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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A concentração dos lugares ocupados pelas notícias referentes ao apartheid nos espaços da FSP e OESP nos permitiram traçar posições específicas quanto à construção da percepção da prática do racismo instituída naquele país, quando confrontada com a questão racial no Brasil. Foi por meio da apresentação do racismo em “outras localidades”, assim expresso no espaço dedicado aos temas “do exterior” ou “internacional”, que tal questão foi apresentada, entendendo-se EUA e África do Sul como os locais onde, “de fato”, tal prática se manifestava e que colocava o Brasil na posição de observador.

Sobressaiu, de um modo geral, a percepção do segregacionismo, exclusão e marginalização dos negros, nestas páginas, como um problema “externo”, dos sul- africanos, da política internacional, mas que dava possibilidades de interferência por parte do Brasil, de modo a chamar, rotineiramente, a atenção dos meios, constituindo-se a região tema constante nas páginas. As instituições de comunicação, assim, acompanharam, deram espaço, lançaram uma interpretação específica ao conjunto de eventos lá ocorridos, aos grupos e indivíduos lá atuantes, cuja análise foi capaz de revelar muito mais sobre os projetos políticos, econômicos, sociais e culturais desejados pelos dois jornais.

A compreensão dos olhares lançados para o sul do continente africano e, mais especificamente, para o apartheid nos jornais FSP e OESP revelou-se como os esforços de um grupo social que, por motivos próprios, lançavam olhares para localidades diversas e as interpretavam a partir de seus problemas, questões, olhares carregados de valores e que colocam em xeque a própria noção de “neutralidade”, tão propalada pela imprensa nas últimas décadas. Tal noção deve ser compreendida como um posicionamento específico, ou seja, de que forma um grupo buscava impor aos outros a sua verdade, de forma a submeter a heterogeneidade de percepções a uma perspectiva unívoca257 .

O acompanhamento das questões relacionadas ao apartheid nos permitiu compreender que, para além das perspectivas de “isenção” e “imparcialidade”, os jornais tinham um modo específico de perceber e analisar o mundo, marcado pela perspectiva da forma como gostariam de ver o Brasil e a sociedade nele integrado. A partir disso, foram lançadas prioridades, perspectivas, as quais aproximaram a África do Sul enquanto região demasiado estratégica aos interesses nacionais e internacionais de expansão do capital.

Imbuídos de concepções específicas quanto aos termos “civilização”, “progresso”, “cultura” e diante da expansão da comunicação, dos efeitos da multiplicidade de processos culturais e as possibilidades oferecidas na busca pela expansão do consumo, tais meios se constituíram como instrumentos os quais tendiam a formatar, em sua prática diária, a diversidade dos processos culturais a uma dinâmica uniforme.

Estes jornais recorreram, sobretudo, à história para caracterizar as práticas racistas evidentes no meio social e as apresentaram como “resquícios de um passado”, relacionadas às formas de governos “tiranas”, “oligárquicas”, “avessas à democracia”, restritas a uma suposta “minoria”, apontadas como aquelas que não haviam acompanhado a dinâmica social.

Tanto para o caso brasileiro da década de 1980 como para o sul – africano, as práticas racistas, para esses dois jornais, foram percebidas não como parte constituinte do universo ideológico, modos de ver, olhar e perceber o mundo, que se realizam nas práticas sociais, mas enquanto atos discriminatórios cometidos individualmente por uma “pequena minoria”, “avessa aos valores” do que entendiam como “progresso”, sem contar as inúmeras possibilidades com que se utilizou de tal acepção para traçar um modelo de desenvolvimento dos quais a população negra teria que “integrar”, para poder ser “aceita”.

Desta concepção de racismo emergia, assim, uma antirracista para os dois jornais, relacionadas às políticas de promoção da expansão do capitalismo, do consumo, como formas de “integrar o negro”, às esferas da sociedade, sem atentar, contudo, para os valores propalados pelos novos movimentos sociais negros, os quais se baseavam na Negritude, enquanto proposta de novas formas de ser, estar, vestir-se no meio social, pentear-se e que apontavam, de modo cada vez mais contundente, o racismo enquanto parte integrante do sistema capitalista.

O apartheid foi tema secundário para o trato das questões africanas até que as propostas de sanções econômicas passaram a incomodar e foram pensadas medidas para lançar as multinacionais como aquelas a quem caberia levar adiante a desintegração paulatina do regime e o diálogo com grupos e instituições específicos.

As propostas de sanções econômicas foram duramente rebatidas pela FSP e OESP. Para desqualificá-las lançavam a perspectiva de que elas eram responsáveis pelo aumento da violência na região, de modo, ainda, a enfatizar qual era sua percepção antiapartheid e o papel que legou à atuação das multinacionais.

Havia diferentes propostas por parte dos dois jornais selecionados quanto aos caminhos a serem conduzidos no que se referia às prioridades lançadas internacionalmente ao

Brasil, os países, às regiões, questões referentes à transferência de tecnologia, abertura dos mercados ao exterior, a partir do qual foi dado um lugar específico ao continente africano e ao apartheid.

Para a FSP houve o trato do racismo a partir de duas perspectivas colocadas, porém, como questões diversas: a composição de notícias sobre casos de discriminações raciais cometidos no Brasil em estabelecimentos diversos, com repercussão nas páginas, apresentação de vozes das vítimas, de militantes, intelectuais chamados a analisar os diferentes casos; foco constante às questões relacionadas ao apartheid sul – africano e sua repercussão, sobretudo nos EUA, a partir da perspectiva de que estava ali um sistema “inviável”.

