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2 OS MOVIMENTOS DE RESTAURAÇÃO

2.1.1 A Igreja na segunda metade do século XIX

Bihlmeyer, Tuechle e Camargo (1964, p.513-564) apresentaram uma visão abrangente da situação da Igreja Católica a partir da segunda metade do século XIX. O que se percebe é um discreto crescimento em poucos países – curiosamente, nos de maioria protestante –, mas na grande maioria, um combate à Igreja, das mais diversas formas. Apresenta-se uma síntese dos principais problemas enfrentados, agrupados por áreas e os países em que ocorreram.

Mudanças nos planos jurídico e político foram comuns em toda a Europa ao longo do século XIX: se o Iluminismo havia conseguido estabelecer até então algum diálogo com a Igreja, na segunda metade desse século, as idéias liberais começaram a atacar a instituição de forma mais veemente. Na Itália, sob a fórmula de libera Chiesa in libero stato do conde de Cavour26

26 “Nos diferentes países (tanto poderia ser o drama do Padroado no Brasil, como os privilégios dos Imperadores na Áustria) havia vestígios pesados de situações antigas que se mostravam inaceitáveis para ambas as partes [Igreja e Estados nacionais]. O conde Cavour era responsável por uma fórmula que D. Pedro II aceitava, o Papa condenava e hoje entra para o rol das coisas óbvias: ‘Chiesa libera in libero Stato’... Mas não é isto exatamente o que foi dito no Evangelho? É claro que havia cobras entre as flores e o ‘stato libero’ do conde Camillo Benzo di

a Igreja viu seus direitos – até então julgados “naturais” – tolhidos.

Nos diversos reinos que compunham a Itália antes da unificação, o governo papal era desacreditado, principalmente após a retirada das tropas austríacas do Estado Pontifício. O foro eclesiástico, que diferenciava, no plano jurídico, clérigos dos demais civis, foi abolido, ainda em 1850, no Estado Sabaudo, que viria a se integrar à Itália. O Estado Pontifício foi reduzido a um terço de sua extensão original após a invasão de Roma, inclusive do quarteirão do Vaticano. Com a derrota de Napoleão III, protetor do Estado Pontifício, os piemonteses procederam à invasão. Em 13 de maio de 1871, a lei das garantias reconhecia a inviolabilidade dos direitos de soberano do papa, dando-lhe para uso os palácios do Vaticano e do Latrão, além de três milhões e duzentas e cinqüenta mil liras por ano como renda anual. Dois dias após a apresentação da lei, Pio IX recusou-a e tornou-se um “prisioneiro do Vaticano”. Em junho de 1871, Roma tornou-se a capital da Itália, sob um governo temporal.

As separações entre os Estados nacionais e a Igreja – tida até então, nestes países, como religião oficial – foram bastante comuns neste período. Ocorreram na Suíça, França, Canadá, Estados Unidos, Chile, Brasil, México, dentre outros. Na Península Ibérica, a Espanha teve uma ruptura parcial com Roma, já em Portugal, a separação entre Estado e Igreja foi completa, inclusive com a violação do direito de propriedade da Igreja.

Tôrres (1968, p.112) atribuiu aos ideais ultramontanos da Igreja e liberais dos Estados nacionais igual interesse na separação. Não se pode, entretanto, concordar integralmente com este autor, uma vez que sendo vantajosa para a Igreja uma situação, parecia não haver maiores problemas em firmar alianças e preservá-las.

A Kulturkampf ou luta de idéias27 foi um amplo conjunto de leis que versavam sobre a separação entre Estado e igreja, ensino laico, expulsão dos jesuítas e demais ordens religiosas, extinção do foro privilegiado para o clero e determinavam interferências do Estado no poder disciplinar da Igreja e na formação de seus sacerdotes. As leis prussianas que versavam sobre assuntos religiosos foram declaradas nulas por Pio IX em 1875, para a Igreja naquele país. A Kulturkampf também aconteceu em outros territórios de língua alemã. Na França, México e outros países existiram leis semelhantes.

Cavour poderia significar, como entre nós, no regime de 1891, proibição do ensino religioso, ausência de assistência religiosa às forças armadas, etc” (TÔRRES, 1968, p. 111). “Por direito de Padroado entende-se o conjunto de privilégios com certas incumbências que, por concessão da Igreja Romana, correspondem aos fundadores de uma igreja, capela ou benefícios. Entre os privilégios, destaca-se o direito à apresentação de arcebispos e bispos. O padroado não é diretamente uma instituição regalista, mas através dele introduziram-se facilmente abusos regalistas” (WERNET, 1987, p. 18).

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No campo da educação, em que a Igreja tinha primazia, foi declarado o ensino laico em Baden, na Alemanha, em 1876. O mesmo ocorreu na Áustria, Suíça, Bélgica e outros países. Na Rússia, a educação e a Igreja do império sofreram uma “russificação”, ou seja, tornaram-se nacionais. A Igreja Romana cedeu lugar à Católica Ortodoxa Russa. No Brasil, o fim oficial do ensino religioso se deu com a Constituição de 1891, totalmente laica.

