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Neste capítulo consta uma síntese das situações históricas observadas na área de pesquisa, a região do Alto Solimões, localizada no estado brasileiro do Amazonas. Trata-se de um espaço que se configura como uma fronteira geográfica, social, política, econômica, cultural e imaginária, inserido na tríplice fronteira entre os territórios do Brasil, Colômbia e Peru.

No contexto deste espaço geográfico, a história dos Tikuna3 é apresentada em um cenário de contatos interétnicos iniciados a partir do encontro colonial entre o mundo dos indígenas e o chamado mundo dos brancos ou europeus. Nesta perspectiva, foi organizado um compêndio sobre a história e a historiografia das populações indígenas no Alto Solimões. Este transcurso está permeado por elementos culturais, políticos e sociais que marcam complexos processos sócio- históricos locais e regionais. Destacam-se os processos pelos quais os coletivos indígenas da região, em particular os Tikuna, foram objeto de práticas colonialistas de dominação e exploração por parte de sujeitos e coletivos tidos como “civilizados”.

Os Tikuna, geralmente, habitam áreas de várzea e terra firme na região amazônica, principalmente às margens de rios e ilhas fluviais. A distribuição geopolítica dos Tikuna na região do Alto Solimões, Amazonas e afluentes, ocorre desde os municípios de Benjamin Constant, Tabatinga, São Paulo de Olivença, Amaturá, Tonantins, Santo Antônio do Içá, Jutaí, Fonte Boa e Tefé no Brasil, além de espaços localizados em regiões da Colômbia, como Putumayo, e no Peru, a exemplo do Departamento de Loreto (BENDAZZOLI, 2011). Quanto à distribuição da população Tikuna no Amazonas, Bendazzoli (2011) ressalta o seguinte:

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Interlocutores indígenas costumam escrever a palavra Ticuna com C e outros com K, mas optou-se pela última possibilidade em atenção à Convenção para Grafia dos Nomes Tribais de 1953, realizada e assinada por diversas lideranças indígenas durante a 1ª Reunião Brasileira de Antropologia no Rio de Janeiro (1954, p. 150-152).

[...] aproximadamente 135 comunidades que concentram 90% da população Ticuna no Brasil. No médio Solimões também existem aldeias, em menor número, localizadas em terras dos municípios de Fonte Boa, Anamã e Beruri e, inclusive, uma grande concentração de Ticuna num bairro da cidade de Manaus (BENDAZZOLI, 2011, p. 41).

Fontes bibliográficas indicam a presença de coletivos Tikuna povoando diversas localidades da região amazônica, cuja extensão física ultrapassa as fronteiras geopolíticas de três Estados Nacionais (Brasil, Colômbia e Peru). Trata-se, portanto, de um território transnacional onde são construídas relações socioculturais, econômicas e políticas com outros coletivos indígenas, distintos entre si.

A síntese aqui apresentada sobre a trajetória Tikuna é de inspiração etno- histórica, perspectiva que pressupõe a construção de uma visão interdisciplinar, através da qual, disciplinas como antropologia social, história e, mais recentemente para o contexto regional, a arqueologia, dialogam para a compreensão de uma história indígena na perspectiva da longa duração (EREMITES DE OLIVEIRA, 2003, 2015). Nela, inclui-se, por exemplo, o uso da história oral para tratar da memória social desse povo indígena sobre sua própria trajetória.

Eremites de Oliveira (2003, p. 7) salienta que a principal implicação do uso da etno-história é “valer-se de um método em construção e de caráter interdisciplinar, cada vez mais sólido frente às interfaces entre a antropologia, a arqueologia e a história, dentre outros campos do conhecimento”. Dentro desta concepção, cabe alertar que certos relatos de natureza etnográfica e historiográfica sobre a presença Tikuna na região não foram produzidos pelos próprios indígenas e, por este motivo, precisam ser relativizados no contexto da interpretação dos contatos interétnicos assimétricos mantidos com populações de origem europeia e euroamericana. Ocorre que muitas fontes estão marcadas por uma visão eurocêntrica sobre os povos indígenas amazônicos, geralmente influenciada por ideias e ideais evolucionistas e colonialistas que reverberam situações históricas particulares, marcadas por assimetrias e práticas de dominação e exploração.

