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4 DO MOTU PROPRIO AO CONCÍLIO VATICANO II

4.4.1 Publicações nacionais

As publicações nacionais sobre música sacra de espírito restaurista começaram, como se viu, antes mesmo do Motu Proprio, como o método de canto gregoriano do padre Antonio Gonsalves Cortes (1884), na Bahia. Posterior a 1903, destaca-se logo na primeira década o trabalho teórico do franciscano Basílio Röwer, ofm, que foi utilizado diversas vezes como fonte para este trabalho. Este livro tinha como objetivo explicar minuciosamente as disposições do “código jurídico de música sacra” e incentivar a aplicação de seus princípios.

Em 1908, Furio Franceschini (1908) lançou Musica Sacra publicada pelo Seminário Central de São Paulo, onde era professor. Esta coletânea divulgava obras que o mestre-de-capela julgava estarem de acordo com as prescrições romanas sobre a música sacra. Note-se que neste período a comissão arquidiocesana de música sacra ainda não havia sido criada. Além dessa coletânea, Franceschini lançaria outras, anos mais tarde como se pode ler no trabalho de Manoel Antonio Franceschini (1966).

Dentre outras coletâneas de obras para uso litúrgico, destacam-se o hinário Harpa de Sião, do padre verbita João Batista Lehmann (1957), Hosana, o hinário oficial das arquidioceses de São Paulo e do Rio de Janeiro publicado em 1948 (VÁRIAS, 1948, p.176). Além dos dois hinários, também a coleção intitulada Cecília. Röwer (1907, p.63) mencionou ainda como as melhores coleções de que tinha conhecimento, “Benedicte, de Frei Pedro Sinzig O.F.M. (livraria Selbach e Mauer, Porto Alegre) e Lauda Sion (Gymnasio de N. S. da Conceição em S. Leopoldo, Porto Alegre)”. Além das coletâneas, composições inéditas que aumentavam o repertório restaurista pátrio eram publicadas em partituras ou partes avulsas, como é o caso das missas aqui estudadas.

Por fim, aparentemente motivada pelo Concílio Plenário Brasileiro de 1939, como afirmou Batista (2009), passou a ser publicada, em 1941, a revista Música Sacra dos franciscanos de Petrópolis. A revista foi editada por frei Pedro Sinzig até sua morte, sendo então sucedido por seu confrade, Romano Koepe. Esta revista trazia algumas obras transcritas – em geral, uma por volume –, mas seu enfoque maior era em trazer notícias, discussões teóricas e críticas musicais. A revista trouxe também, ao longo de anos, listas com as obras aprovadas ou recusadas pela Comissão de Música Sacra do Rio de Janeiro. Dada a regularidade de sua publicação e a participação de autores de diversas partes do país e do exterior, ela constitui uma importante fonte no estudo da música sacra brasileira da primeira metade do século XX.

De posse das informações apresentadas até o momento, parece apropriado analisar ainda as mudanças trazidas pelo Concílio Vaticano II, que representou, no Brasil, um claro divisor de águas não somente em relação à música sacra, mas em toda a liturgia católica.

4.5 CONCÍLIO VATICANO II: O FIM DE UMA ERA?

Cátia Regina Rodrigues (2008, p.15) afirmou que a convocação do Concílio Vaticano II por João XXIII, em janeiro de 1959, causou “grande expectativa no mundo inteiro pela falta de expectativa de haver algum interesse da parte da hierarquia católica de promover a oportunidade de discussão e revisão de questões doutrinárias e disciplinares”. Com base no que se observou ao tratar do canto religioso popular católico, principalmente na Encíclica “Mediator Dei” (1947), não é possível concordar integralmente com tal informação. Algumas mudanças já se faziam sentir e ouvir havia mais de uma década.

Entende-se o Concílio Vaticano II como o reconhecimento por parte da Igreja de pontos falhos no pensamento ultramontano. A completa transcendência em relação ao mundo era inviável para uma instituição que sempre interagiu com ele, ou seja, um sistema aberto. Isto se fez notar logo no pontificado de Leão XIII, sucessor imediato de Pio X, que apresentou duras críticas a “um temível conflito” de classes e ao socialismo em sua Encíclica “Rerum Novarum”, de 1891 (PIERUCCI, 2007, p.462). Antes do Concílio Vaticano II muitas foram as críticas dirigidas ao socialismo e mais discretas aquelas dirigidas ao capitalismo, tanto pela Cúria Romana, quanto pelo clero brasileiro, sobretudo seu episcopado. As críticas ferrenhas ao socialismo se justificavam por se tratar de um movimento essencialmente ateu, ao passo que o capitalismo invertia os valores e colocava em primazia o material sobre o espiritual, representando de algum modo, um perigo para a religião.

