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Questão 3: Por que Adão comeu a maçã?

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscamos nesta tese um modo de enfrentar o ceticismo utilizando uma ideia bastante intuitiva, a nosso ver, que foi a demarcação da irrelevância do ceticismo filosófico para as nossas práticas epistêmicas ordinárias. Esse incômodo filosófico causado pela força teórica e ineficácia prática dos argumentos céticos motivou o interesse de muitos filósofos. Hume foi particularmente incisivo nesse ponto. Moore e Austin, cada um a seu modo, também revelaram esse mesmo sentimento diante do ceticismo. Segundo Hume os argumentos céticos, embora logicamente impecáveis, eram supérfluos e asseverou que ninguém jamais compartilharia seu credo filosófico seriamente com o do cético. Moore assinalou que as conclusões céticas eram absurdas por negarem as óbvias verdades do senso comum, enquanto Austin as considerou falaciosas por, supostamente, infringir nossa linguagem ordinária. Foi um ponto pacífico entre esses dois últimos filósofos a tese de que havia algum equívoco nas maquinações céticas que deveria ser denunciado. Eles não conseguiram resolver o problema, mas, certamente, pavimentaram o caminho que levou a isso.

Um dos pontos denunciados por ambos foi quanto à confusão com que as hipóteses céticas eram estipuladas e contrapostas às nossas alegações ordinárias. Alguns dos argumentos como os dos cérebros numa cuba e gênio maligno, por exemplo, foram utilizados tanto como ceticismo epistêmico quanto ontológico. Alguns filósofos com Thomas Nagel (2004) e Michael Williams (1996), inclusive, defendem que qualquer resolução para o problema do ceticismo passará pela discussão do realismo, hipótese a qual não nos ativemos nesta tese. Essas questões que, de fato, aturdiram Moore e Austin, foram pacificadas, a nosso sentir, com a guinada cética trazida por Peter Unger (1975). Como vimos, Unger resolve essa aparente confusão por motivar o ceticismo a partir da nossa linguagem ordinária. Apesar de manter a estrutura do argumento cartesiano Unger desenvolveu um ceticismo derivado linguisticamente, o que o tornou mais intuitivo e poderoso.

A ideia de que a semântica da linguagem ordinária abriga um ceticismo radical exorcizou as imbricadas questões metafísicas presentes nos argumentos tradicionais e tornou-se o padrão de ceticismo a ser combatido nos últimos 40 anos. Unger estabeleceu que conhecimento é um termo absoluto, isto é, um termo que denota um limite semântico absoluto. Para que o conhecimento fosse atribuído

corretamente, as condições seriam tão exigentes que nos conduziriam naturalmente ao ceticismo. O conhecimento, para Unger, implica certeza. Certeza implica eliminação de toda dúvida. É impossível que eliminemos todas as dúvidas em uma alegação de conhecimento ordinário, portanto quando dizemos que ‘S sabe que p’ dizemos algo falso. O ceticismo derivado da nossa linguagem comum, em que pese alguns equívocos evidentes, como a tese autocontraditória de que ninguém pode saber absolutamente nada, revelou-se filosoficamente profícua.

O primeiro grande filósofo a reagir contra este novo argumento cético foi Fred Dretske. A Teoria das Alternativas Relevantes centrou grande parte do seu ímpeto filosófico em tentar desmontar o argumento cético denunciando-lhe um problema estrutural. Como vimos no segundo capítulo, Dretske nega que o princípio de fechamento seja um princípio válido que regule o uso comum do conhecimento. Segundo este filósofo o cético faz um uso ilegítimo desse princípio para derivar nossa ignorância de proposições de senso comum. Segundo sua teoria, é impossível saber que as hipóteses céticas são falsas. E embora reconheça que as proposições de senso comum impliquem logicamente a falsidade de tais hipóteses, defendeu resolutamente que a ignorância das hipóteses céticas não afetavam de qualquer modo nossas proposições ordinárias. Para Dretske, as hipóteses céticas não afetam nosso conhecimento ordinário porque são irrelevantes.

