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Duas obras que integram o mesmo sistema aberto pelo original, mas que de modo diferente dialogam com ele. Assim são o Gran sertón: veredas espanhol e o argentino no vínculo que mantêm com o romance brasileiro. Apesar de terem como base

179 o mesmo texto de partida, as traduções apontam para sentidos diferentes, que puderam ser compreendidos com maior profundidade ao término da atual pesquisa.

Ao longo da segunda seção, a ideia de emancipação trazida por Jauss foi levantada permitindo a configuração de um aparato conceitual que abrange o vínculo entre obra e leitor. O horizonte de expectativa e a possibilidade de mudança de horizonte convergiram no entendimento de obras como Madame Bovary, de Flaubert, em que se identifica recurso narrativo capaz estimular determinado público a interagir com o inesperado na relação que estabelece com o objeto estético. Mais especificamente, refere-se ao discurso indireto livre que dilui o peso do narrador e faz emergir a voz da personagem título.

Essa inovação influiu em outros âmbitos, para além do estético, ampliando a compreensão do leitor. E fundamentou os primeiros textos em que Jauss se debruça sobre o potencial emancipador do objeto estético. Miranda, ao tratar do desdobramento do processo receptivo, contribuiu no entendimento da experiência estética como acontecimento de um grupo de leitores que possui repercussão histórica e literária. O aspecto intersubjetivo do fenômeno torna possível a criação de novas percepções e a abertura de padrões que não estão legitimados pelas práticas dominantes.

Na seção posterior, a base foi o pensamento de Campos e de Berman a respeito do fenômeno tradutório e de suas implicações em outras áreas como a crítica e a literatura. A construção teórica do crítico paulistano forneceu sólida fundamentação acerca da ideia de tradução que subjaz o presente trabalho, principalmente sobre o que esperar das obras de chegada espanhola e argentina.

Os aspectos criativo, interpretativo e autônomo constituem o tradutor-recriador em suas lides com o texto e o estimulam tanto na seleção do que traduzir, quanto na percepção de sua prática. Isso está presente no diálogo que Campos trava com as noções de “sentença absoluta” e de “informação estética” propostas por Fabri e Bense, respectivamente, e na percepção do vínculo isomórfico que une original e tradução a um mesmo sistema que não subjuga ou suprime a relevância da segunda.

Teoria e prática caminham juntas na atividade tradutória, pondo em relevo outro pensador dentro dos estudos tradutórios, que em paralelo com Campos foi abordado neste trabalho. Berman, em sua vertente de investigação, valoriza a experiência com o texto fonte e fornece parâmetros de análise que permitem aprofundar o entendimento das tensões que permeiam as escolhas relativas à tradução de obras literárias.

180 Esse primeiro momento, constituído das duas seções iniciais, encerra com a definição do conceito de tradução emancipadora, articulado a três pontos chave: i) à emancipação como ideia a ser investigada tanto na recepção, quanto na obra por meio do modo como ambos interagem na gênese do objeto estético; ii) tal interação sendo extensível ao diálogo tradução-leitor, tornando viável o conceito de tradução emancipadora; iii) ao neologismo como um acontecimento presente em Grande sertão: veredas, capaz de tensionar as obras de chegada e abrir a possibilidade de emancipar na língua alvo, de acordo com as escolhas implementadas por cada tradutor.

Em seguida, buscou-se estudar o neologismo enquanto acontecimento presente no romance de Guimarães Rosa, integrado à linguagem da obra de partida e à concepção estética do seu autor. Ao lado disso, houve o interesse pelas diferentes leituras produzidas sobre a inovação lexical presente na obra, que foram divididas segundo abordagens que enfocam o aspecto linguístico, como se evidenciou nos textos de Proença (1959), Daniel (1968), Castro (1982) e Martins (2001) e o aspecto mais propriamente literário, como se observou nos textos de Martins (1946), Xisto (1970) e Campos (1970). Constatou-se na análise que Grande sertão: veredas se adéqua à ideia de obra emancipadora pelos dispositivos inseridos na linguagem do romance que provocam uma nova leitura do repertório literário até então vigente.