Esperava, a FSP, que o governo branco tomasse a iniciativa das reformas na África do Sul, de modo paulatino e gradual, mas a intransigência do governo permitiu que se construísse, nessas páginas, a perspectiva de que ele se constituía como um entrave para a expansão do capitalismo na região, tendo em vista como relegava à margem do sistema de consumo parcelas significativas da população negra.

Estes atraíram os olhares do grupo econômico FSP. O jornal buscou ir ao encontro de algumas de suas reivindicações e anseios, mas, neste processo, selecionou, hierarquizou e construiu uma concepção específica de racismo no Brasil, lançou suas perspectivas quanto às medidas para sua extinção e ela passava, naquele momento, para a FSP, pela adoção de uma jurisdição específica para coibir os casos e por maiores oportunidades de acesso ao negro às esferas do consumo.

As supostas correspondências entre as estruturas sociorraciais e a perspectiva quanto as práticas das relações raciais no Brasil permitiram, para a FSP, a construção de uma perspectiva assentada na premissa de que o Brasil deveria projetar-se internacionalmente e, sobretudo, inserir-se no continente africano, valendo-se da pecha de país que poderia oferecer “exemplo” quanto às formas de articulação de suas relações raciais. Evocar o apartheid para a FSP poderia ser demasiado eficaz para o país dialogar com líderes sul – africanos, fazer parcerias de modo a possibilitar sua ascensão enquanto líder no cenário mundial.

A FSP previu que era o momento da elaboração de uma constituição para inibir o que ela chamada de “casos isolados de racismo”, existentes na sociedade brasileira. Esta perspectiva, por sua vez, dialogava com as propostas de mudanças na política externa nacional de forte reaproximação com o continente africano e exigências de mudanças no trato da população negra. Questionou, assim, o racismo, mas foi incapaz de apontá-lo enquanto

uma maneira mais sofisticada de ver e reproduzir o mundo, de modo a propalar, para o Brasil na África, novas possibilidades de relações hierárquicas,

Ao passo que se delineava uma visão demasiado negativa da “maioria negra” eram apontados nomes, grupos e instituições para oferecer o “caminho” político, econômico e cultural a ser seguido na África do Sul mas que pudessem, sobretudo, oferecer possibilidades de trocas com o Brasil. Desse modo, foram apontados na FSP elementos supostamente em comum que visavam marcar, de forma ardilosa, sua entrada naquela região estratégica. Esperava-se, assim, um futuro governo “multirracial”, livre das influências soviéticas, estadunidense e aberto ao Brasil.

Já OESP recorreu de modo mais intenso ao mecanismo da “banalização” enquanto elemento que impossibilitava o trato do racismo como questão significante do social, de modo que se manteve completamente ausente, dessas páginas, o debate sobre o racismo no Brasil.

Ao valer-se dos elementos que colocavam o Primeiro Mundo como local de inspiração ao universo de valores do Brasil previu parcas possibilidades de contato com a África – Negra e repudiou os debates referentes ao impacto das relações entre as áreas, valendo-se, sobretudo, das relações estabelecidas no rol da política externa.

Foram tecidas em OESP fortes críticas quanto aos elementos da política externa levados adiante pelo governo brasileiro relacionados com a África - Negra. Tais posicionamentos eram, também, reflexos da intensa minimização e banalização quanto à caracterização das práticas racistas no Brasil. E, para produzir tal percepção, o jornal se utilizou do apartheid da África do Sul, de modo a comparar as duas regiões e lançar a perspectiva de que o Brasil não poderia “julgar” aquela área, porque esta era uma prática que “todo mundo tem”, supostamente inerente ao ser humano.

De modo que, o foco principal das notícias sobre a região estavam direcionados para a valorização da atuação da África do Sul para a “contenção do comunismo”, o que efetivava uma forte desqualificação aos grupos de oposição ao apartheid, apontados como guerrilheiros, que queriam “desestabilizar o país”.

O racismo foi tratado neste jornal como uma questão “comum”, relativa a “qualquer” sociedade. As perspectivas de desenvolvimento econômico e cultural afastavam quaisquer possibilidades catalisadoras para os esforços de solidariedade com as nações africanas. Os privilégios levados adiante primavam pelas relações com a África do Sul, sua suposta ação “civilizatória” naquela área.

Para OESP o Brasil devia voltar-se para os países apontados como de “Primeiro Mundo”. Houve um grande silêncio quanto ao debate referente às questões raciais, apontando, assim, para uma suposta inexistência de racismo no Brasil ou, quando feita a alusão, era incluída no rol de prática “banal”, “trivial”. Era, assim, algo que não estava presente em universo de questões, não condizente com os novos valores e premissas, questão não premente.

Foram parcas as mudanças de perspectiva quando da libertação de Nelson Mandela, a qual teve, sobretudo, como cerne para a atenção deste jornal o “afastamento da influência soviética”, de modo a permitir que outros olhares fossem lançados indivíduos ou entidades, tais como o CNA, Nelson Mandela.

Era, nas páginas da FSP, impossível compactuar com o apartheid, mas era preciso um abertura controlada que afastasse Cuba, EUA e URSS dos interesses na região a favor do Brasil. Apesar de haver justificado e amenizado seus efeitos para a população negra, OESP percebeu, tendo em vista a perspectiva de afastamento da influência soviética, sobretudo entre 1989 e 1990, que era hora de efetuar o processo de abertura, dado que o chamado “perigo comunista” tinha seu tom esvaziado de sentido. Este jornal construiu, assim, a libertação de Nelson Mandela e o fim do apartheid junto à euforia de triunfo e expansão do capitalismo.