O nacionalismo foi uma dificuldade encontrada pela Igreja Romana em diversos países, não apenas na Rússia. Nos Estados Unidos, chegou a ocorrer um cisma com o chamado “americanismo”. A doutrina disseminada em toda a América do Norte propunha um acordo quase total entre a cultura moderna e a doutrina da Igreja. Sua prática se voltava muito mais para o individual e para uma “relativa mitigação dos princípios de autoridade”, o que contrariava as pretensões de Roma de ser o centro religioso da Igreja Católica.

Em países como a Holanda, neutra do ponto de vista religioso, o ensino religioso foi permitido em escolas particulares. Este país serviu de exílio para muitos religiosos católicos durante a Kulturkampf da Alemanha28.

O casamento civil foi outra derrota da Igreja, que até então exercia funções administrativas nos Estados. Foi decretado inicialmente na Alemanha e Áustria e depois em outros países.

Houve também uma separação entre a Igreja e um grupo de sacerdotes e leigos que se opunham à doutrina da infalibilidade do magistério papal, os velhos-católicos. Na Suíça, com a Kulturkampf várias igrejas foram entregues a esse grupo. Outra dissidência ocorreu na Polônia: os mariavitas – considerados “fanáticos” pela Cúria Romana – buscavam viver em rígida imitação da vida de Maria e pautavam suas crenças por pretensas visões e revelações. Na Lituânia este grupo se uniu por algum tempo aos velhos-católicos, mas logo se separaram.

Os Jesuítas, sociedade de religiosos fundada por Inácio de Loyola, foi especialmente perseguida em diversos países neste período. A Companhia de Jesus, a pedido de diversos reinos católicos, dentre eles, Portugal, foi suprimida por Clemente XIV, em 1773, e só foi restaurada em Parma, em 1794, Nápoles e Cecília, em 1804 e no resto do mundo, em 7 de agosto de 1814. Contudo, uma vez restaurada, não tiveram grande aceitação nos continentes europeu e americano. No Brasil, já haviam sido expulsos por Pombal e, na Europa, sua expulsão ocorreu na Alemanha, Suíça, França e Portugal. A Noruega, apesar de permitir as ordens religiosas, proibiu apenas a permanência dos jesuítas em seu território. É importante

28 Paradoxalmente a Igreja só progredia em países de maioria protestante: Inglaterra, Holanda, Estados Unidos, de certo modo na França, país que, desde os dias da Revolução, o mundo oficial era mais ou menos hostil (TÔRRES, 1968, p.112).

notar que os religiosos da Companhia de Jesus foram veementes defensores do “catolicismo renovado”, ou seja, das determinações do Concílio de Trento, desde o concílio. A figura da sociedade de religiosos foi então associada também ao Ultramontanismo – que se pautava pelos princípios tridentinos – e, portanto, combatida pelos liberais.

Outros pontos de desvantagem para a Igreja foram a permissão do divórcio, a criação de cemitérios não-religiosos, a proibição de sacerdotes e religiosos assumirem cargos públicos, a administração estatal de igrejas, a espoliação do patrimônio de ordens religiosas e igrejas, fechamento de conventos e igrejas, nomeações ou indicações estatais de bispos e a relação entre Estado e outras religiões ou grupos, como os protestantes, os ortodoxos e os maçons.

Uma explicação dada para a hostilidade do liberalismo à religião se funda em três colunas: 1. a liberdade de consciência, contraditória em relação à Igreja, que se julgava detentora da verdade; 2. o liberalismo econômico, que contrariava os princípios católicos de condenação à usura; 3. o Direito Divino dos reis, uma vez que os liberais defendiam a democracia e o regime republicano (TÔRRES, 1968, p.105-109).

Tôrres (1968, p.110) resumiu a situação da Igreja dentro e fora de Roma quando disse que a “imagem da Igreja Católica, no quartel derradeiro do século XIX, era o mais melancólico [sic] possível: prestes a desaparecer, voltava às catacumbas romanas de onde havia saído”.

2.1.2 Romanização

Apesar da diversidade de usos do termo Ultramontanismo em diversas situações da Igreja Católica no correr da história, deve ser aqui entendido como a autocompreensão da Igreja que surgiu “ligada ao período da Santa Aliança,29 repudiando a cultura iluminista e a experiência da Revolução Francesa” (WERNET, 1987, p.14). Os termos ultramontano e Ultramontanismo vêm do fato já mencionado de os bispos franceses terem manifestado sua obediência às ordens vindas de Roma. Ultramontano era, portanto, um adjetivo utilizado “com o sentido explícito de indicar, na rosa-dos-ventos, ‘o ponto de referência e fidelidade’ para os católicos”, “o local situado além dos Alpes” (RODRIGUES, 2008, p.15). Com a chamada

29 Movimento formado em Paris, em 26 de setembro de 1815, entre os monarcas da Prússia, Áustria e Rússia, e posteriormente fortalecido pela adesão de outros governantes europeus.

romanização,30 o termo passou a ser usado no sentido inverso, para expressar a autoridade que emanava de Roma para além das montanhas do norte da Itália.

