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Hayles (1999: 36) aponta que, na obra “Neuromancer”, o protagonista tem uma presença física apesar de considerar que o seu corpo é apenas “carne”, que serve o propósito de sustentar a sua consciência até que volte a entrar no mundo virtual. Aqui, apontamos que a problemática da nossa heroína não se resume a manter um corpo para sustentar o seu Eu – ela já existia antes do seu corpo carnal. Lain ocupa-se da sua identidade, que advém de toda a sua manifestação existencial. Que corpo é aquele, quem é ela, de onde vem e para onde deverá ir.

Um corpo situa-nos em termos de espaço e tempo. Sabemos que estamos aqui ou ali, que temos certa idade e que, sendo seres biológicos, temos a expectativa de viver algum tempo. Para além da parte biológica, temos o nosso lado emocional, racional, cognitivo, que nos faz sentir bem ou mal na relação com o outro e connosc próprios. Durante a acção da série, Lain raramente é tocada. A amiga é quem mais lhe toca, mostrando ser um referencial à heroína da existência e necessidade do seu corpo. No final da

história é perceptível que esta não perdeu a sua capacidade de se manifestar nos dois mundos, e visita algum tempo mais tarde Arisu, que brevemente irá casar. Lain não perde o seu corpo, e é perceptível por outros, para além de Arisu, como é o exemplo do cumprimento do noivo. Aqui poderíamos fazer a comparação com o corpo disforme de Eiri, que tenta desesperadamente manifestar-se e matar as duas amigas, na Layer: 12 – Landscape. Se por um lado Eiri queria o despojar do corpo, Lain percebe no final que esse não deverá ser o fim da existência contemporânea. Eiri Masami, que desprezava a noção de corpo, preferia a tradução da sua existência em dados, através de código binário em detrimento de células e glóbulos, para habitar no “ciberespaço” e não na cidade.

O objectivo de Eiri seria eliminar todos os periféricos físicos, todo o hardware, para elevar a consciência a um ponto que houve uma conexão neural virtual generalizada entre todos, onde o receptor não é um Navi mas sim o nosso cérebro. Mas se ele aponta a Lain que esta é meramente software, porquê o seu receio? Na verdade, o receio é manifesto. Lain tem corpo, e ainda que este esteja soterrado em cabos e esteja gelado, ela consegue tocar Arisu e sentir a sua palpitação. Ela não se apresenta como uma manifestação virtual e holográfica – essa é a sua versão na Wired. Como afirma, novamente, Steven Brown, uma das questões ligadas ao pós-humanismo diz respeito à capacidade de afecto:

« As Bruce Braun has argued, one of the lessons of posthumanism is “the possibility of, and necessity for, a political cartography of bodily formation that attends to how bodies are imbued with the capacity of affect [\]. In contrast with humanism, the posthuman emphasis on the capacity for affect is no longer tied to a norm, universal, or essence, but instead attends “to the middle – that place where everything happens. Where everything picks up speed and intensity,” a “meeting place of danger and hope” where ontological play allows for the hybridity and heterogeneity of new becomings, where the subject is “local, fluid, and contingent.” »

Eiri Masami tenta convencer Lain que a desencarnação é a melhor escolha, ao que Lain riposta com a necessidade que ele próprio teve de usar todos os hardwares desenvolvidos até ao momento. O discurso deste falso Deus aponta permanentemente para um idealismo virtual, onde a camada física é subordinada à camada cyber. Pelas palavras de Brown:

« Eiri’s digital idealism advocates transcending the obsolete body and rising to a higher plane – not of spirituality but of pure digitality. »

(p. 179)

A propósito de planos mais transcendentes, a aparição que Lain faz nos céus da cidade, em que as crianças lhe estendem os braços, sugere, além da utilização de referências religiosas e espirituais no anime, a adoração contemporânea do artificial e virtual, como já foi anteriormente mencionado.

Na tentativa de destruir todos os hardwares, Eiri Masami acaba por assumir o mesmo papel que a Máquina, que tenta destruir o mundo material, do conto de 1909 de Forster. Também na obra de Hayles (1999; 4), que afirma que a informação perdeu o corpo, sendo que a encarnação não é fundamental para o Homem, pois este fenómeno é posto de parte na “construção cibernética do pós-humanismo”, conseguimos identificar o discurso do antagonista.

Na layer: 12 – Landscape, quando a Lain conversa com Arisu sobre o facto de ter reconectado todos, e sobre o facto de ter sido concebida para destruir a fronteira entre os dois mundos, Arisu chama-a à atenção de que ela precisa de um corpo para existir, para viver. Eiri intervém e afirma que tudo o que Lain sente na palpitação de Arisu é medo de perder o corpo. O facto é que ele próprio se materializa para a confrontar quando a heroína lhe diz que é ele quem ela não consegue entender. Questiona quem lhe deu aqueles direitos sobre os humanos e de onde de facto vieram as ideias de conectar o mundo sem dispositivos. Lain responde que sem corpo ele não poderá entender. É neste ponto que o discurso de Eiri se quebra, restando para Lain o seu próprio esclarecimento quanto ao seu lugar no mundo, discutindo consigo própria.

Lain, no final da série, fecha o arco da sua personagem, concluindo a sua jornada. A heroína confluiu numa única subjectividade após o confronto com a Lain da Wired.