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Nesta primeira parte do trabalho busquei evidenciar, a partir de uma breve descrição históriográfica, o processo de colonização que passou a região do Alto Solimões e a Amazônia, sobretudo para com os povos indígenas.

Ao mesmo tempo em que apresento um pouco do contexto histórico, social e político dos interlocutores, o povo Tikuna, evidencio também uma inicial introdução sobre o campo de pesquisa, traçando genealogias possíveis sobre as práticas genocidas que passaram e continuam a passar os povos originários e colocando em destaque os aspectos de uma política colonialista e capitalista do Estado com seu único objetivo de desenvolvimento econômico a qualquer custo.

Foi possível observar, a partir das historiografias levantadas, que as práticas genocidas sobre os povos indígenas se produzem há milhares de anos, desde quando na região do Alto Solimões e Amazônia se iniciaram os primeiros contatos entre europeus e indígenas, no qual podemos ressaltar: a exploração do trabalho braçal, a escravização de indígenas para as coletas das drogas do sertão e no cultivo da agricultura e domesticação de animais, na extração do latéx da borracha, na imposição de novas culturas, línguas, religiões e entre outros processos.

Por outro lado, há de se destacar que as práticas genocidas que visam o extermínio da cultura e da própria existência indígena continuam até os dias atuais, as quais são fortemente marcadas pelas estratégias de sobrevivência seja nos conflitos territóriais, lutas pela demarcação de terras, pela saúde de qualidade, educação, na luta contra a intolerancia étnica e na própria existência cultural desses povos, contra um Estado que somente os reprime, condena e permite seu extermínio, sem garantir efetivamente as condições para o pleno direito de viverem e se reconhecerem como tais, com as suas formas tradicionais de vida.

Deste modo, as ações genocidas que os povos indígenas passam não se restringem apenas ao extermínio físico, ele é, também, linguístico, cultural, religioso, educacional e espiritual. Ao ponderar que as relações dos povos indígenas com a terra e a natureza de um modo geral, sobrepassa a intenção das políticas capiltalistas, estas têm um sentido amplo que interliga a vivência de sua cultura, a cosmologia, a espiritualidade, a língua e suas organizações sociais através das práticas tradicionais que são tecidas nesses territórios. Assim, se mobilizam a lutarem pelo direito daquilo que lhes dão o sentido das suas existências, a terra.

Ainda que para o Estado isso não seja perceptível, a resposta que esses povos continuam dando é a resistência na luta para garantir a sobrevivência da suas descendências futuras.

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O MASSACRE DE CAPACETE

“Destruir las huellas, las inscripciones culturales de um grupo humano, sus cimientos terrestres, es parte integrante de lo que anima todo proyecto genocida, que consiste en destruir no sólo a los vivos sino, com ellos, su pasado, para que, faltos de apoyo terrestre, no puedan encontrar lugar, ni en la palabra ni en la memoria colectiva”.

Héléne Piralian

2.1 Considerações iniciais

Ao longo da história, diversos massacres foram promovidos contra a humanidade e atualmente eles ainda ocorrem, como ficou explícito no capítulo anterior. Os povos originários sofreram com a conquista do continente americano, a invasão de espanhóis e portugueses, além da proliferação de doenças por agentes bacteriológicos nestas terras (como febre amarela, varíola e outras, até então desconhecidas pelos povos aqui existentes, que ficavam vulneráveis a tais doenças).

Os registros históricos demonstram as atrocidades e as violências físicas e simbólicas cometidas, mas há de se destacar, também, o holocausto praticado por nazistas em plena Segunda Guerra Mundial, levando ao extermínio de milhões de judeus. No contexto brasileiro, os massacres como de Carandiru e Candelária, contra os indígenas Cinta-Larga, no Paralelo Onze, em Rondônia, ocorridos durante o regime militar, o etnocídio contra o povo Gamela no Maranhão, as violências e mortes contra os Guarani Kaiowá, a tentativa de extermínio de índios flecheiros no Vale do Javari, Amazonas, evidenciam o desprezo pela vida e a aniquilação desses coletivos, nos moldes do massacre de Capacete ocorrido em 28 de março de 1988, muito próximo da promulgação da Constituição Federal do Brasil.

Esses exemplos ocorreram em diferentes contextos e com diferentes motivações, tais como: conflitos religiosos; desprezo pela cultura do outro; dominação e exploração de riquezas e disputas territoriais em nome de uma política extrativista e agropastoril.

O massacre ocorrido ao longo da história, contra diferentes povos, continua em pleno século XXI sob outros moldes, negando a existência étnica e fortalecendo, em nome de uma cultura ocidental dominante que avança com sua política neocolonizadora, a segregação racial, a dominação cultural, religiosa e de saberes.

Passados trinta anos do massacre de Capacete, este trabalho se propõe a refletir sobre as consequências e impactos desse episódio na vida dos indígenas Tikuna, sobretudo a partir de suas memórias sobre as violências sofridas e o protagonismo político reverberado em suas ações de luta pela terra contra madeireiros e políticos da região do Alto Solimões, Amazonas.

Neste capítulo, apresenta-se: a localização de Capacete; os processos históricos de luta pela terra; e a etnografia na comunidade Tikuna de Porto Espiritual, trazendo com profundidade o cotidiano desta ao longo das idas à campo. A análise estende-se aos processos judiciais que decorreram após o episódio nas esferas estaduais e federais, as quais possibilitaram a qualificação do crime, visto inicialmente como homicídio e, após, considerado como genocídio, possível em razão da Constituição de 1988.

Ainda, será apresentado o contexto da região à época do ocorrido, bem como da sociedade brasileira. Evidencia-se o discurso jurídico com falas dos interlocutores na possibilidade de cruzamento de dados que privilegiam as versões construídas a partir dos fatos que envolvem o massacre. Por fim, apresento as repercussões desse episódio no município de Benjamin Constant e os estudos históricos e antropológicos que retrataram o massacre dentro de uma perspectiva acadêmica.

O levantamento dos dados processuais, dos relatos orais e dos discursos jurídicos, revela versões que, por vezes, se aproximam ou se distanciam. Estas versões se constroem conforme os sentidos predominantes em cada “mundo social”, nos quais os atores sociais estão fortemente ligados, ampliando e complexificando as interpretações sobre o massacre.