Ao analisar as ramificações dos contatos interétnicos na região e a situação dos contatos entre os Tikuna e os não indígenas, Pacheco de Oliveira (1988) apresenta contribuições significativas para o conhecimento do processo, entre elas as trocas culturais, costumes, símbolos e tecnologias. O autor analisa que “a absorção pelos nativos de costumes e crenças europeias não é de modo algum uniforme em uma tribo, variando de acordo com posições de parentesco, com

papéis rituais ou religiosos, com funções econômicas etc.” (PACHECO DE OLIVEIRA, 1988, p. 37). O referido antropólogo chamou esse processo de “situação de contato interétnico” (PACHECO DE OLIVEIRA, 1988, p. 55), paradigma que desnaturaliza a ideia do contato como algo limitado apenas a contextos de interesses e vantagens sobre os coletivos colonizados.

Destaca-se a possibilidade de pensar a significação desse contato a partir de um processo consciente de padrões, símbolos e culturas que não visem somente os interesses, costumes e valores, mas a relação intercultural dos coletivos envolvidos no encontro colonial. Em um sentido mais amplo, Balandier (1951 apud PACHECO OLIVEIRA, 1988) chamou esse processo de “situação colonial” e, posteriormente, Cardoso de Oliveira (1964) denominou de “fricção interétnica”.

Ao tratar desse processo no contexto Tikuna do Alto Solimões, Pacheco de Oliveira (1988) assim explica:

[...] na análise do contato interétnico no Alto Solimões, a noção de situação histórica poderia ser definida pela capacidade que assume temporariamente uma agência de contato de produzir, através da imposição de interesses, valores e padrões organizativos, um certo esquema de distribuição de poder e autoridade entre os diferentes atores sociais aí existentes, baseando em um conjunto de interdependências e no estabelecimento de determinados canais para resolução de conflitos (PACHECO DE OLIVEIRA, 1988, p. 59).

O processo de colonização e tentativas de dominação de um povo indígena pressupõe, por exemplo, ameaças, imposições, violências, estratégias de extermínio (genocídio ou etnocídio), fatores coercitivos e outros. Neste sentido, Pacheco de Oliveira assevera a necessidade de se pensar de forma ampla as relações interétnicas, devendo ser feito a partir do que chama de “diferentes graus de compromisso com cada um dos diversos atores, além de certa dose de legitimidade, proveniente de uma conexão positiva estabelecida pelo grupo étnico” (PACHECO DE OLIVEIRA, 1988, p. 59). A partir dos jogos de alianças e relações entre compromisso e legitimidade que envolvem colonizador e colonizado, o poder político e os interesses do dominador sobre o dominado passam de uma relação interétnica positiva para exercer um modelo hegemônico de política colonizadora pautada nos moldes europeus.

Nesta linha de argumentação, cabe aqui apresentar breves explicações históricas e socioculturais sobre os coletivos indígenas estabelecidos na região do Alto Solimões. Inicialmente, deve-se conceber o sentido de fronteira não somente do ponto de vista físico ou geográfico, mas seus aspectos socioculturais, políticos e

econômicos, além do saber que é construído dentro do contexto de fronteiras transnacionais e territoriais, principalmente quando se refere às populações indígenas. Como aponta Nogueira (2007), a fronteira, em uma concepção física que é formada ou forjada, deve ser pensada como:

[...] fronteira política, contorno de um Estado-nacional, demarcada por elementos da natureza ou linhas imaginárias, seu significado real pode ser diverso, variando conforme a extensão territorial do Estado, sua situação em relação a outros estados, aos centros de poder mundial, aos fluxos internos e externos e à densidade de sua ocupação (NOGUEIRA, 2007, p. 14).

Zarate Botía (2008), em seus estudos sobre fronteira e território, amplia a possibilidade de pensar o sentido geopolítico de fronteira não sendo apenas um limite geográfico espacial de sociedades distintas, mas a contribuição dessa tríplice fronteira Brasil/Colômbia e Peru nos processos sociais e culturais dos povos aqui existentes. O pensamento de Botía (2008) torna-se importante na medida em que os estudos sobre a região passam pela consideração dos aspectos históricos, políticos e econômicos, globais e identitários. Em suas palavras:

El Río Amazonas y sus principales tributários, así como el sector de contato transfronteirizo donde hoy se encuentra el llamado Trapecio Amazonico, incluso antes de conocer la presencia europea, ha sido y continúa siendo um lugar muy frecuentado y siempre globalizado aunque de un mundo diverso al actual (BOTÍA, 2008, p. 69).