Em outra linha Dretske defendeu, contra Unger, que o caráter absoluto do conhecimento não implica ceticismo. Todo termo absoluto possui sua semântica regulada por um padrão maleável, relativo a aspectos contextuais e pragmáticos. A teoria de Dretske nos foi muito útil porque estabeleceu um modelo de enfrentamento com o cético que buscava desarmá-lo, como sugeriu Stroud, ao invés de tentar refutá-lo, como Moore tentou sem sucesso. Sua teoria, entretanto, não conseguiu estabelecer adequadamente um critério de demarcação entre as alternativas relevantes e irrelevantes, de sorte que o incômodo rótulo de teoria ad hoc pareceu- lhe incontornável. Qualquer teoria que queira enfrentar o cético dissolvendo o argumento deve fazê-lo de modo legítimo. Não se pode aceitar que as hipóteses céticas são irrelevantes somente por serem hipóteses céticas. Reações como a de Jonathan Vogel, por exemplo, expõem a insatisfação com que a solução dretskeana do ceticismo foi recebida por grande parte da literatura. A teoria, diz Vogel, “é profundamente defectiva”. E continua afirmando que “ela falha como uma resposta ao ceticismo e é insustentável como um tratamento positivo do que e de como nós

sabemos” (1999, p. 155) e concluiu, de modo apressado a nosso ver, que a Teoria das Alternativas Relevantes não passava de um modismo epistemológico, algo que pode ser visto “como uma ideia que o tempo trouxe e levará” (Idem, p. 172). Discordamos de Vogel quanto ao caráter efêmero da teoria de Dretske. Apesar de aceitarmos que ela não resolve adequadamente o problema do ceticismo, há nela insights valiosos que foram rearranjados em outra teoria mais ampla e mais completa com Jonathan Schaffer.

Tentamos, alternativamente, com David Lewis explorar outra frente anticética que buscava, assim como Dretske, dissolver o problema ao invés de refutá-lo. A solução contextualista de Lewis nos trouxe como elemento novo um revisionismo semântico. Segundo estabeleceu, “conhecimento” é um termo indexical que possui suas condições de verdade (e de assertibilidade), atreladas a um domínio de alternativas relevantes contextualmente estabelecido. Lewis comungou com Unger a tese dos termos absolutos, mas rejeitou a conclusão cética que seria derivada deste fato.

O conhecimento é absoluto porque requer a eliminação de todas as alternativas para a proposição alvo. Contudo, o quantificador todos possui um alcance semântico restrito. Portanto, Lewis concordou que para que ‘S saiba que p’ S deve excluir todas as alternativas indexadas pelo quantificador que formam um domínio. O que está fora do domínio é irrelevante para a verdade do que foi dito. Segundo Lewis, nossa evidência deve excluir todas as alternativas relevantes, que configuram o domínio, e devemos ignorar apropriadamente as alternativas que se encontram fora do domínio, ou seja, as alternativas irrelevantes. Para delimitar quais alternativas podem ser propriamente ignoradas e quais não podem Lewis estabeleceu um conjunto de regras. Todavia, pelo menos duas delas se mostraram problemáticas. A regra da atenção e a regra da semelhança, em conjunto, tornam quase impossível qualquer conhecimento, por mais ordinário que seja.

A teoria de Lewis é muito feliz em demonstrar como temos conhecimento ordinário. Ele explica que em nossos proferimentos de senso comum as hipóteses céticas estão fora do domínio, são irrelevantes. Contudo, David Lewis é defensor de uma versão estrita do princípio de fechamento. Com isso, ele criou um grande problema para seu tratamento anticético. Uma das consequências da aceitação do fechamento é que nos comprometemos com o conhecimento da falsidade das hipóteses céticas. É impossível, segundo o próprio Lewis, ter evidência que elimine

tais hipóteses, por isso, nosso conhecimento da falsidade delas se daria pelo ignorar apropriadamente. Mas não podemos ignorar uma hipótese para a qual damos atenção. Teríamos que criar algo como uma aberração epistêmica para acomodar a tese de que conhecemos uma determinada proposição sem crer, sem evidência ou justificação. Teríamos que inferir que a ignorância é o único modo de conhecermos. Essa conclusão é algo totalmente contraintuitivo. O anticeticismo apresentado por Lewis apesar de bastante sofisticado nos pareceu insatisfatório como uma resposta ao ceticismo.