Ainda de acordo com Wernet (1987, p.12), o Ultramontanismo é uma construção, um “tipo ideal” por meio do qual a Igreja buscou se revelar, “exagerando elementos específicos da realidade” para “selecionar características dela e as ligar entre si num quadro mental relativamente homogêneo”. Wernet deixou claro que não existe apenas uma autocompreensão da Igreja, mas foram várias ao longo de sua história.

O primeiro dentre elementos priorizados na construção da imagem ultramontana está diretamente relacionado à idéia de homogeneidade à qual Wernet se referiu. Por sinal, o interesse em expressar a unidade, próprio do Ultramontanismo, não parece ter acontecido de forma tão clara em qualquer outro auto-reconhecimento da instituição. Segundo Gaeta (1997), Engendrado com a mesma concepção medieval unitária do Universo, esse catolicismo estava marcado pelo centralismo institucional em Roma, por um fechamento sobre si mesmo e por uma recusa de contato com o mundo moderno. [...] Com uma rigidez hierárquica, reproduzida também pelas mais distantes células paroquiais, o ordenamento ultramontano aspirava a uma univocidade entre a Europa, Ásia, África e América. [...]

Nesse sonho unitário não se configuravam as incompatibilidades e as alteridades identitárias. Na busca do uno, diante do múltiplo social, manifestava-se a intransigência ante o plural, confrontando-se, na verdade, com o próprio lugar da história que é, por excelência, o lugar da divisão e dos choques de valores. De maneira análoga à sociedade das abelhas, afastava-se a diversidade [...].

A descrição de Gaeta deixa clara uma característica fundamental do Ultramontanismo: a centralização da direção espiritual da Igreja na figura do pontífice romano, mais que em quaisquer concílios ou sínodos episcopais ou em influências de autoridades temporais. Deste modo, a restauração ultramontana, quando de sua implantação, foi também chamada de romanização, ou seja, de adequação das igrejas nacionais ao modelo romano. A unidade estava presente no idioma empregado nos ritos – latim em lugar do vernáculo –, formação do clero, hábitos de vida dos bispos e do clero e o modo como deveriam atuar em suas funções sacerdotais e missionárias. Tal unidade era garantida, de acordo com Rodrigues (2008, p.16), por meio de visitadores de cada um dos dicastérios eclesiásticos responsáveis por um determinado assunto que verificavam in loco a obediência às prescrições vindas de Roma.

Outras características da concepção ultramontana também foram ressaltadas por Gaeta

30 Como “Ultramontanismo”, o termo “Romanização” também tem diversas acepções ao longo da história. Pode representar a influência de Roma no primeiro século da era cristã ou, na acepção que aqui adotada, a eleição da Sé romana como um modelo para a uniformização da Igreja ao redor do mundo, quer em termos de liturgia, quer seja na organização institucional e até na vida que o clero deveria levar. A romanização é, portanto, um movimento posterior ao Ultramontanismo e motivada pelo pensamento ultramontano.

(1997): “a rejeição à ciência, à filosofia e às artes modernas, a condenação do capitalismo e da ordem burguesa, a aversão aos princípios liberais e democráticos, e sobretudo ao fantasma destruidor do socialismo”. A rejeição às artes modernas é um ponto fundamental a se ter em mente quando mais adiante for estudado o caráter historicisante do repertório musical restaurista. A Igreja tornara-se, portanto, supra-Estatal e dissociada do mundo, transcendente em relação a ele, como afirmou Tôrres (1968, p.112). Assim, o caráter espiritualizado da Igreja só viria a ser reforçado com os dois principais documentos que marcariam o período: por meio do Syllabus errorum (1864), a instituição havia proclamado sua transcendência em relação aos “vícios” da modernidade e no Concílio Vaticano I (1870), proclamara o pontífice infalível em questões relativas aos costumes cristãos e à fé católica. Além disto, o papa passou a ser considerado o “supremo juiz” sobre quaisquer controvérsias eclesiásticas. Deve-se notar, entretanto, que apesar de dissociada do mundo secular, a Igreja ainda se alinhava aos interesses das elites econômicas.

Diante do quadro que se observou no final do século XIX, o Ultramontanismo pode ser entendido como um fechamento normativo da Igreja, que buscava garantir sua identidade e a sobrevivência. Se os jesuítas tiveram fundamental importância séculos antes em garantir a sobrevivência da instituição após o Concílio de Trento com teólogos como Francisco Suarez (1545-1617), o doctor eximius, no novo fechamento normativo do século XIX, Trento permanecia uma referência. Como afirmou Gaeta (1997), o Ultramontanismo “construiu um arcabouço religioso destinado a se derramar ainda por todos os poros da sociedade”.