Para Bartolomé (2003), as fronteiras seriam um espaço de desenvolvimento de novas formas de relações sociais que os sujeitos constroem; um espaço plural de trocas de saberes, de formações sociais e históricas particulares e, ao mesmo tempo, distintas daquele lugar fronteiriço, o Trapézio Amazônico. Tal região é marcada historicamente por uma diversidade étnica com a presença de diversos povos indígenas, dentre eles os Tikuna, Kokama, Matis, Kanamary, Mayoruna, Kulina, Caixana, Kulina (Madjá), Marubo, Matsés, Kambeba, Huitoto e Yagua, distribuídos por várias áreas. De acordo com López (2005):

La actual región de fronteras entre Brasil, Colombia y Perú se consolido históricamente sobre el territorio ancestral de diversos grupos indígenas, entre ellos los Ticuna, quienes desde hace por lo menos dos mil años, vinen ocupando la zona del río Amazonas/Solimões. Este hecho se deduce de las investigaciones arqueológicas realizadas por Bolian (1975)4 en la región del Trapecio Amazonico (actual frontera Perú y Colombia), las cuales reportan varias etapas de ocupación y cuya datación cubre un período entre los años 100 y 1200 d.C. (LÓPEZ, 2005, p. 55).

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.BOLIAN, Charles Edwar. Archeological excavations in the of Amazonas: the policrome traditions. PHD. Anthropology: University of llinois at Urbana Champaing, (1975).

Estes povos possuem grande mobilidade espacial no contexto fronteiriço, bem como operam uma circulação cultural por meio da linguagem, trocas comerciais, do artesanato e das relações de alianças que fortalecem suas estratégias políticas e emancipatórias, vivendo assim, em um “contexto multiétnico” (TRAJANO VIEIRA, 2016, p. 19).

A região deve ser pensada e concebida através da ideia “transfronteiriça”, conforme sustentam os estudos de Trajano Vieira (2016), porque o lugar é marcado pela circulação de pessoas e objetos, tanto nos territórios nacionais como nos tradicionais. Por este motivo, as relações sociais, políticas e econômicas transcendem os limites das fronteiras nacionais entre Brasil, Colômbia e Peru, as quais foram estabelecidas sobre grandes territórios indígenas.

Trajano Vieira (2016) igualmente contribui a pensar na direção de um sentido mais amplo da ideia de fronteira, especialmente sobre as relações que os indígenas tecem com os coletivos vizinhos:

As fronteiras são os lugares propícios para a articulação intercultural e o conseguinte desenvolvimento de novas configurações sociais. Os habitantes de povos indígenas fronteiriços podem ter mais relações econômicas, sociais, religiosas, políticas e de parentesco com seus vizinhos de outro país do que com os membros da própria coletividade estatal (TRAJANO VIEIRA, 2016, p. 125).

FIGURA 2 – TERRITÓRIO TRANSFRONTEIRIÇO E MULTIÉTNICO: BRASIL, COLÔMBIA E PERU, REGIÃO DO ALTO SOLIMÕES (AMAZONAS) Figura 2

FONTE: Ismael Negreiros, março de 2018

Na figura a seguir, a qual apresenta o mapa transfronteiriço ou território transnacional, destaca-se a região que abrange três Estados Nacionais (Brasil, Colômbia e Peru), campo de pesquisa deste estudo, e das vivências do lugar de fala do pesquisador.

FIGURA 3 – MAPA TRANSFRONTEIRIÇO QUE INTEGRA BRASIL, COLÔMBIA E PERU, REGIÃO DO ALTO SOLIMÕES (AMAZONAS) Figura 3

A configuração geopolítica da referida fronteira não pode, portanto, ser entendida de forma absoluta, isto é, como se as atuais fronteiras entre os Estados Nacionais do Brasil, Colômbia e Peru correspondessem aos antigos limites territoriais dos povos indígenas ali estabelecidos desde antes do início do encontro colonial. Tal configuração encontra seus limites na distribuição populacional aleatoriamente realizada entre os povos nativos, originários da região, seja esta distribuição motivada por disputas e alianças políticas, seja pela busca de subsistência e constituição de formas de resistência contra os invasores de origem europeia e euroamericana.

Importa registrar que os dados apresentados neste capítulo demonstram que a história dos Tikuna está marcada por um longo processo, caracterizado por tentativas de dominação, extermínio e exploração, que se estende do período colonial até o século XX. Incluem-se nesse processo, massacres nos moldes do ocorrido em Capacete, cujo tema é o assunto central deste trabalho.