• Nenhum resultado encontrado

6. TRADUÇÃO E EMANCIPAÇÃO: ANÁLISE DE PROCEDIMENTOS

6.2. Diferentes realizações de uma vereda em comum

6.3.3. Utilização de tupinismos

A utilização de tupinismos como procedimento criativo desde muito tempo compõe o ramo de possibilidades das quais o autor mineiro se vale em sua escrita

123 O dicionário da RAE informa sobre o verbete “lejote”: “Do aumentativo de longe. 1. Advérbio

coloquial na Venezuela. Muito longe” [tradução nossa] (Real Academia Española, 2012, publicação online). O mesmo dicionário informa a respeito de “lontananza”: “Do italiano, lontananza. Fem. 1. Termos em um quadro mais distante do plano principal. Na distância. 1. Loc. Adv. Ao longe. Usada só para falar de coisas que, por estarem muito distantes, apenas se pode distinguir” [tradução nossa] (Real Academia Española, 2012, publicação online).

165 literária. Em “Meu tio o Iauaretê”, conto publicado pela primeira vez em 1961, que hoje integra a coletânea Estas estórias (1969), já há uma inclinação do autor principalmente para o uso de tupinismos.

Em Grande sertão: veredas (1956) este procedimento é reiterado em palavras como “tapejar” e “urubùretama” que fazem parte do glossário anexo nesta tese. Para Castro (1982):

Geralmente são nomes pertencentes à flora e à fauna brasileiras – “acauã”, “ariranha”, “coité”, “jaguacacaca”, “suindara”, etc – algumas vezes sofrendo a participação modificadora do romancista. De “caatinga”, Guimarães Rosa deriva para “caatingal” e “catingano”, não registrados nos léxicos. O processo de formação desses derivados obedece àquele princípio [...] da exploração das virtualidades linguísticas que propicia possibilidades à criação de novos vocábulos (CASTRO, 1982, p. 34).

Com exame atento dos neologismos em que converge o uso de tupinismos, notou-se expressivo contraste nas palavras “colominhar”, “proporema” e “suassu-apara” quanto às realizações estéticas das obras de chegada.

A primeira palavra, de acordo com Castro (1982) e Martins (2001), provém do tupi kulumi (menino)124 e significa brincar, divertir-se como uma criança (CASTRO, 1982, p.76; MARTINS, 2001, p. 198). É utilizada no romance original para elaborarar uma bela metáfora entre o pulsar do coração e o correr sinuoso do rio, que se relaciona ao sentimento de Riobaldo por Otacília: “Coração cresce de todo lado. Coração vige feito riacho colominhando por entre serras e varjas, matas e campinas. Coração mistura amôres. Tudo cabe. Conforme contei ao senhor, quando Otacília comecei a conhecer, nas serras dos gerais” (ROSA, 1956, p. 187).

O Gran sertón espanhol traduz esse excerto como:

El corazón crece por todos lados. El corazón cobra vigor como un arroyo zagaleando por entre sierras y vegas, matorrales y campiñas. El corazón mezcla amores. Todo cabe. Conforme le conté a usted, cuando comencé a conocer a Otacilia, en las sierras de los Generales (ROSA, 2000, p. 197).

A proposta da tradução argentina para o mesmo excerto é:

124 Em pesquisa a glossário especializado há o verbete “Columi”: “Georg.: Nome geográfico no Estado do

Rio de Janeiro. Antes columy. Etim.: Curumí – menino, criança (vide Curumim)” (CLEROT, 2010, p. 159).

166 El corazón crece de todas partes. El corazón gana vigor como si fuera un riacho meneándose entre sierras y valles, selvas y campiñas. El corazón mezcla amores. Todo cabe. Conforme le conté al señor, cuando comencé a conocer a Otacília, en las sierras de los campos (ROSA, 2009, p. 183).

No exame comparativo das duas obras de chegada, observa-se que ambas utilizam termos já registrados, Crespo, entretanto, tensionou mais a linguagem, pois o vocábulo como se encontra em dicionário é um substantivo e não um verbo. Ao lado disso, uma leitura mais rigorosa do verbete percebe-se que, recorrendo à etimologia da palavra, há a inserção de um termo de origem árabe-hispânica125. Em contraste com a decisão de Garramuño e Aguilar que optou pela substituição por um verbo que delimita com maior ênfase o sentido do excerto126.

A clarificação, portanto, se deu novamente de modos distintos, já que no Gran sertón espanhol serviu para iluminar uma correspondência que se encontrava velada na origem, enquanto que no Gran sertón argentino foi mais direta no que tange ao significado. Também se ressalta que, ainda que a superposição de línguas tenha sido apagada em ambas as obras, a escolha de Crespo permitiu que o texto alvo estabelecesse outra rede de significantes em diálogo estreito com o processo criativo do romance de Guimarães Rosa. Isso foi possível, pois, assim como o autor brasileiro dialoga com os povos originários, fazendo com que estejam presentes em sua linguagem, o tradutor espanhol recorre a processo similar no âmbito da cultura de chegada.