Por fim, buscamos enfrentar o ceticismo a partir de uma teoria que aliasse o que havia de melhor na teoria de Dretske e de Lewis. Encontramos no Contrastivismo de Schaffer o que precisávamos para dar uma resposta robusta ao problema do ceticismo. Schaffer conseguiu retirar da teoria de Dretske o que havia de melhor, a nosso ver, que foi o reconhecimento da nossa modéstia epistêmica, isto é, que nos é impossível saber a falsidade das hipóteses céticas, e a intuição primordial de que a atribuição de conhecimento deve ser feita, sempre, em contraposição a um contraste formado por alternativas relevantes que configuram o caso em análise. Da teoria de Lewis foi aproveitada a ideia de que a atribuição de conhecimento possui um elemento relativístico e que o fechamento é um princípio válido.

Assim como Lewis, Schaffer utilizou-se de um recurso linguístico para estabelecer as bases da sua epistemologia. Seu revisionismo semântico-epistêmico trouxe um elemento inovador, qual seja, a ideia de que o conhecimento é essencialmente ternário. Ou seja, segundo Schaffer, conhecimento é um termo semântica e epistemologicamente ternário. Isto quer dizer que toda vez que o atribuímos levamos em consideração um sujeito, uma proposição e um contraste. Esse contraste é variável (é o elemento relativo do conhecimento) e nem sempre é explícito. Às vezes o contraste está elíptico, então Schaffer propõe que ao invés de atribuirmos conhecimento/ignorância simpliciter deveríamos, antes, fazer a seguinte pergunta: ‘S sabe que p ao invés de que?’ Esse terceiro elemento da relação de conhecimento, implícito ou explícito, é constitutivo da atribuição de conhecimento, quer estejamos cônscios ou não.

Ao atrelar a capacidade epistêmica de discriminar a alternativa verdadeira dentre várias possibilidades à capacidade de responder uma pergunta implícita ou explícita na atribuição de conhecimento, Schaffer estabeleceu um critério não ad hoc

para demarcar as alternativas relevantes das alternativas irrelevantes. Ao codificar na atribuição de conhecimento as alternativas contra as quais devemos ser capazes de discriminar da alternativa verdadeira, Schaffer fecha a porta para o cético, desarmando-o. Assim, o contrastivista pode legitimamente afirmar que Moore sabe que tem mãos ao invés de próteses, mas não sabe que tem mãos ao invés de uma ilusão maligna do Gênio cartesiano. Ao codificar ternariamente a atribuição de conhecimento, Schaffer pretendeu ter mostrado de modo claro que não há qualquer contradição entre ambas as afirmações acima. Relativamente ao contraste contra o qual o conhecimento ou ignorância de Moore foi atribuído, Moore sabe e não sabe que tem mãos, sem contradição.

Como toda teoria nova, o Contrastivismo vem sendo alvo de inúmeros ataques, alguns dos quais discutimos na derradeira seção do último capítulo, mas acreditamos que dentre as teorias disponíveis nos últimos 40 anos esta foi a que melhor apresentou um modelo para proteger o conhecimento ordinário das garras do cético. Fez isso, segundo mostramos, utilizando-se de um novo instrumento semântico-epistêmico, mas, principalmente, sem recorrer a qualquer artifício ad hoc. Esses resultados nos persuadem de que a teoria é sólida, promissora e digna de ser defendida como a que melhor desarma o complicado problema cético.