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Considerações finais

No documento Alentejo(s) (páginas 129-136)

“SENSESCAPES” NO ROMANCE GALVEIAS (2014)

4. Considerações finais

quotidianidades frugais. “Nesse serão, os galveenses jantaram sopa de fei- jão com couve. A seguir, limparam a boca com uma peça de fruta e ficaram pensativos.” (Peixoto, 2014: 25); “[...] num domingo, após um almoço de borrego (..).” (p. 89); “[...] os cinquenta e um anos de casamento, inverno após inverno, sem filhos, com sopa de nabiça na época delas. [...] O pingo do entrecosto, frio e saboroso, não tirava a impressão desgostosa ao pão, espécie de bolor azedo.” (pp. 125, 126); “Canja de galinha, arroz à valen- ciana, bacalhau à brás, jardineira de vaca. O Chico Francisco não poupou na ementa [do casamento].” (p. 182); “[...] a tradição das papas de milho em Galveias.” (p. 254); “[...] quaresmas de peixe frito [...].” (p. 255)

Mas a descrição e o uso da paisagem gastronómica em Galveias não se coaduna apenas com aspetos cíclicos da natureza, servindo também para invocar situações incómodas, onde a metáfora da comida ajuda a ilustrar micropaisagens individuais e temporárias, reveladoras de estados de alma:

“Olhou de lado para o parceiro: atacava uma carne à jardineira que parecia já ter sido comida, cagada, comida outra vez e cagada outra vez.” (p. 139);

“Não se sentiam à vontade para dar entrada no quarto de uma mulher parida [...], com intuito de analisarem um ser do tamanho de um paio.” (p. 275)

Destaque-se o pão, elemento característico do aproveitamento do solo daquele território, indissociável da identidade coletiva local, estruturante da paisagem dos encontros de toda uma comunidade, independentemente do género, da idade ou da classe social. Atente-se em dois exemplos:

“Apertado de encontro à janela, cortava cubos de pão que sabiam a enxo- fre.” (p. 141); “Foram as crianças que descobriram o pão. Desinteressadas de pastéis de nata ou de mil-folhas, as crianças tiravam o conduto e só co- miam o pão.” (p. 183). O autor usa o pão como elemento contínuo, discre- tamente presente na ação, indispensável aos intervenientes e ao desenrolar da ação. O sabor intenso do enxofre, entranhado no pão, leva toda uma comunidade a caminhar ao encontro da “coisa sem nome”, reunindo-se no final da história naquele lugar onde tudo começara. E “Suspenso, o uni- verso contemplava Galveias” (p. 278), a sua gente e a sua paisagem.

A PAISAGEM ALENTEJANA NA ESCRITA DE JOSÉ LUÍS PEIXOTO 129

jeitos constroem os lugares e os lugares constroem os sujeitos, numa mo- delagem identitária que ocorre nos dois sentidos, essa realidade está plas- mada neste romance. Além disso, considerou-se a pertinência da história para se perceberem os mecanismos constituintes da paisagem alentejana, tendo como base as “sensescapes” – paisagens sensoriais – e dando-se primazia à perceção dos sentidos audição, olfacto e paladar, para além da visão. Partindo de uma experiência pessoal, do seu espaço vivido da in- fância e da juventude, o escritor do Alto Alentejo convoca as leitoras e os leitores para uma imersão textual no território e na sociedade do Alen- tejo de meados dos anos oitenta do século XX. José Luís Peixoto recorre à palavra e à invocação sensitiva para descrever e apreciar a representa- ção de espaços e tempos onde a natureza e o ser humano se fundem num só, numa única identidade que deriva de uma forte relação individual e comunitária com a terra.

As personagens de Galveias são por isso fundamentais no processo de construção, integração e análise paisagística alentejana, numa dimensão multissensitiva, dando pistas de análise, oriundas de perspetivas diferen- ciadas, onde cabem mulheres e homens com estados de saúde físicos e psi- cológicos, aspirações, gostos e visões díspares. José Luís Peixoto (re)cons- trói e (re)cria histórias e percursos de pessoas e de lugares, permitindo uma reflexão crítica sobre a importância da paisagem alentejana na estruturação da identidade territorial e social dos seus habitantes.

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Apoios:

Este trabalho foi desenvolvido no Centro de Estudos em Geografia e Ordenamento do Território (CEGOT) e apoiado: pelo Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional através do COMPETE 2020 – Programa Operacional ‘Competitividade e Internacionalização’, com a Bolsa POCI-01- -0145-FEDER-006891; e por fundos nacionais, através da FCT (Fundação para a Ciência e Tecnologia), com a Bolsa UID/GEO/04084/2013.

This work was developed in Centre of Studies in Geography and Spatial Planning (CEGOT) and supported by the European Regional Development Funds, through the COMPETE 2020 – Operational Programme ‘Competitiveness and Internationalization’, under Grant POCI-01- -0145-FEDER-006891; and by National Funds through the Portuguese Foundation for Science and Technology (FCT) under Grant UID/GEO/04084/2013.

Notas

1 Sugere-se a visualização do episódio dedicado a José Luís Peixoto, da série documental

“Os herdeiros de Saramago”, disponível em: https://www.rtp. pt/play/p7972/e505730/

herdeiros-de-saramago (acedido a 07/12/2020).

2 A opção de se manterem as designações “sensescapes”, “soundscape”, “smellscape” e

“tastescape” no original, sem se assumir a sua tradução nos títulos e subtítulos deste capítulo, deve-se a considerarmos que assim se respeitaria a conceção das autoras e autores citados.

Contudo, deixa-se uma proposta de tradução para a língua portuguesa.

CAPÍTULO 7

Óleo sobre tela de Maria de Lourdes Carvalho (Coleção particular)

Resumo

Da charneca alentejana à Terra Prometida – Representações do espaço em O Pão não cai do Céu, de José Rodrigues Miguéis

Com este estudo procura-se compreender o modo como a categoria do espaço é trabalhada no romance O Pão não cai do Céu, de José Rodrigues Miguéis, em articulação com as personagens, com o tempo e, sobretudo, com a figura do nar- rador. Analisando-se alguns dos paratextos, compreende-se que o processo gené- tico da obra, explicado pelo autor, é indissociável quer do seu estatuto genológico, quer das estratégias discursivas que nela estão presentes. Compreende-se, assim, que a representação do espaço neste romance é fortemente marcada pela subjecti- vidade. Esta não depende apenas da focalização adoptada pelo narrador; deve-se também à presença de marcas discursivas autorais, as quais são objecto de análise.

Palavras-chave: Campo. Paisagem. Ruralidade. Alentejo. Romance português.

Descrição.

Abstract

From Alentejo’s moorland to the Promisse Land – Representations of space in O Pão não cai do Céu, by José Rodrigues Miguéis

This study tries to understand how space, as a category, is conceived in the novel O Pão não cai do Céu, by José Rodrigues Miguéis, in articulation with the chara- cters, with time and, above all, with the figure of the narrator. By analyzing some of the paratexts, we understand that the genetic process of the work, explained by the author, is inseparable both from its genological status and from the discursive strategies that are present in it. Therefore we understand that the representation of space in this novel is strongly marked by subjectivity. This does not depend only on the focus adopted by the narrator; it is also due to the presence of the author’s discursive marks, which are also object of analysis.

Keywords: Countryside. Landscape. Rurality. Alentejo. Portuguese novel.

Description.

DA CHARNECA ALENTEJANA À TERRA

No documento Alentejo(s) (páginas 129-136)