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Introdução ao desafio, ao tema, à obra 1 1 O desafio − Motivações

No documento Alentejo(s) (páginas 118-123)

“SENSESCAPES” NO ROMANCE GALVEIAS (2014)

1. Introdução ao desafio, ao tema, à obra 1 1 O desafio − Motivações

A PAISAGEM ALENTEJANA NA ESCRITA

DE JOSÉ LUÍS PEIXOTO. GEOGRAFIA DAS

Dando primazia à perceção dos sentidos audição, olfato e paladar, o autor (re)constrói e (re)cria histórias e percursos de pessoas e de lugares, permitindo às leitoras e aos leitores uma reflexão crítica sobre a natureza nas suas várias componentes, as relações sociais nesse contexto e a sua importância na estruturação da identidade territorial daquela zona do Alto Alentejo. Autoras como Raposo, Mira e Ribeiro (2018: 86) corroboram a validade do uso dos sentidos na análise crítica da paisagem, tendo evi- denciado, através de experiências pedagógicas in loco, a relevância de uma metodologia de base sensorial para o estabelecimento de relações afetivas e felizes entre os indivíduos e os lugares. Segundo elas, tal me- todologia promove o desenvolvimento de processos mais sólidos, efeti- vos e satisfatórios de aprendizagem e de relação entre os indivíduos e as unidades paisagísticas.

Fotografia 1. Um exemplar de Galveias em Galveias, na mão do autor

Fonte: https://galveiasno-

mundo.blogs.sapo.pt/galveias-em-galveias-473 (acedido a 30/11/2020)

1.2 O tema – Sobre a interdisciplinaridade

Parece existir, cada vez com mais frequência, uma necessidade urgente em aliar perspetivas disciplinares que, aparentemente, se entendem como desconectadas e com poucas linhas comuns de interesse. Por isso, Velez de Castro (2020: 15) acentua “[...] a necessidade absoluta das humanidades e das ciências sociais como produtoras de conhecimento para a sociedade, a qual precisa de refletir sobre a evolução das suas práticas; e de uma forma específica, aliar visões da Geografia e da Literatura, enquanto campos de saber interligados pela vertente cultural, social e humanista.” Também Cra- vidão e Marques (2000: 24) destacam a abstração e a necessidade de se encontrarem novos caminhos e novas ligações no cerne da Geografia Hu- mana, sendo por isso desejável a ponte com áreas disciplinares aparente- mente distantes, como a Literatura e outras Artes, e a Psicologia. Costa

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(2019: 21) chama a atenção para a crescente evidência de que a Literatura é capaz de expressar representações da realidade geográfica, funcionando como fonte de investigação e obtenção de dados sobre a relação entre os seres humanos e o território. Também Vitte (2020: 67) assume como útil a aliança da Geografia com a Literatura, na medida em que facilita a compre- ensão da convergência entre os sistemas simbólicos e as práticas materiais de uma sociedade.

Se por um lado os sujeitos constroem os lugares, por outro os lugares constroem os sujeitos: a modelagem identitária ocorre nos dois sentidos.

Assim, entende-se que tratar este tema – a análise da paisagem alentejana a partir de uma articulação conjunta da Geografia e da Literatura – além de desejável, é necessário. Não só por constituir uma abordagem diferenciada e por isso mais rica, com recurso à análise de conteúdo e à reflexão crítica, mas ainda por recolher contributos de campos conceptuais distintos mas complementares. Por isso a ciência geográfica se vale do texto literário na busca de pistas de investigação, já que, e tal como escreve André (2020:

32), “se entendem os livros e suas textualidades como labirintos que per- mitem múltiplos caminhos em diferentes direções”. Souza (2011: 74) des- taca o papel da leitura interpretativa como essencial para a compreensão das práticas sociais e culturais em que as comunidades humanas estão inseridas;

e Shurmer-Smith (2002: 131) converge nesta ideia, ao defender que a forma de comunicação e de representação usada pelo texto literário influencia o encontro entre as pessoas e os lugares, integrando aquelas no ambiente, na espacialidade e na temporalidade paisagísticas, elementos que aparecem plasmados e profundamente abordados em muitas obras ficcionais.

Numa lógica cronotópica, autores como Solórzano, Oliveira e Guedes- -Bruno (2009: 51,52), assim como Siqueira, Castro e Faria (2013: 559), referem-se às pontes necessárias entre o espaço e o tempo para a conceção da paisagem como documento histórico. Defendem que a história ambien- tal deve incluir geógrafos, numa visão holística e transdisciplinar que torne mais rico o estudo das relações entre o ser humano e a natureza. Cabe aqui o conceito de “lugar” de Yi-Fu Tuan (2008, cit. p. Carvalho e Zanchi, 2020:

11), como estrutura de topofilia, caracterizado pelas relações afetivas, pelos laços da memória, pelo valor atribuído a um território. Tuan destaca a im- portância da experiência, das emoções e das sensações na construção dos lugares e da conceção percetiva que deles se tem. Assim, parece estar justi- ficada a escolha do autor e da obra, uma vez que em Galveias a paisagem alentejana é construída e descrita sob a égide dos sentidos e das sensações.