Na quinta seção, a recepção do Gran sertón: veredas de Crespo e de Garramuño e Aguilar foi estudada levantando as diferenças entre os projetos tradutórios, considerando os resultados alcançados e a maneira como as obras em questão foram compreendidas pelos leitores críticos Bedate (2009), Vargas Llosa (2007), Maura (2012), Cámara (2012), García (2014) e os próprios tradutores nos ensaios que escreveram relatando e expondo seu entendimento a respeito da atividade que conduziram.

A questão norteadora foi se a recepção das obras de chegada apontava para uma experiência emancipadora e se percebeu que, aos moldes do conceito inaugurado por Jauss, o trabalho de Crespo mais se aproximava de tal ideia sendo inclusive entendido por alguns dos seus críticos como transcriativo e vanguardista.

Uma investigação que se detivesse também nos procedimentos formais de cada tradução era necessária dentro dos parâmetros propostos nesta tese. Por isso, a última seção realizou uma análise das obras em si, retomando o questionamento presente na introdução: “se uma tradução pode ser considerada emancipadora, como constatar esse caráter no texto traduzido?”. Para respondê-lo, foi proposto um estudo de neologismos

181 do original que devido a sua estrutura ou procedência constituísse tensão para os textos alvo e revelasse detalhes de sua seleção e de sua produção.

Para proceder a esse estudo, determinaram-se cinco tipologias que se referem ao neologismo como recurso estético e ao seu modo de elaboração no original. As tipologias foram as seguintes: utilização de onomatopeias, utilização de outras línguas, utilização de tupinismos, utilização de expressões populares e criação de palavras de sentido provável ou oculto.

Elas fundamentaram a análise não somente dos projetos tradutórios, mas também de sua realização na linguagem de cada obra de chegada. Assim, tornou-se possível no trabalho de Crespo, por exemplo, evidenciar que o tradutor se apropriou de procedimentos utilizados por Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas como o provável uso da oralidade do sertão mineiro na tradução de “esmarte” para “esmalte”, ao mesmo tempo em que mantém “esmarte”, que no espanhol é igualmente um neologismo composto com a utilização de uma língua estrangeira. Ademais, inseri palavras arcaicas no contexto da língua alvo, como “bledo-comino”, e integra ao texto alvo léxico de origem árabe, como o emprego não recorrente que faz da palavra “zagal”.

Em contrapartida, na trajetória de obra argentina acontecem apagamentos, homogeneizações e alongamentos que suprimem em grande parte a complexidade da camada léxica do texto fonte e têm como resultado um Gran sertón que prioriza o desdobrar do enredo. Ao leitor a “estória” é transmitida de maneira célere e com pausas menores, o que facilita o contato com a obra de chegada e impede a percepção da linguagem, salientando principalmente seu valor instrumental.

Ao tomar por base o projeto tradutório, os procedimentos realizados por cada tradução investigados dentro do escopo das tipologias acima examinadas e, tendo em perspectiva, a maneira como se relacionou com a crítica levantada, sobretudo na sexta seção, concluiu-se que a tradução espanhola efetivamente mobilizou o potencial emancipador presente no original, podendo ser compreendida como uma tradução emancipadora.

Sobretudo no que tange ao último aspecto, o Gran sertón espanhol estabeleceu um vínculo com seus leitores mais tenso, pois ainda que tenha dialogado de modo convergente com críticos como Maura e Bedate, também produziu contundente divergência, segundo mostra o texto de Vargas Llosa. Este demonstrou forte estranhamento na crítica que escreveu a respeito do trabalho de Crespo por motivos que abrangem a artificialidade, o “tom paródico” e a estilização presente no texto de

182 chegada. Tal resultado almejado pelo tradutor desde o seu projeto, até a experiência tradutória que pôde desdobrar e as soluções que empregou no Gran sertón espanhol leva a constatação que Crespo efetivamente se mobilizou o potencial emancipador realizar a tradução do romance brasileiro.