Os sistemas econômicos não eram os únicos a se apresentar como antagonistas da Igreja. Pio XII publicou, em 1957, uma oposição aos “quatro perigos mortais” que atingiam a América Latina no II Congresso Mundial para o Apostolado dos Leigos: naturalismo, protestantismo, espiritismo e marxismo. No Brasil, na década de 50, o povo passava a aderir à umbanda e ao movimento pentecostal. Até então, ser brasileiro era ser automaticamente católico, não porque houvesse ainda uma religião oficial, mas graças à inexpressividade das outras religiões face ao catolicismo romano. Contudo, o povo passava a conhecer e aderir a novas crenças

(SOUZA, 2005, p.18). A criação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em 1952, caracterizou uma ação expressiva no combate às outras crenças, principalmente ao protestantismo. As ações da CNBB foram, desde o início, direcionadas também para o diálogo e tomada de posturas ante a realidade social e religiosa.

O que se percebeu na Igreja como um todo foi um processo conhecido como aggiornamento, ou seja, o processo de aproximação por parte da Igreja de seus fiéis. Este processo se estendeu por toda a década de 50 e culminou com o Concílio Vaticano II. O concílio foi, portanto, o reconhecimento de que a completa transcendência em relação às questões seculares era uma utopia. Seu traço mais marcante do ponto de vista litúrgico foi, portanto, a participação ativa dos fiéis nos ritos. Deste modo, o povo deixava de ser o “expectador passivo e silenciado” dos ofícios religiosos (MARCHI, 1989, p.92) e tomava novamente parte na celebração junto com o sacerdote. O povo deveria participar por meio de “aclamações, respostas, salmodias, antífonas, cânticos, ações, gestos e atitudes”.

O que se observa nas mudanças litúrgicas propostas pelo Concílio Vaticano II são normas bem menos radicais do que aparentemente se pode esperar de um “divisor de águas”. Suas prescrições têm cunho genérico e cabia, via de regra, às autoridades locais a determinação de até onde poderiam se estender as mudanças. Exemplo destas prescrições pouco radicais foi a manutenção do latim enquanto idioma oficial dos ritos latinos, permitindo, porém, o uso do vernáculo por ser “útil” ao povo. A respeito da tradução dos textos litúrgicos para o vernáculo, as conferências episcopais interessadas deveriam cuidar para que houvesse uma única tradução oficial para os textos, porém as autoridades territoriais poderiam decidir quanto a alguns textos vernáculos musicados que contivessem variantes em relação às versões oficiais. Esta prescrição que se encontra na Instrução “Musicam Sacram” (1967) da Sagrada Congregação dos Ritos é bastante relevante neste trabalho quando se pensa que um Canto Penitencial da Missa “Cristo Rei” de Franceschini não corresponde totalmente ao Ato Penitencial ou Kyrie que hoje é tido como oficial e usado largamente nas missas.

A Constituição “Sacrosanctum Concilium” (1963) ainda garantia a necessidade da formação das scholae cantorum e o uso do gregoriano. O que ocorreu, entretanto, foi uma leitura radical do item do documento que se referia a adequar a liturgia à “índole de cada povo particular”, no Brasil e na América Latina como um todo. Se houve uma invenção da tradição nos movimentos de restauração, as inovações que, em menos de um século, contradizem as noções de sagrado e profano do Ultramontanismo e do Cecilianismo também buscaram justificativa no passado. No estudo da CNBB “A música litúrgica no Brasil” (1998), a cultura

popular e mesmo as devoções do catolicismo popular funcionaram como uma forma de inspiração. Ao mesmo tempo, em repetidas passagens, o documento justifica suas posições com a busca pelas raízes indígenas, africanas e ibéricas da música, como já se viu quando se falou dos instrumentos musicais. O ponto mais curioso, entretanto, diz respeito à ligação que este estudo tenta estabelecer entre a prática musical atual e as tentativas frustradas do Sínodo de Pistóia (1786) em promover uma reforma litúrgica com “maior participação dos fiéis, música mais simples e adaptada ao sentido das palavras” (DOCUMENTOS, 2005, p.265): se havia certo caráter de tradição inventada no pensamento ultramontano, a CNBB tentou estabelecer uma ligação com um passado que sequer se concretizou.

Em síntese, a busca pela participação do povo na liturgia se estendeu a tal ponto que as músicas pós-conciliares ganharam contornos de canto religioso popular e mais, de música popular: se tornaram mais simples, mais graves e uníssonas. O ofício do coro se perdeu em grande parte por ser considerado “elitista” e ferir o princípio da participação dos fiéis. A adaptação à índole de cada povo favoreceu o regionalismo e o emprego de rítmicas próprias da música popular, ao passo que as letras ganharam conteúdo politizado. Em relação a este contexto de leitura radical do Concílio Vaticano II e de mudanças radicais na música litúrgica, manifestou-se contrariamente Franceschini. Sua última missa, a Missa “Cristo Rei” é pós-conciliar e foi escrita em vernáculo, contudo não assimilou as referidas características.