“Proporema” e “suassu-apara” são palavras em que as soluções encontradas pelas traduções acompamham a mesma tendência para a repetição e o apagamento. No romance de Guimarães Rosa, “proporema” é uma palavra utilizada para indicar o sertão: “Mundo esquisito! Brejo do Jatobàzinho: de mêdo de nós, um homem se enforcou. Por aí, estremando, se chegava até no Jalapão — quem conhece aquilo? — tabuleiro chapadoso, proporema. Pois lá um geralista me pediu para ser padrinho” (ROSA, 1956, p. 58-9).

125O verbete “zagal” é explicado pela RAE (2012): “Do árabe-hispânico zaḡál[l] ‘jovem, valente’ ou do

árabe clássico zuḡlūl ‘muchacho’. 1. Masc. e fem. Pastor joven; 2. Masc. e fem. Pessoa que chegou à adolescência ou à juventude; 3. Masc. Ajudante nas carruagens de cavalarias; 4. Masc. Espanha oriental. Menino; 5. Fem. Menina solteira; 6. Fem. Leão. Babá” [tradução nossa] (Real Academia Española, 2012, publicação online).

126 “Menear” consta no dicionário da RAE (2012): “Do antigo manear ‘manejar’, derivado de mano e

alterado por influxo do antigo menar ‘conducir’. 1. Verbo transitivo. Mover algo de uma parte a outra. Usado também como pronominal. 2. Verbo pronominal, coloquial. Fazer com prontidão e diligência algo, ou andar depressa” [tradução nossa] (Real Academia Española, 2012, publicação online).

167 “Suassu-apara” refere-se à espécie animal de que é retirado o couro para se confeccionar um chapéu: “Reparei no chapéu na cabeça dêle, que era de couro de veado suassú-apara, com macias abas e formato muito composto. A cara dele mesmo dava um ar honrável, circunspecto, por mal que com manchas, sarro de alguma velha moléstia” (ROSA, 1956, p. 488). Castro (1982) e Martins (2001) convergem a respeito do sentido de “proporema” e “suassu-apara”127 indicando dois tupinismos e informando que a

primeira palavra indica “lugar sem moradores” e a segunda “veado torto”.

A respeito das traduções para o espanhol, Crespo traduziu o trecho inicial do seguinte modo: “¡Mundo extravagante! Matorral del Jatobacito: de miedo de nosotros, un hombre se ahorcó. Por ahí, extremando, se llegaba hasta en el Jalapón —¿quién conoce aquello?— tablero llanoso, proporema. Pues allá, un generalista me pidió que fuese padrino” (ROSA, 2000, p. 72). E o posterior como: “Reparé en el sombrero de su cabeza, que era de cuero de venado suasú–apara, con blandas alas y formato muy compuesto. Su propia cara tenía un aire honorable, circunspecto, por mal que con manchas, sarro de alguna vieja enfermedad” (ROSA, 2000, p. 498).

De maneira distinta, as escolhas de Garramuño e Aguilar foram, para o primeiro trecho: “¡Mundo raro! Matorral del Jatobacito: por miedo a nosotros, un hombre se ahorcó. Por ahí, extremando, se llegaba hasta el Jalapón. ¿Quién conoce aquello? Alturas llanosas, desiertos. Pues allá un lugareño me pidió que sea padrino” (ROSA, 2009, p. 67). E para o trecho seguinte:

Reparé en el sombrero que llevaba en su cabeza que era de cuero de ciervo de los pantanos, con alas suaves y formato muy compuesto. La cara de él daba en verdad un aire honrable, circunspecto, por mal que con manchas, sarro de alguna vieja molestia (ROSA, 2009, p. 457-8).

Ao optar por manter os tupinismos, Crespo realizou um tensionamento considerável no sitema de chegada, pois inseriu termos que não pertencem ao espanhol corrente. Ainda assim, não produziu dano na sonoridade do excerto. Tal escolha, todavia, causa um potencial estranhamento ao leitor porque demanda um repertório difícil de conseguir sem recorrer a especialistas capazes de decifrá-lo. Sem produzir tal inacabamento, a solução de Garramuño e Aguilar foi substituir por correspondentes explicativos, o que destruiu as redes de linguagem vernaculares e apagou as

127 Castro (1982) e Martins (2001) indicam a proveniência dos tupinismos “pora’pora’eyma” e

168 superposições de línguas, produzindo um texto seguramente mais claro para quem o lê da cultura de chegada. No entanto, houve quebra de sonoridade, sobretudo devido ao alongamento no segundo excerto.