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Considerações sobre o Contextualismo Epistêmico

4. CAPÍTULO III DAVID LEWIS: CONTEXTUALISMO, RELEVÂNCIA e CETICISMO

4.1. Considerações sobre o Contextualismo Epistêmico

Quando falamos em teoria contextualista do conhecimento estamos, na realidade, nos remetendo a várias teorias distintas elaboradas por diversos filósofos. Não há apenas uma teoria que responda por este nome, o que há, com efeito, é um conjunto de teses gerais que servem de parâmetros a partir dos quais os epistemólogos partidários destas teses procuram dar conta dos problemas que afligem a epistemologia. Para dizer o que é o contextualismo epistêmico utilizaremos a definição oferecida por um dos mais populares defensores desta teoria, Keith DeRose.

Segundo DeRose, o contextualismo em epistemologia diz respeito a uma variedade de posicionamentos segundo os quais as questões relativas a conhecimento e justificação tem alguma relação com o contexto. Em resposta à pergunta: o que é o contextualismo? DeRose responde,

“Contextualismo” refere-se à ideia de que as condições de verdade, atribuição de conhecimento e negação de conhecimento de sentenças (sentenças na forma “S sabe que P", "S não sabe que P" e variações relacionadas a tais sentenças) variam de certa maneira de acordo com o contexto em que são proferidas. O que varia é o padrão epistêmico que S deve satisfazer (ou, no caso de uma negação do conhecimento, falhe em satisfazer) para que tal proposição seja verdadeira. Em alguns contextos, "S sabe que P" requer, para a sua verdade, que S tenha uma crença verdadeira de que P e também esteja em uma posição epistêmica muito forte com relação a P, embora em outros contextos a mesma proposição possa requerer apenas, para a sua verdade, além da crença verdadeira de S de que P, que S satisfaça algum padrão epistêmico baixo. Assim, o contextualista permitirá que um falante possa dizer verdadeiramente que "S sabe que P", enquanto outro falante, em um contexto diferente, onde os padrões mais elevados estão vigorando, possa dizer verdadeiramente "S não sabe que P", embora ambos os falantes estejam falando sobre o mesmo S e o mesmo P, ao mesmo tempo. (DeRose 1999a, p 1-2 grifo no original)

A teoria contextualista do conhecimento, assim definida por DeRose, torna explícita a importância do contexto para uso correto do conceito de conhecimento. Com efeito, ainda longe de ser uma teoria consensual, o contextualismo se afigura como um dos tópicos mais discutidos na epistemologia recente. Seus defensores e

críticos vêm produzindo uma vasta literatura sobre este proeminente tema69. Cumpre, outrossim, ressalvar que o contextualismo não esgota sua temática no campo da epistemologia. Trata-se de uma teoria ampla com desdobramentos em áreas importantes como a teoria da ação, ética e filosofia da linguagem. O próprio Lewis é um dos precursores deste viés filosófico. Suas ideias iniciais foram publicadas em um texto original intitulado Scorekeeping in a Language Game (1979).

Em 1979 Lewis ainda não estava tratando especificamente de conhecimento, mas de filosofia da linguagem. Seus argumentos, entretanto, lançaram as bases sobre as quais articulou seu texto epistemológico seminal Elusive Knowledge de 1996. O propósito de Lewis no texto de 1979 foi responder à tese semântica de Peter Unger sobre os termos absolutos, de como eram impossíveis de serem satisfeitos e como implicavam um ceticismo radical.

Segundo Lewis (1979) a dinâmica conversacional é regida por regras assim como um jogo. Algumas regras são constitutivas e outras são apenas regulativas. Em um jogo de xadrez, por exemplo, o movimento das peças é algo constitutivo do próprio jogo. Alguém que movimenta as torres em diagonal, o bispo em forma de L e os peões de forma lateral e aleatória não estará jogando xadrez, apesar de estar diante do tabuleiro e das peças. Mover as peças corretamente faz parte do que constitui o próprio jogo. Todavia, o fato de um dos jogadores jogar com as peças pretas ou o tempo de duração das partidas é algo apenas regulativo. Ao conjunto de regras, tanto as constitutivas quanto as regulativas, que compõem o jogo Lewis chama apenas de score. Doravante quando quisermos nos referir ao conjunto de regras que constituem e regulam um jogo utilizaremos esse termo.