1.3 A obra – Lugar(es) e escala(s)

Morin (2009: 287) alude à paisagem como resultante de um processo ideológico e simbólico, que tem o poder de reproduzir relações entre as pes- soas e o seu mundo material, ou seja, práticas sociais. Esta forte conexão simbólica ajuda a estruturar a identidade social, numa escala tanto coletiva como individual. Nesse sentido, em Galveias − um registo ficcional de várias histórias de habitantes de uma povoação alentejana cujo denominador co- mum é a queda de um meteorito − José Luís Peixoto apresenta-nos uma vi- são holística e sensorial sobre os elementos diferenciadores da unidade geo- gráfica regional, trazendo para a ficção experiências por si vividas nessa sua vila de origem1, que lhe marca profundamente a forma de estar e de observar o mundo. O escritor fala-nos das suas raízes e dos seus espaços de vivência familiar (Rego, 2012: 2), colocando em diálogo o seu mundo interior com o mundo exterior, mostrando uma perspetiva da vivência das pequenas povo- ações do interior do país. (Rego, 2016: 313, 314).

A obra divide-se em duas partes: uma primeira, composta por sete capí- tulos referentes a acontecimentos ocorridos em janeiro de 1984; uma se- gunda, dividida em nove capítulos alusivos a ocorrências vividas em setem- bro de 1984. A história inicia-se numa noite fria de início de ano, quando uma “coisa sem nome”, vinda do espaço a grande velocidade, cai na Her- dade do Cortiço, nas imediações da vila de Galveias, uma freguesia do concelho de Ponte de Sor, distrito de Portalegre, Alto Alentejo (Mapa 1).

Mapa 1. Localização da fre- guesia de Galveias no con- celho de Ponte de Sor, distrito de Portalegre Fonte: https://pt.wikipe- dia.org/wiki/Ponte_de_Sor#/me- dia/Ficheiro:LocalPonteDe- Sor.svg e https://www.heraldry- -wiki.com/arms/websites/Portu- gal/www.fisicohome- page.hpg.ig.com.br/psr.htm (acedido a 30/11/2020)

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Peixoto (2014: 13) inicia a história com uma determinante geográfica re- lativamente precisa, a localização: “Entre todos os lugares possíveis, foi na- quele ponto certo.” À queda do que se julga ser um meteorito não corres- ponde uma indicação espacial absoluta, baseada numa referência de coordenadas. Contudo, a frase inicial é incisiva, como que convencendo as leitoras e os leitores de que só ali poderia ter ocorrido o fenómeno. Vilela (2015: 472) acrescenta uma informação relevante: “Parece-me que o con- ceito de lugar em Galveias nasce sobretudo da interseção entre duas noções fundamentais: a do valor intrínseco e universal do património terrestre, e a da sabedoria de o conhecer.” Esta sabedoria dispensa qualquer tipo de refe- rência geográfica, pois o autor tem a generosidade de integrar quem o lê, não como um(a) alóctone, mas como alguém convidado(a) a transformar-se em autóctone, a entrar em casa e conhecer os meandros de uma comunidade e de um território. Mas, por outro lado, ele é preciso na geografia dos lugares da freguesia e arredores, estando isso patente ao longo de toda a história.

A representação multiescalar é evidente em Galveias, numa lógica que vai desde o espaço do edifício – café do Chico Francisco; loja do Bartolo- meu; casa dos Cabeças – até aos locais de união dos habitantes do lugar – Capela de São Saturnino; Capela do Senhor das Almas; adro da igreja;

Igreja da Misericórdia; Alto da Praça; Deveza; jardim de São Pedro; rua de São João; rua da Fonte Velha; rua do Outeiro; rua da Amendoeira; Quei- mado; forno da cal; campo da Assomada; São Pedro; São João; Azinhaga do Espanhol. Está-se perante uma geografia íntima da freguesia, do seu núcleo e do seu entorno, cujas referências se fazem pelos edifícios, ruas, praças e outras zonas urbanas.

Mas a história dialoga também com a região geográfica envolvente – recta da Ervideira; estrada de Avis; monte da Torre; herdade da Cabeça do Coelho; herdade do Cortiço; Ribeira das Vinhas; Vinhas Velhas; Aldeia de Santa Margarida; barragem da Fonte da Moura; Vale das Mós; Ervideira, Longomel, Tramaga; Ponte de Sor; Benavila; Alcórrego; Torre das Vargens;

estrada de Ponte de Sor; Escola Secundária em Ponte de Sor – mostrando movimentos virados ao exterior, seja mediante as relações sociais, seja por razão de afinidades territoriais. Há ainda outras duas escalas que José Luís Peixoto usa para concretizar a geografia de Galveias. A nacional, fazendo referência a localidades com ligação evidente à aldeia da história: Avis (Be- navila,) Sousel (Cano, Almadafe); Alter do Chão; Estremoz; Mora; Montar- gil; Constância (Quartel de Santa Margarida); Tomar; Coruche (Azervadi- nha); Vidigueira; Arronches; Elvas; Coimbra (Mondego, Alto de Santa Clara); Lourinhã; Loures (Prior Velho); Lisboa (Hospital de Santa Maria,

rua Morais Soares, Praça do Chile); Montijo; Cinfães; Proença-a-Nova; Car- taxo; Porto (Campanhã, porto de Leixões), Espinho. E a escala internacional, através de várias personagens que estabelecem a conexão entre países: Es- panha (Badajoz, Torremolinos); Angola; Guiné; Brasil (Minas Gerais, Belo Horizonte, São João del-Rei, Amazónia; Rio de Janeiro).

Esta natureza multiescalar da obra é essencial para a construção literária da paisagem alentejana, seja por que se observam e se pensam os seus elementos a partir do exterior, numa perspetiva de afastamento, mas sem nunca se perder de vista o destino final; seja porque a mesma é olhada e sentida a partir do interior, através das vivências e das experiências sensitivas in loco.

2. A paisagem alentejana na ótica de José Luís Peixoto,

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