As missas e os documentos estudados neste trabalho permitem atribuir às opções estéticas de Furio Franceschini um significado que pode ser resumido em uma palavra: convicções. Estas convicções não devem ser confundidas com conservadorismo, pelo contrário, o próprio compositor mostrou-se favorável, aos noventa e quatro anos, à participação do povo nas celebrações, tendo escrito inclusive uma missa com este intuito.

As convicções de Franceschini dizem respeito, portanto, primeiramente ao catolicismo. O compositor era um católico fervoroso, que pautou sua estética por suas convicções religiosas pessoais. A aceitação das mudanças propostas pelo Concílio Vaticano II revelam também a convicção de que as ações do pontífice romano eram infalíveis e deveriam ser respeitadas. O que Franceschini questionou não foi o concílio e suas decisões, mas a música litúrgica composta desde então. Passa-se então à convicção artística: a música deveria servir à liturgia, mas deveria conter também a preocupação com a qualidade do que era escrito.

Quanto às questões técnicas da composição, a música de concerto do período era de seu conhecimento. Franceschini conhecia os modos de transposição limitada de Messiaen, as obras de Stravinsky, a música dodecafônica, como também conhecia os estudos envolvidos na restauração do canto gregoriano e as outras teorias que derivaram desta restauração: a teoria do ritmo livre musical de dom Mocquereau e a teoria de Maurice Touzé, respectivamente. Além destas teorias mais recentes, Franceschini conhecia o estilo de compositores barrocos, clássicos e românticos, pois foi professor de análise musical e publicou trabalhos analíticos de obras destes períodos. Assim, não há que se dizer que as missas revelam o desconhecimento da música de seu tempo, mas como diz o título deste trabalho, foram opções composicionais.

Ainda que seja possível uma crítica à teoria de Touzé quanto à quantificação do ethos de cada modo eclesiástico, é inegável sua aplicação do ponto de vista técnico para a transição entre modo e tom ou entre modos, o que Franceschini claramente absorveu.

Este trabalho teve um caráter teórico, de estudo da música do passado. Desde a introdução ficou claro que não se tratava de uma pesquisa-ação ou algum gênero semelhante. Contudo, não é possível simplesmente ignorar o presente, pois formular um pensamento crítico em relação ao presente, a partir dos métodos e informações utilizados neste estudo, foi um dos problemas levantados. Não se questionou em qualquer momento o aspecto funcional que tem a música litúrgica, mas procurou-se apresentar uma visão diferente, defendida por Franceschini: fazer música na igreja é não apenas adequar os textos cantados ao calendário litúrgico, mas também educar o ouvido dos fiéis.

A música sacra do passado não formava apenas seus intérpretes, mas também quem a ouvia. Aí reside a responsabilidade do compositor, do instrumentista, do cantor, do clero e do leitor que chega ao final deste trabalho: perguntar se a música feita na atualidade possui eficiência nos fins a que se propõe ou para os fins que se desejaria que adotasse, e como essa eficiência pode ser aumentada. As estratégias não dependem necessariamente de uma missa em latim a oito vozes, como a imponente Missa Festiva de Franceschini, mas uma composição simples como a Missa em Honra de Na Sra de Lourdes já é capaz de acrescentar algo a quem a ouve e não apenas reproduzir gêneros musicais exaustivamente transmitidos nos meios de comunicação.

Se a música litúrgica que se ouve hoje em tantas igrejas não é mais capaz de expressar concepções artísticas autenticamente sacras, há que se questionar o que pode ser feito para mudar tal situação. Se este trabalho for capaz de gerar tal questionamento no leitor, terá valido a pena.