Uma dinâmica conversacional, segundo Lewis, possui uma estrutura análoga. No jogo de xadrez temos elementos materiais como peças e tabuleiro, de sorte que fica mais intuitivo acompanhar o scoring do jogo. Em um jogo de linguagem os componentes são “entidades abstratas [...]. conjunto de proposições pressupostas, limites entre ações permitidas e não permitidas, ou assemelhados” (LEWIS 1979, p. 345). Ademais, o valor de verdade e a aceitabilidade de certos proferimentos dependem “dos componentes do score conversacional no momento da conversação em que foram proferidos” (Ibidem). A metáfora visa explicitar que o jogo é dinâmico e

69 Para uma defesa do contextualismo ver DeRose (1992; 1995; 1999 e 1999a) e Cohen (1988;

que, portanto, o score deve regular a evolução das etapas do jogo. Essa cinemática do score é regulada por regras específicas. Assim como no xadrez não se pode recuar os peões após ter realizado o movimento ascendente, e não se pode arbitrariamente recuperar as peças que já se encontram fora do tabuleiro, em um jogo de linguagem a cinemática funciona da seguinte maneira: “Se no tempo t o score conversacional é s, e se entre o tempo t e o tempo t’ o curso da conversação é c, então no tempo t’ o score é s’, onde s’ e t’ são determinados em certo modo por s e c” (LEWIS 1979, p. 345).

Todo o esforço de Lewis em 1979 se concentrou em, ao traçar uma analogia entre um jogo (ele utilizou o baseball) e o jogo de linguagem, mostrar que as regras que regulam o score conversacional são regras de acomodação. Seu contextualismo orbita no entorno da tentativa de demonstrar como a acomodação regula os padrões que utilizamos para aferir a aceitabilidade e também as condições de verdade de certos proferimentos. Alguns proferimentos são tomados como verdadeiros, mas estão inseridos em um espectro de vagueza que deve ser estreitado, acomodado a partir do score contextual. Se o score ensejar um padrão muito alto o proferimento pode se tornar falso, ao passo que se o score contextual ensejar um padrão muito baixo, o proferimento pode ser verdadeiro. A delimitação da vagueza das proposições asseridas “é algo que depende do contexto. O que é suficientemente verdadeiro [true enough] em uma ocasião não é suficientemente verdadeiro em outra. Os padrões de precisão em vigor são diferentes de uma conversação para outra, e pode mudar no curso de uma conversação” (LEWIS 1979, p. 352).

Essas considerações de Lewis, como já mencionamos, visam enfrentar a concepção semântica de Peter Unger. Relembremos! Unger afirmou que uma consequência da utilização de termos absolutos é o ceticismo, já que tais termos possuem padrões de satisfação absurdamente exigentes. Imaginemos que você afirme que a rua onde você reside é plana. Você poderia se furtar de dizer que a bancada de mármore da sua cozinha é mais plana? Segundo Unger, dizer isso é afirmar uma inconsistência, já que não se pode dizer que alguma coisa é mais plana do que algo que já é plano. Essa é uma consequência direta da semântica dos termos absolutos de Peter Unger. Deveríamos conceder retroativamente, segundo Unger, que realmente minha rua não era plana. Do mesmo modo é possível encontrar algo mais plano que a bancada de mármore da cozinha. Esse movimento

ascendente ao infinito conduz indelevelmente ao ceticismo ferrenhamente defendido por Unger. Nas palavras de Lewis,

A resposta correta a Unger, eu sugiro, é que ele está mudando o score sobre você. Quando ele diz que a bancada é mais plana que a rua o que ele diz é aceitável somente sob a elevação nos padrões de precisão. Sob os padrões originais os buracos na rua são muito pequenos para serem relevantes [...]. Uma vez que o que ele diz requer a elevação dos padrões, os padrões de acomodação também se elevam. Então não é mais suficientemente verdadeiro que a rua é plana. O que não altera o fato de que era suficientemente verdadeiro no contexto original. “a bancada é mais plana do que a rua” dito sob padrões elevados não contradiz “a rua é plana’ dito sob padrões não elevados, não mais do que “é de manhã” dito pela manhã contradiz “é tarde” dito à tarde. Unger não mostrou de modo algum que o novo contexto é mais legítimo do que o velho. Ele pode, na realidade, criar um contexto atípico em que dificilmente algo pode ser aceitavelmente chamado de “plano”, mas ele não lançou, desse modo, qualquer descrédito sobre o contexto mais usual em que baixos padrões de precisão estão em voga” (Idem, p. 353).

Nesta longa citação podemos ver o núcleo duro da estratégia contextualista de Lewis. A ideia é que cada contexto de proferimento evoca um padrão de avaliação para esse proferimento. O padrão é regulado pelas regras de acomodação e a alteração nesses padrões altera o score. O que equivale a dizer que ao comparar proposições assimétricas, dado que proferidas a partir de scores diferentes, Unger faz uma jogada inválida70. Ainda nos referindo ao excerto acima

percebemos a inserção de outro elemento importante da teoria do conhecimento desenvolvida por Lewis em 1996, a saber, que o que é relevante para afetar as condições de verdade de um proferimento é contextualmente estabelecido.

A importância do contexto é muito significativa, pois é ele quem determinará, dentre outras coisas, quais alternativas são relevantes e quais devem ser ignoradas. No senso comum de Moore, por exemplo, ao proferir, como ele o fez, que sabia com certeza que “aqui está uma mão” e “aqui está outra” enquanto olhava para suas próprias mãos, sob boa luz e sem influência de drogas, o contexto lhe garantia que o que ele dizia era verdade. Naquele contexto as hipóteses céticas estavam sendo ignoradas, já que se configuravam como irrelevantes. Lewis defende que “o limite entre a possibilidade relevante e a ignorada é um componente do score conversacional” (LEWIS 1979, p. 354). O cético pode inserir possibilidades até então

70 Para conferir uma nota acerca do alcance e eficácia da regra da acomodação de Lewis (1979)

ignoradas por Moore, sobre sonhos filosóficos e cérebros numa cuba. Uma vez que essas possibilidades entram no jogo alteram o score inicial, e junto com isso, alteram as condições de verdade do senso comum mooreano. Lewis insiste, reforçando seu viés contextualista, que Moore “não estava de modo algum errado quando alegou conhecimento infalível. O que ele disse era verdade com relação ao score que vigorava até então” (LEWIS 1979, p. 355).

Se as intuições contextualistas, tal como apresentadas acima, são sólidas o suficiente para nos convencer a aceitá-la sem reservas é uma questão que deixaremos em aberto para que o nosso leitor decida. Contudo, pincelar esses elementos foi importante para apresentar o background da teoria do conhecimento de Lewis.

Nosso objetivo aqui, sendo mais específico, será (i) observar se a teoria de David Lewis consegue oferecer um tratamento adequado da relevância epistêmica (ii) mostrar como é feita a exclusão de alternativas e, principalmente (iii) avaliar a resolução contextualista do puzzle cético. Um dos desafios de Lewis será o de oferecer um critério de relevância que não seja ad hoc. O maior percalço da TAR, defendida por Dretske e discutida no capítulo anterior, parece residir, justamente, na aparente arbitrariedade com que certas alternativas foram classificadas como irrelevantes. Para realizarmos nossos objetivos neste capítulo escrutinaremos o clássico artigo de Lewis Elusive Knowledge de 1996. Este texto tornou-se particularmente influente por sua sofisticação e clareza expositiva. É sobre ele que discorremos nas seções seguintes.